Foram tantas as discussões de que participei nos últimos dias, e como parece que o debate ainda vai se prolongar, decidi tentar juntar aqui neste espaço o que já foi falado sobre o assunto e o que eu penso a respeito.
Acho que todos acompanharam toda a celeuma em torno do tema. Na sexta-feira, dia 13/05, rádios, jornais escritos e telejornais começaram a bombardear quem eles viam pela frente - autores, professores, linguistas, órgãos ministeriais - por conta de um livro de língua portuguesa para os alunos do EJA - Educação de Jovens e Adultos - que dizia que o aluno podia falar algo como "Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado."
Quem quiser recapitular, pode ver a notícia no Jornal Nacional (http://ow.ly/4XoUa), no Jornal da Band (http://ow.ly/4Xp12), ler no site da Record (http://ow.ly/4Xpgn), no IG (http://ow.ly/4Xpks), na Folha de São Paulo (http://ow.ly/4Xpty), no Estado de São Paulo (http://ow.ly/4XpBA)...
É possível ainda ouvir a opinião do cientísta político Merval Pereira, que conversou duas vezes com Carlos Alberto Sardenberg na CBN (http://ow.ly/4XpWh e http://ow.ly/4YED0), ou do cinegrafista Arnaldo Jabor (http://ow.ly/4XFSs), e ainda o programa Liberdade de Expressão, ancorado pelo jornalista Milton Jung, com Artur Xexéu, Carlos Heitor Cony e Viviane Mosé (http://ow.ly/4XLLs), a opinião da Professora Maria Alice Setúbal, entrevistada por Carlos Monforte (é a mesma reportagem do Jornal Nacional, mas com uma entrevista no final - http://ow.ly/4XLSS); ler o que pensa o senador e professor Cristovam Buarque (http://ow.ly/4XpG6) ou o que pensam dois blogueiros da Veja, o Reinaldo Azevedo (http://ow.ly/4XFZ7) e o Augusto Nunes (http://ow.ly/4XG7G) (Esses dois últimos, se for ler, recomendo deixar um Engov preparado). Finalmente, uma entrevista de Alexandre Garcia com Cristovam Buarque e a Professora Maria do Pilar Lacerda. (http://ow.ly/4YL2D). Entre os não-especialistas, opinião divergente expressou o Hélio Schwartsman (http://ow.ly/4XGFC).
O outro lado?
Estou chamando isso de outro lado, pois após o momento de caça às bruxas inicial, alguns meios de comunicação começaram a divulgar a palavra de linguistas. O que me parece, no mínimo, sensato. É uma questão linguística, e devemos ouvir os especialistas da área. Pessoas que passaram anos e mais anos de suas vidas acadêmicas estudando o assunto. Pessoas que publicam a respeito, que apresentam pesquisas, no Brasil e no exterior, pessoas que dedicam anos e anos aos estudos de fenômenos linguísticos. Eles acabam aparecendo, apesar de não conseguirem o estardalhaço dos polemistas de plantão. Na verdade, esse lado deveria ser o 'um' lado, e não o outro lado. Penso que se a polêmica envolvesse questão jurídica, convidariam imediatamente juristas e advogados; fosse a questão sobre física quântica, convidariam físicos; etc... Mas se a questão é linguística, parece-me que todos se tornam especialistas. Jornalistas, cientistas políticos, esportistas, economistas, todos falam com uma propriedade e uma prepotência que salve-se quem puder.
Você pode ouvir a doutora em educação Professora Vera Masagão em entrevista na CBN (http://ow.ly/4Xq4e), ou ler o que pensam os doutores Professores Marcos Bagno (http://ow.ly/4Xsfe) e Sírio Possenti (http://ow.ly/4YKUk). Também há a nota oficial da ONG Ação Educativa (http://ow.ly/4YDT8). (Tenho certeza que outros aparecerão/já apareceram. Incluam aí nas notas abaixo do texto, por favor.)
Como o assunto rendeu, não? A Mônica Waldvogel convidou dois escritores para debater o assunto (http://ow.ly/4Xswj). Desconfio que ela desconhecia que um deles, Cristóvão Tezza, é ex-professor de linguística. Acho que ela não ouviu o que gostaria... E podemos também ouvir a entrevista do Ministro da Educação, Fernando Hadad, que deu explicações mais técnicas sobre a escolha de livros a serem indicados pelo MEC (http://ow.ly/4XGnD).
Mas o melhor mesmo - especialmente se você não teve a curiosidade ou a paciência de ver todos os links acima, é poder analisar todo o capítulo do livro que causou tanta cizânia: ele está integralmente disponível em http://ow.ly/4XrYl. Qualquer um que ler o capítulo... corrijo-me: qualquer um com o mínimo de capacidade cognitiva que ler o capítulo, verá claramente que nenhum dos jornalistas, blogueiros, cientísticas políticos, economistas, médicos sanitaristas, advogados, ... nenhum deles se deu ao trabalho.
O livro em questão - e todos os demais livros indicados pelo MEC - não se furta a ensinar a língua culta. Não se furta a mostrar para o aluno que a norma culta é exigida em um ambiente acadêmico, e que a norma culta é necessária para que os cidadãos assumam a plena cidadania. O livro não ensina a dizer "Nós pega o peixe", como afirmaram muitos. O livro ensina a versão culta, com a concordância prescrita pela gramática normativa. E explicita isso:
Como a linguagem possibilita acesso a muitas situações sociais, a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário (p. 12, grifo meu).
