Preconceito linguístico ou ensino democrático e pluralista?
Dante Lucchesi*
UFBA/CNPq
Nos últimos tempos, a sociedade brasileira vem aprofundando seu
caráter democrático, não apenas com a distribuição de renda promovida pela
ação dos programas sociais do Governo Federal, como também no
reconhecimento da diferença como parte do respeito à dignidade da pessoa
humana. Hoje o racismo é tipificado como crime pelo Código Penal, e está em
curso no Congresso Nacional um projeto de lei contra a homofobia. No plano
da cultura, manifestações de matrizes historicamente marginalizadas, como a
africana, estão plenamente integradas, como os blocos afros no Carnaval da
Bahia, a capoeira e o Candomblé. Porém, o preconceito e a intolerância ainda
predominam em um plano essencial da cultura: a língua.
Nada mais revelador a esse respeito do que a comoção provocada pelo
livro didático de língua portuguesa Por uma vida melhor, distribuído pelo
Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação (MEC), para
a educação de jovens e adultos. A revolta se concentra em uma passagem do
livro que diz que o aluno poderia dizer algo como “os livro”, em certos
contextos, mas que deveria empregar a forma padrão “os livros”, sobretudo em
situações formais para não ser vítima do preconceito linguístico.
Foi o suficiente para que políticos, jornalistas, intelectuais e professores
manifestassem toda a sua perplexidade e indignação. Até uma procuradora do
Ministério Público Federal, no melhor estilo udenista da Marcha com Deus pela
Família, ameaçou com processo os responsáveis pela edição e pela distribuição
do livro. Argumentou-se que, sendo a missão da escola ensinar a “forma
correta”, não podia admitir o uso da “forma errada”; e que à escola cabia
ensinar a norma culta, e não a popular. Chama a atenção, em primeiro lugar, o
açodamento e leviandade de alguns posicionamentos, que revelaram que seus
autores sequer se deram ao trabalho de ler o livro.
A obra, da autoria da professora Heloísa Ramos, baseia-se em princípios
racionais e imprescindíveis para um ensino eficaz da língua materna, tais como
o de que “falar é diferente de escrever”. E reconhece que o português, como
qualquer língua humana viva, admite formas diferentes de dizer a mesma
coisa, o que a ciência da linguagem denomina variação linguística. Informa ainda
que a variação linguística reflete a estrutura da sociedade. No caso brasileiro, o
cenário da variação social apresenta uma divisão entre uma norma culta e uma
norma. O livro ainda alerta que, apesar de serem “eficientes como meios de
comunicação”, as duas normas recebem uma avaliação social diferenciada,
existindo “um preconceito social em relação à variante popular, usada pela
maioria dos brasileiros”, mas que “esse preconceito não é de razão linguística,
mas social”. Em vista disso, conclui que “o falante tem de ser capaz de usar a
variante adequada da língua para cada ocasião”. Não há nada demais em tais
afirmações. Os gramáticos mais esclarecidos reconhecem que o padrão da
correção absoluta deve ser substituído pelo parâmetro da adequação relativa às
diversas situações de uso da língua. É tão inadequado dizer “me dá menos
tarefa” numa reunião formal de trabalho, quanto perguntar “poder-me-ia
informar o preço desse vegetal?” em uma feira livre. Como diz ainda o
questionado livro, “um falante deve dominar as diversas variantes porque cada
uma tem seu lugar na comunicação cotidiana”.
Informar ao aluno que a língua é plural e admite formas variantes de
expressão, cada uma legítima em seu universo cultural específico, não é apenas
a forma mais adequada de fazer com que o aluno conheça a realidade da sua
língua, mas um preceito essencial de uma educação cidadã, fundada nos
princípios democráticos, do reconhecimento da diferença como parte integrante
do respeito à dignidade da pessoa humana. A pluralidade é o principal pilar de
uma sociedade democrática, garantindo a diversidade de crenças, de opiniões,
de comportamentos, de opções sexuais etc. Contudo, a diversidade linguística é
vista sempre como uma ameaça, sem que as pessoas se deem conta do
autoritarismo que tal visão dissemina.
