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Para pensar no Ano Novo

“Os parâmetros curriculares incorporam toda a noção construtivista. Especificamente na língua portuguesa. O construtivismo causa confusão na cabeça dos professores porque ninguém sabe o que é direito. Antigamente, bem ou mal, os professores alfabetizavam. Se o menino não soubesse ler e escrever na série certa, todo mundo ficava sabendo, cobrava. Aí começaram a dizer que não existe prazo, que é um processo permanente, que o menino descobre sozinho. Essa falta de clareza já causou muito estrago. A alfabetização é o maior exemplo dos problemas da falta de foco porque é a primeira etapa. Se não for bem feita, as outras disciplinas estão comprometidas.”(João Batista Araújo Oliveira – em ‘Entrevistas’, aí em cima)

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Revista Cláudia, 09.08, pg. 64

 

      O que têm em comum países tão diferentes como Finlândia. Coréia e Espanha? Não são os costumes nem a localização. O que os aproxima hoje é a prioridade absoluta que dão à educação.

      Finlândia. Coréia e Espanha são bons exemplos de uma transformação radical no cenário econômico mundial ao longo das últimas décadas: a revolução provocada pela educação.      Esse trio pôs em prática uma nova cartilha de políticas educacionais contínuas (os governos mudam, mas não o compromisso de mantê-las) e focadas: passaram a selecionar com mais rigor os professores, reformaram as leis educacionais e ampliaram o tempo de permanência na sala de aula. Como fruto disso, os três colhem intenso desenvolvimento social.

      A competição econômica, a globalização e o surgimento de uma civilização baseada no conhecimento fazem com que a educação saia do plano da retórica, circule nos gabinetes de governo, invada as rodas de empresários e passe a integrar a agenda de todo cidadão.

      Basta pensar no que vem acontecendo em nossas próprias casas. De repente, siglas como Enem. Pisa, Ideb e MBA passaram a fazer parte do planejamento do futuro dos filhos. Embora uma pesquisa realizada em 2006 pelo Ibope indique que a educação é apenas a sétima preocupação do brasileiro, atrás de drogas e desemprego, convém ficar de olho: em breve, estará entre as primeiras preocupações. O país começa a despertar para essa nova corrida do ouro.

      Afinal, por que a educação faz tanta diferença? Trata-se de uma dimensão da vida em sociedade que afeta todas as demais. Incide sobre a qualidade da representação política, a distribuição de renda, o desenvolvimento econômico e a justiça social, afirma o ministro da Educação. Fernando Haddad. Talvez o impacto mais visível seja sobre a renda. Segundo um estudo realizado em 2007 pelo economista Marcelo Néri, da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, o salário médio de um médico pós-graduado chega a ser 22 vezes maior que o de um analfabeto.

      Melhorar o nível de educação de um país incide até mesmo sobre o planejamento familiar. Aos 50 anos, uma mulher que completou ao menos o ensino básico tem, em média, um filho a menos do que o conjunto das mulheres dessa faixa etária.

      O ministro destaca ainda a mudança de demandas dos menos favorecidos. “Com educação, a tendência é que as famílias exijam mais qualidade.

      Nossos vizinhos acordaram antes: em 1960, cerca de 21% da população do Chile tinha ensino superior. Hoje, são 36%. No Brasil, passamos de pouco mais de 12% para minguados 16% no mesmo período — menos da metade dos 36% que a Argentina registrava já em 1995, segundo dados da Unesco, o órgão das Nações Unidas para a educação e a ciência.

      O caso da China é também emblemático. O economista Samuel Pessoa, da Fundação Getulio Vargas lembra: A China imperial do XIV atingiu níveis econômicos que o império britânico só alcançaria três séculos depois”.

      Uma característica marcante da sociedade chinesa dessa época foi a meritocracia. Na elite dos mandarins (os altos funcionários públicos), a aquisição do conhecimento era condição básica para ascender.

      Hoje, projeções mostram que a China quintuplicará o número anual de graduados do ensino superior até 2015. passando de 1 milhão para 5 milhões de pessoas — o dobro dos Estados Unidos.

      No Brasil, a preocupação com a educação só virou política de governo nos anos 30, com Getúlio Vargas. Criou-se o primeiro Ministério da Educação. Frente a tanto o ex-ministro Paulo Renato de Souza lamenta: Começamos 100 anos depois de outros países latino-americanos, 154 anos depois da Europa”.

