Trabalho de alunos de graduação - Escola de Comunicação e Arte - ECA/USP

A influência das línguas africanas no português do Brasil

por Julia T. Yoshino; Luciana Soga; Marília Reis; Raquel Nakasche

"Introdução

A língua de um povo é o reflexo dele mesmo, mas vertido em sons e palavras. Através dela nos expressamos e manifestamos nossa própria existência. E a nossa língua portuguesa é resultado de muitas e diversas existências, dentre elas, a do negro africano. Ainda que uma existência difícil – esta que veio carregada pelos braços hostis da escravidão –, é rica e forte, poderosa de incutir na cultura do colonizador, dar-se com ela e sintetizar o que hoje conhecemos como genuinamente brasileiro.
Tão corriqueiro, mas um verdadeiro pilar da nossa identidade, a língua e seus contornos nos passam despercebidos e sua importância pode equivocadamente parecer pouca. Merecem então um olhar mais atento as raízes da nossa língua.
Detivemo-nos às africanas, partindo da sua origem até suas aplicações, ressaltando palavras que delas herdamos e observando as peculiaridades de sua construção.
Tanta riqueza não deve manter-se escondida, é preciso tê-la sabida e passá-la o prestígio que merece.

Metodologia

Este trabalho tem como eixo principal a pesquisa da influência das línguas africanas no português do Brasil. Para uma coleta de dados mais completa e diversificada, pesquisamos diferentes livros de diversos autores além do dossiê fornecido pela docente.

Objetivos

♦ Gerais
Neste trabalho pretendemos fazer uma pesquisa lingüística que demonstre e esclareça a raiz africana da Língua Portuguesa do Brasil

♦ Específicos
- Situar o contexto histórico do africano no Brasil;
- Identificar o histórico do recurso dos empréstimos das línguas africanas no Brasil;
- Identificar as origens africanas específicas;
- Localizar as interferências no vocábulo, morfologia, sintaxe e pronúncia ocorridas na Língua Portuguesa do Brasil devido à influência africana;
- Listar parte das palavras de origem africana encontradas



Desenvolvimento

Contexto Histórico

A vinda do negro para o Brasil está diretamente relacionada com a questão da mão-de-obra empregada pelos portugueses na colônia. Para tirar o máximo de lucro e contornar sua escassez populacional, a Coroa portuguesa precisou recorrer ao trabalho escravo. Diante da falta de mão-de-obra para a exploração econômica de um território imenso como o Brasil, a primeira saída encontrada pelos colonizadores foi a escravização dos indígenas. Mas esse modelo teve curta duração. A partir de 1550, a mão-de-obra indígena foi substituída pela do negro africano. Economicamente mais interessante, o negro permitia lucros muito maiores aos portugueses, que ganhavam com tráfico de escravos da África.
No século XV, os portugueses também conquistaram a costa africana. Com o apoio de alguns chefes tribais, deram início à captura de homens e mulheres para o trabalho escravo. Esse comércio era feito na forma de escambo – pessoas em troca de armas, pólvora, tecidos, espelhos, aguardente e fumo.
A boa experiência com o trabalho africano na produção de açúcar em São Tomé e na Ilha da Madeira, outros domínios portugueses, fez com que se tornasse ainda mais interessante essa opção. As longas viagens, a mistura de tribos e o temor de constantes maus-tratos contribuíram para subjugar os negros ao trabalho forçado. Ao longo dos séculos XVI ao XIX foram trazidos cerca de quatro a cinco milhões de africanos.





Histórico do recurso aos empréstimos de línguas
africanas no português do Brasil

Durante o estabelecimento da população africana no Brasil, foram constituídas duas “línguas gerais” dos negros: o nagô ou iorubá na Bahia e o quimbundo nas outras regiões. O quimbundo foi muito mais empregado, por maior número de indivíduos, numa área geográfica maior, e por isso, tem um vocabulário mais expressivo.
Uma característica em comum entre as duas línguas é a falta de flexão. Na língua quimbundo, a concordância é feita por meio de prefixos especiais repetidos junto ao termo subordinado.
Os escravos africanos utilizavam o português como segunda língua, portanto imprimiam nela antigos hábitos lingüísticos, executando-a com sotaque peculiar e deformador, e simplificando sua morfologia até reduzir-lhe a reflexões.
Dada a permanência do negro e sua intromissão profunda na família e na sociedade brasileira, os afro-descendentes constituíram força de resistência à ação niveladora das ondas lingüísticas do português, nas camadas populares, explicando-se assim a redução de flexões que se nota no linguajar de pessoas mais simples.