A aceitação da diversidade linguística não entra em contradição com a
necessidade da aquisição de uma norma padrão para uma melhor inserção em
uma sociedade de classes, dominada pelo letramento. E inclusive o livro em
questão se apresenta como um instrumento adequado desse ensino, com seus
exercícios de pontuação, do uso canônico dos pronomes e até do emprego das
sacrossantas regras de concordância, que ousou desafiar, tocando em uma
aspecto nevrálgico da visão discricionária de língua que predomina na
sociedade brasileira. O reconhecimento da diversidade linguística, longe de ser
prejudicial, é uma condição sine qua non para uma escola democrática e
inclusiva, que amplia o conhecimento do aluno sem menosprezar sua bagagem
cultural. A imposição de uma única forma de usar a língua, rechaçando as
demais variedades como manifestações de inferioridade mental, é um ato de
violência simbólica e mutilação cultural inaceitável.
Outro aspecto que chama atenção é o desconhecimento que predomina
na sociedade sobre o ensino de língua portuguesa. Já há alguns anos que os
livros didáticos contemplam a questão da variação linguística, e muitas escolas
têm adotado essa visão mais pluralista e democrática de ensino de língua
portuguesa com resultados muito positivos. Portanto, antes que se diga que a
distribuição do livro é mais um ato de populismo do governo do PT, deve-se
esclarecer que essa visão remonta ao governo FHC, com a publicação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 1997, que já diziam que “a
imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da
linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos
manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre ‘o que se deve e o
que não se deve falar e escrever’, não se sustenta na análise empírica dos usos
da língua” e alertavam que “o problema do preconceito disseminado na
sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como
parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à
diferença”.
Portanto, só a ignorância ou a má-fé podem explicar as manifestações de
indignação e revolta que beiram a histeria, diante da distribuição de um livro
tão pertinente, através do sistema democrático e republicano do Programa
Nacional do Livro Didático do MEC. Diante disso, importa saber quais são as
razões mais profundas dessas reações. Em primeiro lugar, a língua ocupa um
posição sui generis na estrutura social. Em outras áreas do comportamento, as
leis se seguem às práticas sociais. Na língua, ao contrário, as disposições
governamentais, como no caso dos PCNs, estão muito à frente da visão
dominante na sociedade, que é no geral dogmática e cheia de mitificações.
O linguista norte-americano William Labov fala do mito da Idade do Ouro,
no qual as pessoas tendem a acreditar que a língua atingiu sua perfeição no
passado e desde então só se tem deteriorado, e se afligem com as inovações que
a cada dia ameaçam mais e mais a integridade do idioma, sendo as mais
perigosas as violações perpetradas pela “gente inculta”. Porém, não se conhece
uma única língua cujo funcionamento tenha sido comprometido pelas
mudanças que sofreu ao longo de seu devir histórico. As mudanças que
afetaram o chamado latim vulgar da plebe romana deram origem ao português
de Camões, ao espanhol de Cervantes e ao francês de Flaubert. E as
“deteriorações” sofridas pela língua portuguesa desde o tempo de Camões não
impediram que Pessoa escrevesse sua magistral obra poética. Além do que,
muitos males que afligem hoje a língua, para a decepção de muitos, não
constituem grande novidade. Os puristas ficam horrorizados com a linguagem
desleixada da Internet, impregnada de abreviaturas. Pois as abreviaturas
abundam nas inscrições romanas e nos manuscritos medievais.
Costuma-se correlacionar também complexidade gramatical com grau de
civilização. Porém, muitas línguas indígenas brasileiras exibem uma morfologia
muito mais complexa, inclusive marcando certas categorias gramaticais, como a
evidencialidade (que informa a fonte de conhecimento do evento verbalizado),
absolutamente ausentes na gramática das línguas europeias. Já muitas línguas
africanas, em sua maioria ágrafas (sem escrita), exibem um sistema morfológico
de classificação nominal extremamente complexo. E algumas línguas da
Melanésia, de comunidades tribais, têm mais de cem formas pronominais,
contra algumas poucas dezenas das principais línguas europeias, que têm mais
de mil anos de tradição escrita. Ou seja, complexidade gramatical não tem
qualquer correlação com grau de civilização. Nem se pode pensar que
complexidade gramatical implica maior poder de expressão da língua.
