Para os religiosos, Deus criou o homem, ao final de sua jornada de trabalho dos sete dias da criação. Os belíssimos afrescos de Michaelangelo no teto da Capela Sistina, no Vaticano, registraram para sempre a figura de Deus transmitindo a Adão a fagulha de vida.
Para os agnósticos, foi o homem que criou Deus. A aceitar essa segunda hipótese, temos de admitir que, ao criar Deus, o homem O poupou da principal contingência da condição humana: tudo que começa tem fim.
Não escapa dessa certeza o protagonista da estranha história de Benjamin Button, no filme de David Fincher, que concorre aos Oscars de melhor filme e de melhor ator, para Brad Pitt.
Benjamin Button vive a vida ao contrário, nasce velho e, à medida que o tempo passa, vai-se rejuvenescendo, o que não o livra da morte, depois de ter voltado a ser um bebê de colo.
O que mais me impressionou no filme foram os encontros e os desencontros. Bem o disse o nosso grande Poetinha, Vinícius de Moraes: “ A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida”. Para a maioria dos mortais, concertar os encontros é principalmente uma questão espacial: os encontrantes têm de estar na mesma latitude e longitude, num determinado momento. Button, além de procurar dividir o mesmo espaço com sua amada, teve também de aguardar que a cronologia de suas vidas lhes fosse favorável.
Ele nasceu em Nova Orleans, no exato dia em que terminou a Primeira Guerra Mundial. Ao longo de sua vida, mais desencontrou-se que se encontrou com o seu grande amor . Quando ela era uma linda menina, já afoita, ele, que conhecia sua avó, era um menino ancião, com todas as limitações e os dramas da velhice. Quando ele se torna um magnífico jovem, a quem Brad Pitt empresta sua beleza e juventude, ela estava a caminho de se tornar uma anciã.
Mas houve um momento em que ambos se encontram em pleno vigor de suas vidas e se entregam a uma paixão sem limites. Dessa epifania, nasce-lhes uma menina, cuja sobrevivência e bem-estar ele garante enquanto goza do discernimento da idade adulta. Depois se afasta dela e da mãe, para que a menina pudesse ter um pai de verdade e não um coleguinha de jardim-de-infância.
Segundo Ruth de Aquino, o roteiro do filme aparentemente surgiu de uma citação de Mark Twain, que também levou Francis Scott Fitzgerald a escrever o conto de onde o roteirista, Eric Roth, recolheu o título e a trama do filme. Para Mark Twain, “A vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer aos 80 anos e gradualmente chegar aos 18”. Talvez ele tivesse razão, se essa fosse a regra para todos. Pelo menos, poderíamos conciliar a maior vitalidade com a melhor sabedoria, que é a que se adquire com a experiência. Mas já que não é assim que a natureza imprime o seu curso a todo ser vivente , só nos resta aprender a arte da vida, que é a arte do encontro. Salvador, BA, 30 de janeiro de 2009.
O que eu gosto mesmo de fazer nesta praia de Piatã é caminhar descalça, na areia molhada, deixando que as ondas se aproximem, cubram e descubram os meus pés, no seu incansável vai-e-vem. Vou caminhando e mirando o horizonte, onde às vezes se divisa um navio cargueiro, ou um barco de pesca, que vêm de Sergipe, rumo ao sul.
Eu tinha cerca de sete anos quando vi o mar, pela primeira vez, no Rio de Janeiro. Naquelas montanhas frias da Serra da Mantiqueira, no Sul de Minas, onde nasci, nós crianças nos questionávamos como era possível chegar perto do mar e não enxergar a outra margem. Nossa referência eram os rios, mais propriamente o Rio Verde, que cruza São Lourenço e que inundava a cidade em época de muitas chuvas e grandes enchentes. Mas nada era tão grandioso quanto o mar, exceto Deus, como nos ensinava Casimiro de Abreu: “Eu me lembro, eu me lembro, era pequeno e brincava na praia. O mar bramia...” Mamãe me explicava o que queria dizer ‘bramia’, depois que eu recitava todo o poema para ela conferir se eu o tinha memorizado corretamente.
Ia me esquecendo. Além de caminhar, olhando o horizonte, gosto também de ver meninos soltando pipas. Pipas me fascinam. Gosto tanto que construí uma aula completa sobre a descrição de processos como tipo textual, baseando-me nos procedimentos usados na montagem de pipas, no livro para professores que escrevi junto com Maria Alice Fernandes de Sousa, Falar, ler e escrever em sala de aula (Parábola Editorial, 2008).
