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Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB)

 

Eu poderia, como Shakespeare, dizer que se trata de muito barulho por nada, mas prefiro me ater a analisar o ‘barulho’. Nunca os órgãos de imprensa, inclusive os mais poderosos, dedicaram tanto espaço para discutir um conteúdo de livro didático, como aconteceu nas últimas semanas em relação ao tratamento de regras linguísticas variáveis em livro destinado à educação de jovens e adultos. Não me deterei nos fatos, sobejamente conhecidos. Observo apenas que, por um lado, tivemos jornalistas ilustres criticando veementemente o tratamento que o livro deu às variantes de regras de concordância nominal e verbal, com o objetivo de ensinar que há diferenças entre as modalidades oral e escrita da língua. Argumentavam os jornalistas que a escola estaria fugindo a sua função precípua, que é ensinar alunos de todos os estratos sociais a usar com competência a nossa língua materna. Gostaria de incluir aqui a refutação a essa interpretação equivocada da imprensa, mas resisto à tentação e deixo isso para um próximo texto.

Por outro lado, tivemos manifestações esmeradas de linguistas nacionais, inclusive da Associação Brasileira de Linguística – ABRALIN, mostrando que toda a Linguística brasileira está comprometida com o ensino competente da língua portuguesa nas escolas. Retomarei também esse ponto em breve.

O que quero agora é refletir sobre o impacto que fatos, geralmente circunscritos à atenção apenas de professores e dos responsáveis pelas políticas públicas de educação, tiveram sobre a sociedade, a julgar pela importância que a grande imprensa lhes conferiu. É possível também que, ao pautar a matéria, a mídia tivesse intenções políticas, mas deixo essa análise aos especialistas em política. Restrinjo-me ao acervo de conhecimentos acumulados na área de Sociolinguística, com os quais convivo há mais de 30 anos.

Um conceito seminal na Sociolinguística, que preside a toda a contribuição que essa disciplina tem feito à Educação é o de competência comunicativa, avançado por Dell Hymes em 1967 e retomado em 1972. Para sua postulação, esse sociolinguista de formação antropológica buscou subsídios na teoria sintática de Noam Chomsky e na antropologia funcionalista de Ward H. Goodenough[1]. Caudatária dessas duas influências, a competência comunicativa de Hymes tem na adequação dos atos de fala seu principal componente, ou seja, um ato de fala é adequado se atende às exigências do contexto em que é produzido e, principalmente, se leva em conta as expectativas do ouvinte. Assim posta, a adequação que é parte essencial da competência comunicativa emana diretamente da definição que Goodenough fornece para cultura: “a cultura de uma sociedade consiste de tudo aquilo que as pessoas têm de conhecer e tudo em que têm de acreditar a fim de operarem de uma maneira aceitável pelos membros dessa sociedade”. Ele vai além, ao associar cultura aos modelos que as pessoas têm em mente para perceber, relacionar e interpretar o que as cerca. A aceitabilidade, Goodenough enfatiza, depende ainda em grande parte de critérios estéticos, que alguns cientistas denominam “elegância”.

A noção de aceitabilidade, coletiva, como propõe o antropólogo, nos ajuda muito a entender como nas sociedades que desenvolveram a escrita, a literatura e as tecnologias elegem uma determinada variedade linguística como a mais correta, mais lógica, mais desejável, em detrimento das demais. Essa escolha não é aleatória, depende de fatores sócio-históricos e está intimamente associada ao prestígio dos usuários de cada variedade. No começo do século XX, o Círculo Linguístico de Praga dedicou atenção ao processo de padronização das línguas, que as transforma em línguas nacionais de uso suprarregional. Enfatizava o Círculo dois componentes desse processo: a padronização, via elaboração de gramáticas, construção de dicionários, fundação de academias de belas letras, e a legitimação, que consiste no apreço que os falantes têm pela variedade padronizada e no valor que lhe conferem.

No caso do nosso português, a variedade de prestígio, usada na literatura, na burocracia estatal e no culto religioso, chegou nas caravelas. A língua lusitana já estava em processo de padronização quando seus usuários chegaram ao Novo Mundo. Desde então, vem sendo cultuada e reverenciada e se transformou no principal passaporte para a ascensão social em um país de mestiços, ansiosos por se assemelharem aos europeus.

O que assistimos nas últimas semanas foi à manifestação desse apreço pela língua padronizada, temperado pelo temor (naturalmente infundado) de que pudéssemos perder um patrimônio linguístico cultivado nos cinco séculos de nossa curta história e nos séculos que a antecederam, na Península Ibérica. Quando os jornalistas  bradam contra a teoria sociolinguística que recomenda a discussão na escola dos nossos modos de falar e de escrever, estão ecoando valores muito arraigados. Nós, os sociolinguistas, que por obrigação de ofício, temos de nos ater aos princípios em que nos formamos e nos deter em análises de cunho científico, devemos encontrar o tom certo do discurso para explicar à sociedade e aos seus porta-vozes que nós brasileiros somos uma comunidade de fala marcada por ampla heterogeneidade. Temos de convencê-los de que a descrição da variação linguística ajuda a coibir a discriminação odiosa contra os falantes das variedades de pouco prestígio e, mais que tudo, facilita, aos nossos alunos, a aprendizagem dos modos prestigiosos de falar e de escrever indispensáveis à vida urbana, plasmada pela cultura letrada.            

 

Brasília – UnB, 20 de maio de 2011.

 

 

 

 



[1] GOODENOUGH, Ward H. Cultural Anthropology and Linguistcs. Report of the Seventh Annual Round Table Meeting on Linguistics and language study, 1957.   

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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