Outro grande mito é o da ameaça à unidade linguística: se não houver
uma rígida uniformização, a unidade da língua se perde; se o caos da variação
linguística não for detido, a comunicação verbal ficará irremediavelmente
comprometida. Ao contrário, a heterogeneidade da língua é que garante a sua
unidade em uma comunidade socialmente estratificada e culturalmente
diversa. É a flexibilidade conferida pela variação linguística que permite a uma
língua funcionar tanto na feira livre quanto nos tribunais de justiça. Se fosse um
código monolítico e inflexível, como sugerem os puristas, a mesma língua não
poderia funcionar em ambientes tão diversos, o que levaria inexoravelmente à
sua fragmentação.
Impressiona o nível de ignorância que se observa em pleno século XXI
em relação à língua. Qualquer pessoa minimamente informada já ouviu falar de
Freud, Lévi-Strauss e Max Weber, tem alguma ideia sobre o que seja o
Complexo de Édipo e o Tabu do Incesto e não ousa falar em raças superiores e
inferiores, ou que um criminoso possa ser reconhecido pelo formato do seu
crânio, mas fala com naturalidade de línguas simples e complexas e se refere a
formas linguísticas correntes como aberrações. Aliás, a visão de que a forma
superior da língua é aquela dos escritores clássicos é contemporânea do sistema
de Ptolomeu, de que a Terra era o centro do Universo e, em torno dela, giravam
o sol, os planetas e as estrelas. Ou seja, a Revolução de Copérnico não chegou
ainda à língua.
Um exame aprofundado da questão revelará que as motivações
históricas para tanto preconceito e mitificação decorrem exatamente papel
político crucial que a língua desempenha nas sociedades de classe. Ao longo
dos tempos, a língua tem constituído um poderoso instrumento de dominação e
de construção da hegemonia das classes dominantes. A construção dos estados
nacionais encontrou na uniformização e homogeneização linguística um dos
seus apoios mais eficazes, sobretudo em regimes autoritários e absolutistas. E o
preconceito contra as formas de expressão das classes populares constitui um
poderoso instrumento de legitimação ideológica da exploração desses
segmentos. Na medida em que o preconceito viceja na ignorância, pode-se
entender por que é tão importante impedir que uma visão isenta e
cientificamente fundamentada da língua tenha uma grande circulação na
sociedade.
Em um programa televisivo sobre o polêmico livro, um conhecido
jornalista inquiriu uma entrevista alegando que a concordância gramatical seria
imprescindível para o raciocínio lógico. Se fosse assim, os norte-americanos,
australianos e ingleses deveriam enfrentar dificuldades significativas, porque o
inglês é uma língua praticamente desprovida de concordância nominal e verbal.
Ao contrário, a grande maioria dos artigos científicos é escrita na atualidade em
inglês, e as universidades inglesas e norte-americanas figuram entre as
melhores do mundo. Em inglês, se diz: I work, you work, he works, we work, you
work, they work. Na linguagem popular do Brasil, se diz: eu trabalho, tu trabalha,
ele trabalha, nós trabalha, vocês trabalha, eles trabalha. Nas duas variedades
linguísticas, só uma pessoa do discurso recebe marca específica, mas o inglês é a
língua da globalização e da modernidade, enquanto o português popular do
Brasil é língua de gente ignorante, que não sabe votar. Fica evidente que o valor
das formas linguísticas não é intrínseco a elas, mas o resultado da avaliação
social impingida aos seus usuários.
Ao contrário do que pensa o jornalista, a concordância não é um
requisito para o raciocínio lógico. Até porque as regras de concordância são
mecanismos gramaticais que não interferem na comunicação verbal, tanto que é
indiferente dizer “nós pegamos os peixes” ou “nós pegou os peixe”. A
informação veiculada é a mesma. Em função disso, esses mecanismos
costumam ser muito afetados em determinados processos históricos como
aqueles por que passaram o inglês, o português no Brasil e o francês, que,
mesmo com a erosão na oralidade de suas marcas de concordância, não deixou
de se tornar a língua de cultura do mundo ocidental no século XIX.
