Professora da Universidade de Brasília defende que bibliotecas estejam no centro do projeto pedagógico das escolas, em articulação com as disciplinas
Professora recém-aposentada do curso de biblioteconomia da Universidade de Brasília, Walda de Andrade Antunes é uma das principais estudiosas brasileiras sobre bibliotecas escolares. Já foi coordenadora do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, do Ministério da Cultura, e do programa Salas de Leitura/Biblioteca Escolar, do MEC (atual Biblioteca da Escola). Atualmente, é consultora do Instituto Ayrton Senna e do Instituto de Pesquisas, Estudos, Cultura e Educação (Ipece).
Para a estudiosa, a lei que torna obrigatória a existência de bibliotecas em todas as escolas, aprovada neste ano, constitui um grande avanço, ainda que o tempo previsto para a adequação seja grande e o acervo mínimo, pequeno. Defende, também, a função pedagógica do profissional responsável pela biblioteca, cargo para o qual deve receber formação específica. Leia, a seguir, a entrevista concedida à subeditora
Marina Almeida.Em dez anos, mais de 100 mil escolas do país, que hoje não têm biblioteca, deverão estar adequadas à nova lei. Como vê esse processo?Essa lei é um ganho imenso para o país, é o primeiro movimento governamental a se preocupar com a questão. No entanto, a lei foi muito generosa com quem não tem e não quer ter bibliotecas escolares. Ao mesmo tempo que coloca a obrigação, dá um prazo grande para que seja posta em prática e define que o tamanho mínimo do acervo seja de um livro por aluno matriculado, o que é pouco. A recomendação das organizações que tratam do tema não fala em menos de sete ou mais livros por aluno. É complicado, mas pelo menos temos um papel que regulamenta a existência dessas bibliotecas.
Será necessário construir 25 bibliotecas por dia nas escolas de ensino fundamental até 2020. O prazo é suficiente? É tempo demasiado. O necessário é ter uma política consistente para a biblioteca escolar, porque daqui a dez anos os alunos de hoje já terão saído da escola. Se essa fosse uma prioridade e tivéssemos bibliotecas atuantes e integradas com a sala de aula, realmente utilizadas pelos e com acervos adequados, teríamos condições de dar um salto em índices como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Como alguém que não lê vai produzir textos, por exemplo?
Por que temos esse enorme déficit em bibliotecas escolares?A dificuldade é a falta de prioridade. Mas o professor não pode mais ser o responsável por colocar na sala de aula toda a informação de que o aluno necessita. O que precisamos é saber pesquisar. Quase toda escola tem um laboratório de informática, por que não tem biblioteca? É uma questão de opção. Mas, ainda que muito lentamente, já temos uma lei regulamentando a questão, que deve trazer benefícios em favor de uma categoria que é muito esquecida, desvalorizada.
Quem são os funcionários responsáveis pelas bibliotecas escolares hoje?Não são bibliotecários que estão à frente das bibliotecas. É um problema sério porque a biblioteca fica sendo um apêndice da escola. Se desaparecer, ninguém sente falta, já que seu uso não está sendo feito de forma integrada com a sala de aula. Para dar essa dinâmica ao trabalho é necessário ter uma pessoa qualificada. O ideal seria ter um bibliotecário, mas mesmo esse profissional precisa ter uma formação também pedagógica, porque a biblioteca escolar é uma categoria que atende a criança da educação infantil - quando ela ainda não lê, mas já deve ser iniciada na leitura - até o ensino médio. O aluno muda nessa trajetória, desenvolve outros interesses e o suporte oferecido pela biblioteca deve ser diferente em cada etapa.
Como essa questão é abordada pelos cursos de biblioteconomia?É muito pouco abordada. O instituto de que faço parte, o Ipece, já promoveu, em convênio com a universidade, algumas especializações na área. Hoje, alguns cursos de biblioteconomia estão incluindo a questão da biblioteca escolar no currículo, sua organização e dinamização. Essas disciplinas deveriam incluir também uma formação pedagógica. Fui professora alfabetizadora da educação infantil por muitos anos, só depois entrei para a área de biblioteconomia. Foi vantajoso ter unido esses dois campos. Na universidade, sempre recomendava aos interessados no tema que cursassem algumas disciplinas na própria faculdade de Educação.