Origem dos empréstimos

♦ O Banto no Brasil

No Brasil, o povo banto ficou conhecido por denominações muito amplas, principalmente congos e angolas, sendo que nos países do Congo e da Angola existem inúmeras etnias e línguas, o que dificulta para a precisão de suas origens.
Entre os bantos, destacaram-se pela superioridade numérica, duração e continuidade no tempo de contato direto com o colonizador português, três povos litorâneos: os bacongo, os ambundo e os ovimbundo.

BACONGO, falantes de quicongo, língua que engloba vários falares regionais de territórios correspondentes a “grosso modo” com os limites do antigo Reino do Congo. Desse local, foram levados para Lisboa os primeiros negros bantos escravizados.
AMBUNDO, falantes de quimbundo, concentrados na região central da Angola.
Para essa região o tráfico se voltou, no século XVII, após a decadência do Reino do Congo, e Luanda foi tão importante para o Brasil nesse processo, que é invocada, em versos, por diferentes manifestações do folclore brasileiro.
OVIMBUNDO, falantes de umbundo, localizados nas províncias de Bié, Huambo e Benguela, ao sul da Angola. A presença ovimbundo no Brasil exerceu mais importância nos estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro.


♦ Línguas e povos oeste-africanos na Brasil

A África Ocidental se caracteriza por um grande número de línguas tipologicamente muito diferenciadas e faladas em uma região geográfica menor, porém mais densamente povoada do que aquela onde o tráfico se estabeleceu no domínio banto. Seus territórios compreendem os seguintes países: Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiná-Conacri, Serra Leoa, Libéria, Burquina-Fasso, Costa do Marfim, Gana, Togo, Benim e Nigéria.
Dentre os povos trazidos dessa região, destacam-se, pela superioridade numérica em relação aos demais oeste-africanos, os da família lingüística kwa. As línguas que se mostraram mais significativas no Brasil foram as do grupo ewe-fon, principalmente a iorubá.
Iorubá é uma língua constituída de vários falares regionais, pouco diferenciados. Chamados de “ànàgó” pelos seus vizinhos, termo por que ficaram genericamente conhecidos no Brasil como nagô.
Em 1830, foram trazidos em grandes contingentes para a Bahia, já na última fase do tráfico, e empregados em sua maioria, em trabalhos urbanos e domésticos na cidade de Salvador.






atividade principal/século de introdução maciça

XVI

XVII

XVIII

XIX

agricultura

B

B/J

B/J/N

B/J/N

mineração

B/J/N

serv. públicos

B/J/N/H



Palavras emprestadas

♦ Interferência no vocabulário

Para que seja possível realizar um estudo sobre a influência das línguas africanas no português do Brasil, deve-se ter em mente que nem todo o vocabulário que existe no Brasil com resíduo africano foi incorporado por influência da presença dos negros escravos trazidos ao nosso país. Alguns vocábulos foram trazidos pelos próprios portugueses, já que em Portugal também encontrava a presença de negros africanos. Assim, por exemplo, a palavra inhame nada tem a ver com o português do Brasil, já era mencionada na Carta de Caminha.
São algumas palavras incorporadas pela população brasileira:

1) Palavras africanas que foram incorporadas pela língua portuguesa, conservando forma e significados originais:
a) Simples: sambar, xingar, muamba, tanga, sunga, jiló, maxixe, candomblé, umbanda, berimbau, maracutaia, forró, capanga, banguela, mangar, cachaça, cachimbo, fubá, gogó, mocotó, etc.
b) Compostos: lenga-lenga

2) Palavras que no português tomaram um sentido especial
por tradução direta de uma palavra africana: mãe-de-santo (ialorixá), dois-dois (ibêji), despacho (ebó), terreiro (casa de candomblé), etc.
para substituir uma palavra considerada como tabu: “ O velho”, por Omolu e “flor-do-velho”, por pipoca.

3) Composições híbridas. Palavras que possuem um elemento africano e um ou mais elementos do português: bunda-mole, espada-de-ogum, limo-da-costa, pó- de-pemba, cafundó de Judas, etc.

Também estão incluídos nessa categoria os vocábulos derivados nominais: molecote, molecagem, cachimbada, forrozeiro, sambista, capangada, caçulinha, dengoso, bagunceiro, etc.