Porém, na recente história política deste país, a concordância teve uma
posição de destaque, quando a imprensa conservadora questionava a
capacidade do Presidente Lula, invocando, entre outras coisas, os seus “erros de
português”. O preconceito linguístico nada mais era do que a expressão de um
preconceito mais profundo das elites econômicas que não podiam admitir que
um torneiro mecânico ocupasse o cargo de maior mandatário da República. O
sucesso e as conquistas alcançadas pelo Governo Lula, tanto no plano interno
quanto externo, só vieram a confirmar que, tanto um preconceito quanto outro,
não tinham o menor fundamento.
Mas, vale tudo para desqualificar a linguagem popular, até dizer o
disparate de que ela “é caótica e sem regras”, como afirmou, há alguns anos,
uma jornalista da imprensa conservadora. Desde 1957, com as publicações dos
trabalhos do linguista norte-americano Noam Chomsky, sabe-se que a
Faculdade da Linguagem é uma propriedade universal da espécie humana, de
modo que qualquer frase produzida por um falante de qualquer língua natural,
seja ele analfabeto ou erudito, é gerada por um sistema mental de regras tão
sofisticado que mesmo o computador mais poderoso já produzido é incapaz de
fazer o que qualquer indivíduo faz trivialmente: falar sua língua nativa.
Nesse contexto, é possível compreender o quanto é subversivo (ou seja,
transformador) distribuir amplamente um livro didático que reconhece a
diversidade linguística e a legitimidade da linguagem popular. É muito
revelador o depoimento do eminente gramático Evanildo Bechara, divulgado
no portal UOL, na Internet, em 18/05/2011. Numa crítica à orientação dos
PCNs, que ele considera um "erro de visão", afirma: “Há uma confusão entre o
que se espera de um cientista e de um professor. O cientista estuda a realidade
de um objeto para entendê-lo como ele é. Essa atitude não cabe em sala de aula.
O indivíduo vai para a escola em busca de ascensão social”. É impressionante
que se diga que “não cabe em sala de aula” fornecer elementos para o aluno
"compreender [a língua] como [ela] é”. É como dizer que o darwinismo não
cabe em sala de aula, devendo o ensino da biologia ser orientado pelos
princípios do criacionismo. Acenando com a cenoura da “ascensão social”,
Bechara quer limpar o terreno do ensino para os normativistas legislarem
arbitrariamente sobre a língua, como têm feito até então. A visão científica da
língua, que reconhece a variação e a diversidade linguística como propriedades
essenciais de qualquer língua viva, deve ficar hermeticamente confinada aos
ambientes científicos. Na escola e na sociedade, deve predominar a visão
dogmática e obscurantista de que existe uma única forma de falar e escrever,
enquanto as demais devem ser vistas como deteriorações produzidas por
mentes inferiores.
Os problemas dessa visão dogmática e discriminatória do ensino de
língua portuguesa se agravam com a tensão que existe no país em relação à
norma de correção linguística. O linguista Marcos Bagno tem demonstrado que
estruturas como “o jogador custou a chutar” e outras que os gramáticos
tardicionais e midiáticos, como Pasquale Cipro Neto, afirmam não pertencer à
norma culta são recorrentes nos textos de escritores consagrados, como Cecília
Meirelles, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector, ou mesmo de
clássicos, como Machado de Assis e José de Alencar. Isso demonstra que, no
Brasil, existe um desacordo flagrante entre a norma padrão – modelo ideal de
língua usado como critério para a correção linguística – e a norma culta – forma
da língua concretamente usada pelas pessoas consideradas cultas, advogados,
jornalistas, escritores etc. Ao empregar as duas expressões como sinônimas,
Pasquale e os normativistas buscam dar às suas prescrições uma legitimidade
que elas não têm, porque se apoiam numa equivalência que está longe de
existir.
