Estamos atravessando, nas últimas semanas, um céu de turbulências na área de ensino da língua portuguesa. A imprensa brasileira estranhou o tratamento dado à variação linguística no livro didático, “Por uma vida melhor”, distribuído pelo MEC, no Programa Nacional do Livro Didático – PNLD - a escolas que ministram cursos de EJA, destinados a jovens com idade defasada em relação à série escolar e a adultos não alfabetizados ou semialfabetizados. No capítulo em que a autora, Heloísa Ramos, escreve sobre as diferenças entre a modalidade escrita da língua e a comunicação oral espontânea, traz os exemplos de concordância verbal que geraram discussão. Ao comentar o enunciado “nós pegamos o peixe”, afirmou que “na variedade popular, contudo, é comum a concordância funcionar de outra forma: nós pega o peixe”.
Houve quase unanimidade na reação da imprensa, que criticou a referência à concordância não-padrão. Os jornalistas a consideraram uma metodologia vitanda, que ensinaria o português errado. Por outro lado, muitos linguistas, e até mesmo a Associação Brasileira de Linguística, se apressaram em mostrar que a referência à variação no português do Brasil é salutar, porque de fato esses modos de falar são frequentes na nossa sociedade. Argumentavam eles que a linguística não é uma disciplina normativa ou prescritiva, é uma ciência social que descreve a língua como é efetivamente usada. Contudo, uma pergunta que emergiu dessa controvérsia merece ser considerada atentamente: por que ensinar variação em sala de aula? Este texto é uma tentativa de responder a essa pergunta.
A variação na fala é objeto de estudo da Sociolinguística, ciência que surgiu em meados do século passado, motivada pela preocupação de especialistas em estudos da linguagem com o fraco desempenho escolar de crianças pobres nos Estados Unidos e na Europa. Enfatizava a Sociolinguística a dupla ignorância: a escola ignora a fala dos alunos e os alunos têm dificuldade para entender e assimilar a fala da escola. Diante disso comprometeu-se essa disciplina a lutar pelo respeito às diferenças linguísticas, que passou a descrever cientificamente. Nos centros em Washington D.C. e em outras cidades onde a Sociolinguística teve o seu nascedouro, chegou-se até mesmo a se cogitar de alterar a ortografia em livros escolares de modo a que ela refletisse com mais fidelidade a pronúncia da variedade então conhecida como Black English, e hoje referida como Vernáculo Afro-Americano. Mas essa proposta não foi à frente porque se concluiu que a ortografia do inglês já está tão distante da atual pronúncia da língua que alterações ortográficas poderiam criar mais empecilhos à alfabetização dos falantes do Black English que benefícios.
Esses mesmos estudiosos, entre eles William Labov, descreveram a morfologia e a fonologia dessa variedade, demonstrando sua sistematicidade. William Labov mostrou também, em um artigo clássico, “The logic of nonstandard English”, que falantes da variedade estigmatizada argumentavam oralmente com coerência e lógica impecáveis. Quase todos os trabalhos acadêmicos de Sociolinguística dessa fase inicial desenvolviam análises contrastivas, indicando as regras de fonologia e gramática que diferiam entre as variedades do inglês. Também no Brasil, após várias décadas de pesquisa sociolinguística, já contamos com muitos trabalhos, amplamente documentados com bancos de dados, sobre as diferenças entre a variedade padrão da língua, de natureza suprarregional, e variedades faladas em grupos sociais mais isolados, de cultura predominantemente oral.
Se um professor do Ensino Básico conhece as características da fala do grupo social de onde provêm seus alunos, poderá planejar seu trabalho pedagógico com vistas a ampliar a competência comunicativa desses alunos, habilitando-os a usar outras variantes de mais prestígio, na escrita e na fala quando essa precisa ser monitorada. Todo falante tem de monitorar sua fala de modo a atender às expectativas de seus ouvintes; tal flexibilidade é fundamental para que ele possa ser bem recebido em qualquer ambiente e assim ter mobilidade social.
Recentemente concluímos uma pesquisa na UnB, com apoio do CNPq _ “Leitura e Mediação Pedagógica”_ em que estudamos as diferenças não só nos modos de falar, mas também na visão de mundo dos leitores. Pudemos explicar sistematicamente por que alunos brasileiros têm dificuldades de entender textos de seus livros didáticos. O que dificulta a compreensão não são apenas as diferenças linguísticas, mas as referências a um mundo letrado a que eles não têm amplo acesso. Toda a nossa análise apoiou-se em pressupostos sociolinguísticos, inclusive o relativismo cultural.
Se a variação linguística for discutida na escola, inserida na matriz do multiculturalismo brasileiro, teremos mais oportunidade de discutir a gramática da língua padrão, descrita nos compêndios de gramática normativa, à luz das características da nossa fala brasileira; poderemos identificar os contextos em que as diversas variedades da língua são produtivas; poderemos também ler com mais interesse a literatura brasileira que, desde o Modernismo, incorporou modos brasileiros de falar. E mais, ao trabalhar a leitura em sala de aula, os professores, que são os principais agentes letradores, saberão reconhecer estruturas linguísticas que não pertencem ao repertório dos seus alunos, antecipar as dificuldades, “traduzi-las” e associá-las a variantes mais usuais na linguagem oral coloquial. Poderão ainda construir agendas e elaborar sequências didáticas que visem a capacitar os alunos a se tornarem “bidialetais”, no seu uso da língua portuguesa. A variação linguística não é uma deficiência da língua, é um recurso posto à disposição dos falantes. Insisto, porém, em um ponto: ao ensinar diferentes modos de falar, é preciso que a escola esteja bem consciente e bem preparada para mostrar que a esses modos diferentes de falar associam-se valores sociossimbólicos distintos. A escolha entre os modos de falar não é aleatória, é definida pelos valores vigentes, alguns seculares, que normatizam a comunicação humana e a vida em sociedade. E mais, não se pode perder de vista a noção de aceitabilidade, como avançada pelo antropólogo Ward Goodenough ( Ver texto recente neste portal). Em cada situação , em cada evento ou ato de fala, os interagentes têm expectativas culturalmente definidas sobre o que falar e como falar. Daí a responsabilidade da escola ao trabalhar com a pedagogia linguística. Aos alunos não se podem sonegar os recursos linguísticos que os vão habilitar a modular sua fala (e sua escrita) conforme o que se espera deles, em qualquer papel social que tenham de desempenhar.
Aprender na escola que existem modos diferentes de falar, que podemos ajustar de acordo com as circunstâncias, é um passo importante na formação de nossos jovens. Por isso entendemos que a contribuição da Sociolinguística é crucial na formação dos professores e nos currículos escolares nas escolas brasileiras.
O livro que suscitou a polêmica foi publicado em janeiro de 2016 e é de autoria de Heloísa Ramos.
Stella Maris Bortoni-Ricardo – Professora titular de Linguística da Universidade de Brasília