Em terra de sapo
Escolhi Brazlândia, confiando em sua merecida reputação de comunidade ordeira, com baixo índice de criminalidade e pouca rotatividade populacional. E acertei. A ideia era conhecer famílias oriundas de Minas Gerais, mais propriamente de área rural, e estudar o seu processo de adaptação à vida urbana, no Distrito Federal.
Os anos oitenta tinham iniciado há pouco e eu buscava compreender o processo de migração campo-cidade para escrever uma tese de doutorado. Quem me ajudou a escrevê-la foram os mineiros de Brazlândia, provenientes da região do Alto Paranaíba.
Serei sempre grata a esses meus conterrâneos pela acolhida. Três vezes por semana, eu entrava em minha brasília vermelha, velha e com o assoalho bem enferrujado, e pegava, com um grupo de três alunos da Universidade de Brasília , a Estrutural, opção nova na época para se chegar a Brazlândia. Quando eu retornava, no início da noite, e entrava no Eixo Monumental , vislumbrando a Esplanada dos Ministérios iluminada, a sensação que tinha era que havíamos viajado no tempo, não apenas no espaço de pouco mais de meia centena de quilômetros, entre as duas cidade.
Era um trabalho etnográfico e cada família que eu ia conhecendo me indicava outras tantas, o que me permitiu relacionar-me com um grande número de moradores, coincidentemente quase todos de Minas Gerais. Aonde eu chegava e me ofereciam comida, eu aceitava e partilhava com eles do café, da merenda ou do almoço. Às vezes para a merenda, não havia mistura, só café. Eles se desculpavam e diziam: café de mineiro é corageiro, anda sozinho.
A cidade se compunha de dois bairros, o Setor Tradicional, núcleo já existente quando Brasília foi construída, e o Setor Novo Loteamento. Todos os amigos que lá fiz viviam no Novo Loteamento. A maioria já tinha casa de alvenaria, mas havia muito esgoto escorrendo a céu aberto. Eram famílias bem constituídas, cujos chefes exerciam variadas profissões urbanas: de vigias, garis, jardineiros, carpinteiros, ou ganhavam a vida honestamente na economia informal, vendendo picolé, ou dim-dim. Pouco se deslocavam da cidade, no máximo tinham o hábito ou precisão de ir até Taguatinga. Muitos só haviam estado no Plano Piloto por ocasião da primeira visita do Papa, quando vieram em caravana organizada pela paróquia. Quase todos pertenciam à Sociedade de São Vicente de Paulo e a outras organizações religiosas.
Uma vez convidei dois deles, que formavam uma dupla sertaneja, para vir cantar na UnB. Fui buscá-los em seu serviço, no SLU de Taguatinga. Antes de ir para a Asa Norte, passeamos pela Esplanada, eles maravilhados com os edifícios monumentos, especialmente o Teatro Nacional. Cantaram no “Show do Arroto”, organizado pelos alunos, logo após o almoço no Bandejão. Foi um sucesso. O Oswaldo Montenegro estava na plateia e os elogiou muito. Isso faz tantos anos, não sei se ainda cantam.
Permaneci lá quase um ano, mas após as primeiras semanas de convívio com aquela boa gente, já podia perceber que havia uma diferença bem marcada entre os que migraram em idade adulta e os jovens _ os filhos, netos ou sobrinhos _ que chegaram ainda crianças ao Distrito Federal. Nesse último grupo quase todos estavam na escola ou já tinham concluído o que na época se chamava de Segundo Grau, sem contudo lograrem um emprego compatível com o seu nível de escolaridade.
Essas diferenças inter-geracionais se manifestavam em muitos aspectos, especialmente nos hábitos culturais e nos modos de falar. Enquanto os mais velhos preservavam características pré-migratórias, os mais jovens se ajustavam muito depressa aos modos de ser e de viver de Brasília.
Foi lá em Brazlândia mesmo que ouvi um dito popular equivalente a muitos tratados de sociologia. Conversava eu com um de meus anfitriões, quando a prosa rumou para a questão de trabalho e empregos. Perguntei a ele se a esposa, ausente naquele momento, trabalhava fora. Ele me olhou muito firme e respondeu em seu mineirês:
_ “A senhora sabe, em terra de sapo, de co’ca qü’eis. Ele me explicou que no começo ela só trabalhava em casa. Mas depois foram vendo que aqui toda mulher trabalhava fora e ela também arrumou um emprego”.
É assim mesmo que todos nós vamos-nos adaptando ao jeito de viver em Brasília: em terra de sapo, de cócoras com ele. Mais recentemente, poderíamos até dizer, em terra de sapo barbudo, de cócoras com ele.
Os americanos e ingleses também expressam a mesma crença quando dizem “ Once in Rome, do as the Romans do”.
Cada um se acomoda de cócoras como pode, espelhando-se no vizinho, no amigo, no colega de trabalho e às vezes até nos filhos.
Somos todos sapos, alguns já nascidos às margens do Paranoá, os mais velhos transladados das barrancas de outros rios para cá, nas asas da esperança, na inquietação do pioneirismo. Assim vamos criando nossos próprios modos de viver em Brasília, de conviver bem com as diferenças, de apreciar e compor forró e música sertaneja; chorinho, rock e música erudita. Mandamos nossas crianças para a escola e hoje temos o melhor nível de escolaridade no país. Consequentemente temos também o mais alto Índice de Desenvolvimento Humano- IDH.
Mas não estamos no melhor dos mundos. Nosso Índice de Gini também é alto. É ele que mede a distância entre os estamentos mais ricos e os mais pobres de uma comunidade urbana ou de um país. Mas eu, que levo muito fé em Brasília, acredito que podemos chegar à situação idealizada pelos fundadores da capital, que a viam como um espaço de igualdade social e solidariedade.
PS. A pesquisa em Brazlândia deu origem a muitas outras sobre os modos de falar em Brasília. Entre eles o livro “O Falar Candango”, publicado pela Editora da UnB. São catorze relatos de pesquisa, organizados por mim e por Vera Freitas e Ana Maria Vellasco, como um tributo ao jubileu de ouro de Brasília.Editora da Universidade de Brasília, 2010;
Este texto é um apêndice do meu livro "Do campo para a cidade- estudo sociolinguístico de migração e redes sociais". SP: Parábola Editorial, 2011