O capítulo prossegue discorrendo sobre a língua escrita e a língua falada. Pelos comentários dos que atacaram o livro, parece que eles não reconhecem que falam de forma diferente do que escrevem... O livro ensina:
A norma culta existe tanto na linguagem escrita como na linguagem oral, ou seja, quando escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser informais, porém, quando escrevemos um requerimento, por exemplo, devemos ser formais, utilizando a norma culta. Algo semelhante ocorre quando falamos: conversar com uma autoridade exige uma fala formal, enquanto é natural conversarmos com as pessoas de nossa família de maneira espontânea, informal (p. 12).
Aqui começa a chiadeira... Pois muitos leigos se sentem ultrajados quando o livro admite que podemos falar diferente do modo de escrever, e especialmente quando o livro atesta que podemos falar de maneira diferente - uma mais formal e culta, e outra mais relaxada e popular.
A autora usa como exemplo a frase: "Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado". Essa é a frase da discórdia. É esse o ultraje. Os críticos transcrevem também a seguinte parte do livro:
Você pode estar se perguntando: "Mas eu posso falar 'os livro?'".
Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico (p. 15, grifo da autora).
Aí param a reprodução. E também interrompem a leitura neste ponto. Fazem uma leitura tacanha e superficial, e dizem que a autora está querendo dizer que falar a norma culta é preconceito.
Ora... se os eminentes especialistas em tudo lessem adiante, veriam o seguinte:
Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião (p. 15).
O falante - ensina o livro - tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião. Se acima a autora afirma que é preciso usar o registro formal para escrever um requerimento, ou se dirigir a uma autoridade, é óbvio que defende a necessidade de se aprender esse registro.
Daí o livro prossegue descrevendo e ensinando a norma culta, traçando um paralelo entre a norma culta, e a fala do estudante, para que ele perceba as diferenças, e se aproprie da norma culta. Os exercícios propostos no capítulo - todos eles - exigem o uso da norma culta e a avaliação tem sempre como parâmetro a norma culta.
Fico imaginando quem deve ter começado essa falsa polêmica... Ou foi uma pessoa que não sabe interpretar o que lê - portanto uma pessoa que não passaria no teste do PISA, como alertou com lucidez o Professor Sírio Possenti - ou alguém que procura motivos falsos para injuriar quem quer que seja (linguistas, o governo, o MEC, o Lula, os professores,... como quem vai paciência para ler esse texto deve ser só quem me conhece um pouco, saberão então que eu não sou de defender o Lula; então deixo o nome dele aí mesmo). Em relação a quem comprou a ideia e a repassou sem averiguar os fatos, pode ter sido, além dos mesmos motivos anteriores, devido à preguiça intelectual.
Ao refletir sobre a maneira como a mídia tratou do assunto, e também em relação aos tons raivosos e indignados com os quais os críticos se posicionaram, sugiro uma reflexão: será que o problema não foi a opção do exemplo de língua oral escolhido pela autora? Frases como 'Nós pega o peixe' ou 'Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado' são características do público alvo para quem o livro foi escrito, mas são tão estigmatizadas que os pseudo-defensores da língua portuguesa ficam irados e com sentimentos de repulsa tão grandes que precisavam canalizar de alguma maneira.
Talvez a reação fosse diferente se a autora tivesse utilizado exemplos menos 'gritantes' de 'erros' gramaticais.
Para ilustrar o que quero dizer, dei-me ao trabalho de recolher alguns exemplos que poderiam ilustrar o livro didático, fosse ele para um público diferente. Minhas fontes estão todas indicadas com os links acima. Vejam alguns exemplos que poderiam ter sido utilizados:
Sardenberg - [o livro] distribuído pelo PNLD para 485 mil alunos, 4200 escola, e diz que... (0'40")
Merval Pereira - Não é possível que você, numa escola que tá ensinando português pros alunos, você diga a eles que falar errado é aceitável (2'12")
Sardenberg - A tese dos partidários da tese que está expressa lá naquele livro... (3'33")
Milton Jung - O livro (...) traz uma discussão polêmica a medida que aceita os erros na língua portuguesa... (0'15")
Xexéu - Me parece que você... (1'27")
Xexéu - Você vai ter muita oportunidade [com] o passar do tempo em aprender a falar errado (1'56")
Viviane Mosé - É uma discussão que eu concordo com o Xexéu e que... (2'30")
Milton Jung - ... do qual faz parte essa obra 'Por uma vida melhor' que é assinado pela autora Heloísa Ramos (5'53")
Milton Jung - ... está se matando a língua quando se promove estes erros? (6'09"),
Carlos Heitor Cony - [o professor] transformou ela... (7'35")
Carlos Monforte - Onde fica as leis de concordância (3'53")
Maria Alice Setúbal - A função social da escola é fazer com que o aluno aprende (4'40")
Maria Alice Setúbal - A escola tem que fazer com que cada vez mais os seus alunos, seus estudantes eles possam se expressar de uma maneira correta, porque é isso que vai ser exigido dele na sociedade (5'20")
Maria Alice Setúbal - Nós vivemo num mundo globalizado (5'45")
Adalberto Piotto - Professora, me permita voltar... (4'02") (3x ao longo da entrevista)
Aldaberto Piotto - Professora, lhe incomoda a crítica... (13'17")
Adalberto Piotto - Aliás, me surpreende (13'23")
Mônica Waldvogel - Vários dos comentadores no meio dessa controvérsia disseram... (9'16")
Mônica Waldvogel - A variedade não se constitui como um sistema redondo, né? Ele é... tem expressões... (12'26")
Cristovam Buarque - Eu estou de acordo com a professora de que o nosso programa... (5'09")
Cristovam Buarque - Um estado um dia desses faltou professor de Física... (12'37")
Alexandre Garcia - A escola não é um lugar que ensina pensar? (13'55")
Algumas considerações finais