A tensão entre a norma padrão e a norma culta é normal em qualquer
sociedade letrada, na medida em que a norma padrão constitui uma forma fixa
e idealizada de língua a partir da tradição literária, enquanto a norma culta,
constituída pelas formas linguísticas efetivamente em uso está sempre se
renovando. Porém, no Brasil o desacordo entre as duas é grave desde as origens
do estado brasileiro. A independência política do Brasil, ocorrida em 1822,
desencadeou uma série de manifestações e movimentos nacionalistas, que
tinham no índio tupi o grande símbolo da nacionalidade. Contudo, escritores
que abraçaram a temática indigenista e nacionalista que tentaram adequar a
linguagem portuguesa à nova realidade cultural do Brasil, como José de
Alencar, foram alvo de virulentas críticas provenientes do purismo gramatical.
Mais uma vez, a língua se descolou dos demais aspectos da cultura. Se os
elementos representativos da brasilidade deveriam ser adotados, derrubando os
símbolos da velha ordem colonial, a linguagem brasileira era vista como
imprópria e corrompida, devendo continuar a prevalecer a língua da antiga
Metrópole portuguesa. A vitória dos puristas representou a vitória de um
projeto elitista e excludente na formação do estado brasileiro. E a base racista
desse projeto fica clara neste trecho do discurso de Joaquim Nabuco, na sessão
de instalação da Academia Brasileira de Letras, em 1897:
A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior
resistência e guarda assim melhor o seu idioma; para essa
uniformidade de língua escrita devemos tender. Devemos opor
um embaraço à deformação que é mais rápida entre nós;
devemos reconhecer que eles são os donos das fontes, que as
nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renová-las
indo a eles. (...) Nesse ponto tudo devemos empenhar para
secundar o esforço e acompanhar os trabalhos dos que se
consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conservar
as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande
época (...) Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano ou
Garrett e os seus sucessores deixem de ter toda a vassalagem
brasileira.
A vassalagem linguística à ex-metropole implicou a adoção do modelo
da língua de Portugal na normatização linguística no país, com graves
conseqüências, como o generalizado sentimento de insegurança linguística que
aflige todos segmentos da sociedade brasileira, mesmo os mais escolarizados. É
comum ouvir afirmações do tipo “o português é uma língua complexa”, ou “o
brasileiro não sabe falar português”. E não poderia ser diferente porque a
tradição gramatical brasileira exige que os brasileiros escrevam, ou até mesmo
falem, com a sintaxe portuguesa, o que é impraticável, porque a língua não
parou de mudar, tanto em Portugal quanto no Brasil, em um processo que, por
vezes, assume direções distintas, ou mesmo contrárias, em cada um dos lados
do Oceano Atlântico.
Uma das mais notáveis dessas mudanças foi a violenta redução das
vogais átonas da língua em Portugal, fazendo com que os portugueses
pronunciem telefone como tlefone, o que confere ao português europeu
contemporâneo uma sonoridade, que é menos românica do que germânica, ou
mesmo eslava. Já no Brasil pronuncia-se téléfoni ou têlêfoni (consoante a região),
tendo ocorrido o inverso: o fortalecimento das vogais pretônicas. Essa mudança
acabou por repercutir em outros níveis da estrutura da língua, de modo que em
Portugal se generalizou o uso da ênclise, até nos casos em que, na língua
clássica, era obrigatório o uso da próclise (e.g., O João disse que feriu-se; Não
chegou-se a um acordo), enquanto no Brasil emprega-se normalmente a próclise
até nos contextos vedados pela tradição (e.g., Me parece que ela não veio).