Tenho boas lembranças com pipas. Já empinei uma até em praia de muitas pedras e pouco sol, às margens do Lago Eriê, em Ohio. Em inglês, o nome é ‘kite’, Não sei se há outras denominações. Em português temos várias, que mudam conforme a região. O primeiro nome que aprendi foi papagaio. Só vim a chamar papagaio de pipa depois de adulta. E pandorga, só conheço de literatura.
Pipas são um brinquedo internacional, muito popular em Cabul, no Afeganistão, como aprendemos no livro best seller e no filme homônimo, recente. E têm tradição aristocrática. O menino Alberto Santos Dumont gostava de empinar papagaios no sítio Cabangu, inicialmente na fazenda de café de seu avô materno e depois na fazenda de seu pai. Benjamin Franklin inspirou-se nas pipas com que brincava para construir o primeiro pararraio.
Hoje de manhã, andando pela praia vi crianças empinando pipas de muitas cores e formas, e fui repetindo para mim mesma: Eu me lembro, eu me lembro, era pequena e corria pelas ruas ou pelos campos, evitando os fios elétricos, os eucaliptos e as araucárias, que impedissem meu papagaio de alçar vôo. E não é isso que a gente faz a vida toda: fugir dos obstáculos que nos impedem de alcançar os céus?
PS No meu texto de ontem mencionei um passarinho de plumagem branca,chamado louva-deus, como o inseto. Eu estava passando à frente a informação que obtive de um nativo. Hoje fui conferir com outros nativos. O nome correto é lavadeira, e é um passarinho bendito porque já lavou as roupas de Nosso Senhor. O que vi hoje era branco com a cabecinha preta. O de ontem tinha a cabeça vermelha. Talvez nem fosse uma lavadeira.... Já que passarinhos soltos na natureza me deixam tão feliz, seria bom eu começar a aprender um pouco de ornitologia.
Estou de volta a Salvador. Em nenhum outro lugar do Brasil sinto mais fortes nossas raízes. Salvador é uma cidade de arquitetura e traçado portugueses e população africana. Muito sol por aqui, muita música , e daqui a uns dias vamos ter o carnaval. Não estou morta, estou bem viva, graças a Deus, mas não vou atrás do trio elétrico. O abadá é muito caro e , pra falar a verdade, tenho medo de que me pisem nos pés. De fato, nem Caetano ou Gil vão atrás do trio elétrico ( vão lá em cima, no topo do caminhão). Mas acho que já foram atrás dos trios quando esses começaram. Passo os dias embalada pela música da Rádio Educadora da Bahia, trinta anos no ar. Hoje acordei com Elis Regina lamentando ‘tanta gente que partiu, num rabo de foguete...’ E me transportei aos anos sessenta. Essa gente que pegou o rabo de foguete era idealista e ingenuamente convicta de que só a luta armada, à moda do Che, poderia fazer deste país um país justo. Na sua convicção juvenil não se deixava corromper. Como as coisas mudaram... Mas voltemos à música. Até no axé, que eu costumava execrar, tenho percebido uma boa dose de humor pra falar de amor : “A fila andou, eu te falei...” Comprei uma pulseira de balangandãs. Cada pingente é uma homenagem a um orixá. E tem também uma figa, que é pra dar sorte. Em todas as ocasiões. Muito bom pra mim nesse período de pré -aniversário. Ia me esquecendo das frutas... Minha favorita é a seriguela, assim mesmo sem trema. Mas tem o sapoti, que é mais suave, e fruta-do-conde, que alguns conhecem como ata, e que por aqui chamam pinha, e é bem baratinha. Só mesmo a posse do Obama me desconcentrou um pouco dessa busca de baianidade. Se saio de casa, e caminho pela grama do condomínio, já vejo muitos pássaros, o louva-deus ( que não é o inseto, é um passarinho de cabecinha vermelha) e a rolinha fogo-pagou. Mas não a ouvi cantar. Nas imediações de minha casa em Brasília, ela canta o tempo todo. Vi também muitas lagartixas tomando sol, e me lembrei do Sorriso do Lagarto do João Ubaldo: grande autor, grande história na Ilha de Itaparica. E falando nisso, ainda vou dar uma volta no Pelô, para homenagear Jorge Amado e ver a estátua do fundador, Tomé de Sousa, e a de Bispo Sardinha, o primeiro bispo do Brasil, aquele que acabou comido por índios (carijós?) antropófagos. Minha estada na Bahia dura de três a quatro semanas, tempo de recarregar as baterias. Tempo de entrar em harmonia com o que existe de mais genuíno na nossa cultura brasileira .