As palavras de origem africana que vieram enriquecer nosso vocabulário são principalmente de origem do quimbundo, que pertence ao grupo banto. Este engloba inúmeras línguas e inclui cerca de três mil dialetos, falados por povos espalhados ao longo de 2/3 da África Negra. No contexto da escravidão negra no Brasil, o quimbundo era a língua mais falada no Norte e Sul do país.
O nagô, ou iorubá, era utilizado na Bahia, e 90% das palavras provenientes dessa língua são usadas para designar regionalismos, como entidades sobrenaturais, mitos, amuletos, práticas religiosas, ou também pratos, quitutes, comes-e-bebes.
São exemplos de palavras de origem quimbundo e da família lingüística kwa, a qual iorubá faz parte, incorporadas no português do Brasil:

Palavras de origem banta:

BAGUNÇA – desordem, confusa, baderna, remexido.
BANZÉ – confusão, barulho.
BATUCAR – repetir a mesma coisa insistentemente.
BELELÉU – morrer, sumir, desaparecer.
BERIMBAU – arco-musical, instrumento indispensável na capoeira.
BIBOCA – casa, lugar sujo.
BUNDA – nádegas, traseiro.
CACHAÇA – aguardente que se obtém mediante a fermentação e destilação do mel ou barras do melaço.
CACHIMBO – pipo de fumar.
CAÇULA – o mais novo dos filhos ou irmãos.
CAFOFO – quarto, recanto privado, lugar reservado com coisas velhas e usadas.
CAFUNÉ – ato de coçar, de leve, a cabeça de alguém, dando estalidos com as unhas para provocar o sono.
CALANGO – lagarto maior que lagartixa.
CAMUNDONGO – ratinho caseiro.
CANDOMBLÉ – local de adoração e de práticas religiosas afro-brasileiras da Bahia.
CANGA – tecido utilizado como saída-de-praia.
CANGAÇO – o gênero de vida do cangaceiro.
CAPANGA – guarda-costas, jagunço.
CAPENGA – manco, coxo.
CARIMBO – selo, sinete, sinal público com que se autenticam os documentos.
CATINGA – cheiro fétido e desagradável do corpo humano, certos animais e comidas deterioradas.
CHIMPANZÉ – espécie muito conhecida de macaco.
COCHILAR (a ortografia correta deveria ser coxilar) – dormir levemente.
DENDÊ – palmeira ou fruto da palmeira.
DENGUE – choradeira, birra de criança, manha.
FUNGAR – aspirar fortemente com ruído.
FUZUÊ – algazarra, barulho, confusão.
GANGORRA – balanço de crianças, formado por uma tábua pendurada em duas cordas.
JILÓ – fruto do jiloeiro, de sabor amargo.
MACUMBA – denominação genérica para as manifestações religiosas afro-brasileiras.
MANDINGA – bruxaria, ardil, mau-olhado.
MARIMBONDO – vespa.
MAXIXE - fruto do maxixeiro.
MINHOCA – verme anelídeo.
MOLEQUE – menino, garoto, rapaz.
MOQUECA – guisado de peixe ou de mariscos, podendo também ser feito de galinha, carne, ovos etc.
MUCAMA – criada, escrava de estimação, que ajudava nos serviços domésticos e acompanhava sua senhora à rua, em passeios.
QUIABO – fruto do quiabeiro.
QUILOMBO – povoação de escravos fugidos.
SENZALA – alojamentos que eram destinados aos escravos no Brasil.
SUNGA – calção de criança.
TANGA – tapa-sexo.
TITICA – fezes, coisa sem valor, excremento de aves.
ZABUMBA – bombo.



Palavras de origem kwa:

ABADÁ – túnica, casaco folgado e comprido.
ACARAJÉ – bolo de feijão fradinho, temperado e moído com camarão seco, sal e cebola, frito com azeite-de-dendê.
ANGU – pirão de farinha de mandioca, de milho ou de arroz temperado com sal e cozido para ser comido com carne.
ASSENTO – altar das divindades, dentro ou fora do terreiro.
AXÉ – todo objeto sagrado da divindade; o fundamento, o alicerce mágico da terreiro.
BOBÓ – comida feita de uma variedade de feijão, inhame ou banana da terra com camarão e azeite-de-dendê.
ERÊ – um dos estados de transe; espíritos infantis também cultuados pelos iniciados ao lado da divindade a que foram consagrados.
EXU – divindade nagô-queto, capaz de fazer tanto bem quanto mal, tido como mensageiro dos orixás.
FÉ – gostar de, querer.
JABÁ – carne seca, charque.
LELÉ – maluco, adoidado; ingênuo, indolente, simplório.
ORIXÁ – designação genérica das divindades do panteon iorubá ou nagô-queto.

