Proferi ontem uma palestra com o título acima, no Uniceub, que é um Centro  Universitário muito  tradicional de Brasília. Fui convidada a participar de uma mesa redonda, juntamente com colegas da casa e da UnB, para discutir a polêmica do livro didático “Por uma vida melhor”.

Concentrei minha fala nas respostas às duas seguintes  perguntas: 1.Por que o livro didático que trouxe exemplos de variação linguística causou tanto impacto sobre a sociedade brasileira, incluindo aí a imprensa e as instituições políticas? 2. Vale a pena incluir informações sobre a variação linguística no currículo do Ensino Fundamental e Médio?

Para responder à primeira  questão, discuti, rapidamente, o estatuto da chamada norma padrão, considerando-a como variante que passa por um processo de padronização , assume função de língua oficial e serve à comunicação suprarregional .  É instrutivo relembrar como o Círculo Linguístico de Praga, nas primeiras décadas do século passado, descreveu esse processo, distinguindo nele dois componentes: por um lado, a codificação da ortografia e da ortoepia, a elaboração de gramáticas e de dicionários, e a criação de instituições dedicadas a perpetuar os valores subjacentes a essa norma, como as academias de letras ou de ciências, e principalmente, os sistemas de ensino.  Por outro lado, o incentivo à valorização da variedade elevada ao nível de padrão, que se manifesta pelo apreço e orgulho que os falantes desenvolvem em relação ‘à sua língua’, ou seja, em relação à  variedade padrão de sua língua. As obras literárias são o objeto mais tangível desse apreço e desse orgulho.

Falando de padronização de uma variedade, não me pude furtar à referência à padronização de línguas europeias ( o Português, inclusive), quando as nações se constituíram como estado, com governo centralizado, após o fim do feudalismo. No entanto, há países na Europa, como a Turquia e a Noruega, em que a constituição de uma língua padrão foi tardia. Na Turquia surgiu no século XX, no bojo de medidas ocidentalizantes naquele país. O turco moderno angariou muito apreço porque foi associado à língua turca antiga, contemporânea do surgimento da própria nação turca.  Na Noruega, até hoje, existem dois códigos que têm status de língua,  suprarregional. Sem esquecer o mosaico de países e línguas na região da antiga Iugoslávia, República Checa e vizinhos. Eu poderia ter mencionado também o caso italiano, pois a unificação daquele país e a consequente elevação do toscano de Dante Alighieri à condição de padrão é um fato histórico do século XIX.

 No Brasil o processo de padronização da língua portuguesa é um prosseguimento de medidas afins, iniciadas na Metrópole, antes mesmo de começar pra valer a colonização do Brasil, pois a primeira gramática da língua data de 1536. Só na década seguinte a primeira cidade brasileira, Salvador, começaria a ser construída.

Bem, o que eu quis mostrar com a minha primeira pergunta é que o sentimento de valorização do ‘Português culto’ está plantado nas raízes de nossa organização como nação. Há muitos estudos no Brasil que sistematizam esse processo histórico. Mencionei ainda o conceito de aceitabilidade, proposto por Goodenough  ( e já discutido neste portal).  O apreço à língua padrão é parte intrínseca de nossa cultura porque é bem recebido pela sociedade em geral.

 Viajei também no túnel do tempo para responder à segunda questão que propus: deve a variação linguística entrar no currículo da Educação Básica? Mas não fui muito longe. Fui até a década de 1960, quando linguistas norte-americanos se interessaram em estudar sistematicamente o “Black English”, para tentar entender por que as crianças que têm essa variedade como língua materna apresentam desempenho escolar muito inferior ao das crianças de outros grupos étnicos. Os primeiros sociolinguistas deram início assim às análises  contrastivas entre variedades de uma mesma língua e concluíram que “A escola ignora a fala dos alunos e esses ignoram a língua que a escola ensina”, como pregava William Labov. É justamente a análise contrastiva, bem conduzida em sala de aula, entre o Português coloquial oral e a norma padronizada escrita, que poderá ajudar os nossos alunos do Ensino Básico a perceberem as diferenças linguísticas, aprendendo que essas diferenças são um recurso que a língua põe à disposição dos falantes para que eles possam circular de forma adequada pelos diversos domínios da vida social. Essa ideia também já foi discutida recentemente neste portal.   Abraços a todos. Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB ; Faculdade de Educação e Programa de Doutorado em Linguística)

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