Há profissionais de biblioteconomia em número suficiente para atuar nas bibliotecas escolares de todo o Brasil?Não. Existem mais de 220 mil escolas e, com otimismo, cerca de 50 mil bibliotecários, distribuídos em bibliotecas universitárias, especializadas, públicas e mesmo em algumas poucas escolares. Como não há profissionais em número suficiente, é necessário buscar alternativas para atender a essas escolas. O que vem sendo feito é dar ao docente a qualificação necessária. O professor é o parceiro ideal nesse trabalho, mas não aquele que está se aposentando, que está doente ou que tem problemas para estar em sala de aula. Porém, é o que está acontecendo: quando não pode dar aula, o professor é enviado à biblioteca. É um erro absurdo. A biblioteca precisa de pessoas dinâmicas, porque atende a todas as crianças, classes e professores, ao planejamento. É uma das nossas grandes lutas: fazer com que as secretarias e os governos entendam que a função da biblioteca é tão didática e pedagógica quanto a da sala de aula. Um professor que trabalha na biblioteca não deveria estar em desvio de função - o que faz com que ele perca as vantagens financeiras de sua categoria e a possibilidade de se aposentar com 25 anos de serviço. Quem quer ir para a biblioteca nessas condições? Ninguém. Mas, com raríssimas exceções, é isso que acontece.
Que tipo de formação esse professor que atua na biblioteca escolar deve ter?Estou participando de um curso de formação continuada para professores, que é único nesse aspecto no Brasil. Foi desenvolvido por mim e é operacionalizado pelo Ipece. Trabalhamos com todos os conteúdos que uma biblioteca precisa para poder funcionar na ausência de um bibliotecário, como organização e uso de acervo, uso de tecnologias da informação na biblioteca, ampliando o campo de pesquisa do professor. Também orientamos as secretarias de Educação a ter, ao menos, um bibliotecário coordenando o trabalho das escolas. O objetivo é que o professor entenda como a biblioteca é organizada e tenha autonomia para trabalhar ali com seus alunos.
Como as redes devem se organizar para implantar as bibliotecas escolares? Em primeiro lugar, é preciso conhecer onde estão suas escolas, que projetos desenvolvem, o que se quer com a formação de seu aluno, as matrizes curriculares. A biblioteca deve permear todo o plano pedagógico da escola, os professores de todas as disciplinas devem ter relação com ela, pois um aluno não consegue desenvolver um problema de matemática se não for bom leitor, não souber interpretar as questões. Infelizmente poucos têm essa visão, a maioria acha que só é do interesse dos professores de língua portuguesa e literatura.
Como deve ser selecionado o acervo das bibliotecas escolares?Não é com acervo dado que se faz uma biblioteca, é preciso comprar os livros que forem realmente necessários. O MEC faz repasse de acervo com o programa Biblioteca da Escola, mas não atinge a todos. É um investimento que deve ser feito tanto em literatura quanto em livros de pesquisa. O acervo precisa contemplar o currículo escolar, que é muito grande, os temas transversais, as culturas locais e identificar as demandas do momento.
E quando o acesso dos alunos aos livros é dificultado? Já encontrei casos de bibliotecas que não eram abertas para que os alunos não estragassem os livros. O que faz uma biblioteca é o uso. No curso do Ipece, organizamos equipes com bibliotecários e professores para preparar atendentes. Formamos tutores na secretaria de Educação para orientar o curso, de forma a incluir não só o responsável pela biblioteca, mas também a direção, a equipe pedagógica, técnica até a merendeira. Orientamos sobre o ambiente, a organização, o uso de projetos especiais. Os professores recebem o material, se organizam e em dez encontros nas reuniões pedagógicas concluem a formação, feita em discussão com seus pares. A partir disso, passam a frequentar a biblioteca, fazer mudanças nas estantes, selecionar o acervo.
Sala de leitura é biblioteca?Em alguns estados, utiliza-se esse termo para fugir à legislação, que determina a presença de um bibliotecário nas bibliotecas, mas nunca vi uma definição que diferenciasse as duas. Sala de leitura é uma parte da biblioteca, que tem outros ambientes. Usar essa denominação é um equívoco. Não temos profissionais para todas as bibliotecas, por outro lado há redes que não contratam bibliotecários por falta de um plano de cargos e salários para eles. Também precisamos lutar para que os conselhos de biblioteconomia procurem alternativas que viabilizem a presença do bibliotecário, a elaboração desse plano de careira, mas não fiscalizando e fechando bibliotecas, principalmente as escolares.
Incentivar o educador deve ser parte da política de bibliotecas escolares?Toda biblioteca escolar deve ter a estante do professor. Essa estante do professor deve ter obras da área pedagógica, psicológica, de formação didática, além de literatura, para auxiliar na formação do professor.