Segundo muitos autores, como Gladstone Chaves de Melo, a contribuição das línguas africanas para o vocabulário do português no Brasil não foi tão grande quanto à influência que exerceu o escravo no nosso modo de falar.




♦ Interferência na morfologia e sintaxe

1) A maior influência das línguas africanas no português do Brasil se deu na morfologia, com a simplificação e redução das flexões. Essa característica pode ser observada principalmente nas camadas populares, parcela da população em que as pessoas raramente utilizam as desinências de plural, que tendem a se restringir ao primeiro determinante da frase.
Exemplos: “As primas já chegaro”; “Esses menino são endiabrado”

O verbo também sofre conseqüências dessa atitude de simplificação e redução das flexões. Muitas vezes só há oposição de desinência entre a primeira e as demais pessoas, como podemos observar com o verbo gostar: eu gosto, tu gosta, ele gosta, nós gosta, vocês gosta.

2) Nas línguas africanas não há o conhecimento da separação por gênero, como em português a/o (bonito/bonita), o que pode contribuir para a explicação da volubilidade de gêneros nos nomes (“minha senhor”) que pode ser observada na fala popular.

♦ Interferência na pronúncia

A inclinação do falante brasileiro em omitir a última consoante das palavras ou transforma-las em vogais: “falá”, “dizê”, “dirigî”, “Brasiu”, coincide com a estrutura silábica das em banto e em ioruba, que nunca terminam em consoante.
Na estrutura silábica dessas línguas africanas também não há o encontro consonantal, como ocorre na linguagem popular brasileira. Ocorre a tendência de desfazer esse encontro e fazer uma nova sílaba ao se colocar uma vogal entre elas: sarava (salvar), fulô (flor), etc.
É considerado como de origem africana a semivocalização do l palatal (lh na nossa grafia), que se observa na pronúncia popular em algumas regiões do Brasil: muyé por mulher; fiyo por filho; paya por palha.
Outros aspectos importantes são os fenômenos de deglutinação e aglutinação de fonemas, como acontece com o s do determinante, que se incorpora à vogal seguinte, produzindo uma nova forma autônoma. Como, por exemplo, as palavras: zome (nascido de os home) e zarreio (resultado de os arreio).

Influência africana na literatura brasileira

A presença da cultura africana na nossa própria é incontestável e podemos percebê-la em vários meandros. Na literatura não é diferente. Podemos perceber a apropriação de vocábulos essencialmente africanos e construções típicas, principalmente na poesia, por homens brancos, sem descendência alguma, que o fizeram pelo puro aprecio.
Exploraremos essa questão através de um caso pontuado, mas representativo – o de Jorge de Lima.

♦ Jorge de Lima (1893 – 1953)
O poeta valorizava motivos poéticos afro-nordestinos. Seus textos abrigam várias possibilidades de leituras (a convivência entre a tradição e o novo, o vulgar e o sublime, o regional e o universal). Experimentou estilos diversos como o parnasiano, o regional o barroco, o religioso.
[...]
Serra da Barriga!
Barriga da negra-mina!¹
As outras montanhas se cobrem de neve,
De noiva, de nuvem, de verde!
E tu, de Loanda², de panos-da-costa³,
De argolas, de contas, de quilombos4!

Serra da Barriga!
Te vejo da casa em que nasci.
Que medo danado de negro fujão!

¹ Negra-mina: e mulher do grupo tribal de cultura fantiaxanti, da Costa do Ouro (Guiné); também se diz preto(a)-mina.
² Loanda ou Luana: vem do quimbundo luanda, significando tributo, que se refere a um antigo tributo anual da época em que a região pertencia ao Congo.

³ Pano-da-costa: tecido de algodão, listrado, originário da África e usado como xale.
4 Quilombo: termo vulgar desde o século XVII, vem de povoação. Em Angola significa paragem, pouso para descanso das viagens pelo interior. No Brasil adquiriu um sentido diferente, o de lugar que reúne grande número de escravos fugidos. Em Alagoas, designa também folguedo, durante o Natal.