Para além da insegurança linguística, a adoção de uma norma adventícia
no Brasil produz também verdadeiros absurdos pedagógicos. Toda gramática
normativa brasileira tem um capítulo dedicado à colocação pronominal, que se
inicia invariavelmente com a afirmação “a colocação normal do pronome átono
é a ênclise”; ao que se seguem mais de vinte regras indicando onde se deve usar
a próclise (em orações subordinadas, depois de palavras negativas, após alguns
advérbios etc). Tal gramática serve a um estudante português, que usa
normalmente a ênclise e pode aprender quais são os contextos excepcionais
onde a tradição recomenda o uso da próclise, mas não tem a menor serventia
para um estudante brasileiro, que já usa normalmente a próclise. Para ter algum
valor pedagógico, o texto da gramática brasileira deveria ter a seguinte feição:
“a colocação normal do pronome átono no Brasil é a próclise; entretanto, para se
adequar à tradição, deve-se evitar essa colocação em início de período e após
uma pausa”.
Esses equívocos se exacerbam dentro da visão tradicional que restringe o
ensino de língua portuguesa à prescrição do uso de formas anacrônicas, quando
o ensino da língua deve ser muito mais amplo que isso, concentrando-se em
práticas criativas que capacitem o aluno a produzir e interpretar textos,
dominar os diversos gêneros textuais e identificar os mais variados sentidos e
valores ideológicos que as produções verbais assumem em cada situação
específica; ao que se deve somar uma informação propedêutica acerca da
diversidade da língua.
Pode-se entender, assim, porque uma entidade conservadora e
anacrônica, como a Academia Brasileira de Letras (ABL), se juntou às vozes
recalcitrantes, criticando o livro de português do MEC em uma nota oficial, na
qual afirma: “Todas as feições sociais do nosso idioma constituem objeto de
disciplinas científicas, mas bem diferente é a tarefa do professor de língua
portuguesa, que espera encontrar no livro didático o respaldo dos usos da
língua padrão que ministra a seus discípulos”. Mais uma vez, a ladainha de que
a escola e a sociedade devem ser privadas de uma visão científica (ou seja,
realista) da língua, ficando à mercê de toda a arbitrariedade normativista,
inclusive aquela que impõe uma norma de correção adventícia e absolutamente
estranha à realidade linguística do país.
Fica evidente também que essa virulenta reação ao livro de português do
MEC não se justifica como defesa de um ensino mais eficaz de língua
portuguesa. Um modelo antiquado, que privilegia a imposição de formas
linguísticas adventícias e/ou anacrônicas, está longe de ser o mais eficaz. Não é
a correção de “assistir o espetáculo” por “assistir ao espetáculo” que vai fazer o
aluno escrever melhor. Um ensino eficaz de língua materna incorpora a
bagagem cultural do aluno, promovendo uma ampla prática de leitura e
produção de textos nas mais variadas situações de comunicação,
desenvolvendo também sua capacidade de reconhecer os diversos sentidos e
valores ideológicos que a língua veicula em cada situação. Nesse ensino, é
imprescindível promover a consciência acerca da diversidade linguística como
reflexo inexorável da variedade cultural. E esta formação cidadã para o respeito
à diferença não entra em contradição com o ensino da norma culta, que deve
permanecer. O que está em jogo, na verdade, é a opção por um ensino
discriminatório e arbitrário, baseado no preconceito e no dogma, ou por um
ensino crítico e pluralista, baseado no conhecimento científico acumulado até os
dias de hoje, como ocorre na física, na matemática, na geografia, etc. Por que se
deve privar os alunos do conhecimento científico da língua, reduzindo a
disciplina língua portuguesa a um mero curso de etiqueta gramatical?
Se o projeto purista venceu no século XIX, com as nefastas conseqüências
que hoje se descortinam, resta saber se, no limiar do século XXI, a sociedade
brasileira perpetuará o velho projeto arbitrário e conservador, ou encampará
um projeto democrático e pluralista para o ensino de língua portuguesa, em
consonância com que o corre em outros planos da cultura. Será que mais uma
vez a língua restará isolada, como terreno do dogma e do preconceito?
Dante Lucchesi: Professor Associado de Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia,
Pesquisador 1-C do CNPq, autor do livro Sistema, Mudança e Linguagem (Parábola,
2004), organizador do livro O Português Afro-Brasileiro (EDUFBA, 2009) e Coordenador
do Projeto Vertentes do Português Popular do Estado da Bahia
(http://www.vertentes.ufba.br/).