Não somente os vocábulos e maneira de falar determinaram algumas diretrizes na literatura, mas também suas próprias crenças aparecem nos versos, elementos do imaginário negro africano, que foram posteriormente assimilado por nós e que se misturaram a outros já aqui presentes como os mitos do saci e aos caiporas dos nossos índios.
É o caso de poemas como O Medo:

O BICHO Carrapatu,
O negro velho de surrão
- foi o medo que passou.

Mas depois chegou o medo,
O medo maior que houve
que as negras velhas contavam:
era a cabra-cabriola,
lobisomens, besta-feras.


Curiosidade

A “língua” africana do Cafundó

O Cafundó é um bairro rural situado no município de Salto de Pirapora (a 150km de São Paulo), que possui uma população predominantemente negra, de cerca de 80 pessoas, dividida em duas parentelas: a dos Almeida Caetano e a dos Pires Pedroso. A terra foi doada por um antigo senhor e fazendeiro, pouco antes da abolição. As beneficiárias são duas irmãs, ex-escravas, que são a origem dessas parentelas. As pessoas do bairro plantam e criam animais para subsistência, mas também trabalham fora (são bóias-frias, diaristas, empregadas domésticas).
A língua materna delas é o português, com uma variação regional identificada como dialeto caipira (segundo Amadeu Amaral). O léxico da “língua” do Cafundó é de origem banto e quimbundo principalmente, e o papel social dessa “língua” é representá-los como africanos no Brasil.
O uso de vocabulários africanos no Brasil está quase sempre ligado a ritos e cerimônias somente, sendo incorporado de uma forma meio “passiva” (já que a língua viva está em constante transformação). No Cafundó, o uso desses vocabulários é muito mais ativo. A “língua” do Cafundó é utilizada em situações corriqueiras, na rotina e no dia-a-dia da população, de forma que o seu emprego independe de festas ou comemorações.
As estruturas gramaticais utilizadas são emprestadas do português. Os quinze verbos pertencentes ao vocabulário, por exemplo, possuem a desinência da primeira conjugação e são também flexionados, como pode ser observado:

Vimbundo está cupopiando no injó do tata.
O homem preto está falando na casa do pai.

O cafombe cuendou da ambara para cunuar avero com nhapecava.
O homem branco veio da cidade para beber café com leite.

As variações de tempo reduzem-se às formas do pretérito perfeito, do presente e do futuro do indicativo. O futuro é expresso pelo auxiliar ir mais o gerúndio do verbo principal – forma também usada no presente contínuo, com o auxiliar estar. Assim:

No quilombo que vai cuendar.
No dia que vai vir (amanhã).

Angutu está cuendando mafingue.
A mulher está vertendo sangue (menstruada).

O presente contínuo também é representado pelo verbo auxiliar no imperfeito:

O cumbe já estava cuendando.
O sol já estava indo (se pondo).

A “língua” do Cafundó tem um léxico limitado, mas o sistema é vivo e produtivo porque há expansão do vocabulário através de palavras do léxico africano e através do uso de expressões formadas por processos metafóricos e analógicos (em geral: nome + preposição + nome).

Injó da marrupa
Casa do sono (quarto)

Coçumbador do cupópia
Fazedor de fala (língua)

Há também mistura de palavras do português:

Respeito do ngombe
Respeito do boi (arame farpado)


A preposição em é freqüente na formação de novas expressões:

Tata nâni no orongombi
Homem fraco no dinheiro (pobre)

A homonímia é muito freqüente devido à limitação de vocabulário. Dessa forma, uma palavra apresenta mais de uma significação. Nâni significa “não”, “perto”, “pouco”, “fraco”, “magro”, “baixo”, “quase”, “menos” (em geral, tudo que é negativo). Vavuro significa “sim”, “longe”, “muito”, “forte”, “gordo”, “alto”, “mais” (em geral, tudo que é positivo).
Vavuro e nâni, além de reforçar a negação e a afirmação, são usados como elementos que exprimem a restrição e a ampliação do que se está dizendo. Por exemplo, cumbe vavuro do téqui seria “sol grande da noite” (lua cheia).
Os mecanismos de concordância de gênero tendem a obedecer padrões do português. Mas esse fenômeno é aleatório, já que o banto opera com a concordância através de prefixos aleatórios e o português através de sufixos de masculino e feminino, com variações de singular e plural. Assim, temos: mutombo do injequê, tenhora da mucanda.
Há também a criação de expressões através de metáforas complexas, bem como a criação de expressões através de palavras que evocam processos metonímicos. O que cuenda vavuro no viso (o que anda muito nos olhos) pode significar tanto uma região montanhosa quanto um dia claro; o que cuenda o chipoquê significa “o que anda o feijão”, ou seja, “o que engole o feijão” (garganta). Na maioria das vezes, a “língua” procede por justaposição de palavras invariáveis: nhamanhara nâni de anguto significa homem sem mulher (solteiro).
Os pesquisadores Carlos Vogt e Peter Fry concluem que o uso dessa “língua” é confuso mesmo entre a população, que parece não se compreender: o receptor não entende o que o enunciador quer dizer ou não entende qual é o contexto a que ele está se referindo. Mas mesmo assim a “língua” do Cafundó é curiosa e rica, além de ser muito interessante.


Relatório do dossiê

Na apresentação, Eduardo Guimarães descreve o que ele chama de imaginário de unidade como parte da construção das identidades nacionais. O que nos parece óbvio é, na verdade, uma constatação muito importante – importante não só para a realização deste trabalho, mas também para discussão e debate (que não devem ficar restritos a um espaço acadêmico somente, já que é algo que todos vivemos).
Há uma lógica muito simples para se pensar a língua como política e para poder entender o que Eduardo Guimarães afirmou no dossiê: se existe uma língua qualquer, existe um falante desta língua. O falante é um sujeito, um indivíduo autônomo, inserido numa determinada sociedade. A sociedade possui uma história própria, e esta história molda as pessoas. Só que a história não é fixa e estática e as sociedades vivem mudanças e transformações ao longo do tempo. Tudo isso se reflete nos falantes e, por conseqüência, nas línguas. E as línguas sofrem modificações por si mesmas em virtude das relações estabelecidas entre os falantes.
Eduardo Guimarães caracteriza, assim, um espaço de enunciação político, que depende do modo de distribuir as línguas (classificadas em língua materna, língua franca, língua oficial e língua do Estado) em relação. E essa distribuição é sempre desigual. Portanto, é fundamental para qualquer estudo ou análise que se leve isso em conta, já que as desigualdades não podem ser ignoradas em nenhum caso e determinam, em grande parte, alguma forma de preconceito e de dominação.
O português, por exemplo, foi (e ainda é) distribuído como politicamente dominante. Assim, as outras línguas acabam carregando um sentido de inferioridade, seja explícita ou mascarada. No dossiê, Eni P. Orlandi fala justamente disso, afirmando que as línguas indígenas e africanas são consideradas primitivas, enquanto que o português e as línguas dos imigrantes são consideradas superiores. Dessa maneira, não há lugar para os falantes dessas línguas primitivas: os indígenas foram submetidos à catequização e os africanos foram escravizados. Não havia a menor preocupação em conservar qualquer elemento cultural que fosse – suas línguas não eram levadas em conta.
Essas constatações e idéias, retiradas do dossiê, foram essenciais para a realização deste trabalho. O mais interessante, porém, foi notar que elas não permaneceram restritas a esse objetivo pontual, fomentando reflexões em todas os integrantes do grupo.


Conclusão

Ao longo da pesquisa podemos observar que a constatação da influência africana na língua portuguesa falada no Brasil se dá principalmente na nossa oralidade e na tendência à simplificação.
Ao contrário do que se parece, em termos de vocabulário, essa mesma cultura não foi tão incisiva. Herdamos de fato muitos vocábulos, mas também poucos se considerando o total deles, sendo que desses que chegaram até nós, a grande maioria está relacionada ao trivial; palavras referente à religião deles, à culinária ou qualquer outro assunto que diz respeito ao corriqueiro.
A grande contribuição está mesmo na oralidade, que garante uma fala mais aberta e com mais curvas, o que a faz dissociar consideravelmente do português de Portugal.

Fontes de pesquisa

CHAVES DE MELO, Gladstone - A Língua do Brasil. Fundação Getúlio Vargas

HORTA NUNES, José; PETTER, Margarida (2002) – História do saber lexical e constituição de um léxico brasileiro. Editora Humanitas.

JUSTO CANIATO, Benilde (2005) – Percursos pela África e por Macau. Ateliê Editorial

PESSOA DE CASTRO, Yeda (2001) – Falares africanos na Bahia – Um Vocabulário Afro-Brasileiro. Topbooks Editora.

Dossiê Línguas do Brasil da revista Ciência
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