      Como resultado, amargamos indicadores vergonhosos: em 1960, 46% da população brasileira era analfabeta e metade das crianças e jovens de 7 a 14 anos estava fora da escola. Hoje, o analfabetismo está em torno de 11% e não há crianças fora da escola, mas a briga é pela qualidade.

      Paradoxalmente, o Brasil foi um dos países que mais cresceu ao longo do século 20. Para Paulo Renato, isso ocorreu porque o desenvolvimento se centrou em atividades primárias, como a agricultura e a exportação de minérios (que exigem pouca qualificação) e na manutenção de uma economia muito fechada.

      O fato de termos uma população majoritariamente leiga levou à construção de uma das sociedades mais desiguais do planeta.

      A educação é a saída para mudar esse cenário: hoje, sabe-se que o caminho não é crescer e investir em educação, mas educar para crescer.

      Todos os países que passaram de subdesenvolvidos a devolvidos investiram muito em educação. Ou seja: educação antes, do progresso.

      Como exemplo,  o economista Samuel Pessoa lembra a Alemanha XIX - cujo pensamento determina as ânsias de desenvolvimento atuais, através do mundo! Nos Estados Unidos, a ligação entre Saber e Moeda predomina desde o XVIII. Mais recentemente, a Irlanda e a Espanha também estão crescendo após fazer uma minirrevolução educacional.

      Para o ex-presidente do IBGE, Simon Schwartzman, diretor do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), o sistema econômico dependerá desse esforço. “Uma sociedade analfabeta precisará trazer especialistas de fora e será calcada na mão-de-obra desqualificada.”

      A Coréia do Sul surge como o exemplo mais citado por economistas do mundo todo. Arrasado por uma guerra civil em meados do século passado, esse país viveu um surpreendente processo de desenvolvimento cuja locomotiva foi a educação. Num ranking de porcentagem da população com o ensino médio concluído, a Coréia do Sul passou de um distante 272° lugar, na década de 1960, para o 12° lugar nos anos 1990, desbancando os Estados Unidos, que caíram de 1° para 13° posição. Graças a avanços como esse, Coréia do Sul vem crescendo 9% ao ano.

      No coração da mudança está a valorização do professor. O salário inicial dos mestres coreanos está entre os mais altos do mundo, e a média supera em duas vezes o que se paga em países desenvolvidos. Isso faz com que os professores sejam selecionados entre os melhores formandos da universidade.      No Brasil, a carreira atrai os menos preparados.

      Outro exemplo recente é o da Espanha. Com grande número de imigrantes vindos da África e das ex-colônias ibero-americanas, o país conseguiu equilibrar os resultados acadêmicos obtidos por alunos de diferentes origens sociais, segundo o pesquisador espanhol Álvaro Marchesi, secretário-geral da Organização dos Estados Ibero-americanos - OEI. “A transformação educacional espanhola incorporou a valorização da diversidade”, explica ele.

      Na Espanha nasceram iniciativas pedagógicas consagradas no mundo todo, como trazer para o currículo questões como a educação sexual e a igualdade entre sexos. A mais respeitada aferição de qualidade dos sistemas de ensino do mundo é realizada por meio do rigorosíssimo Pisa, sigla de Programme for International Student Assessment. Este programa criado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) avalia o desempenho de alunos de 15 anos em áreas como matemática, linguagem e ciências. Os resultados, divulgados a cada três anos, podem forçar a mudança de políticas e derrubar ministros. “0 Pisa vem mostrando que as perspectivas sociais e econômicas dos países dependem da educação de seu povo”, afirma Andreas Schleicher, diretor da Divisão de Indicadores e Análise do Departamento de Educação da OCDE.

      Os números divulgados pela OCDE (em dezembro de 2007, relativos à avaliação aplicada em 2006) trouxeram informações importantes sobre a educação brasileira. Além de confirmar o Brasil entre os últimos do ranking, o estudo mostrou que o nosso problema educacional não se encerra na escola pública nem na população mais carente: o nível GERAL da escola brasileira situa-se abaixo da média mundial. Em ciências, a maioria dos alunos mistura fatos com opiniões pessoais. Em matemática, em uma escala que vai de 1 a 6, 73% dos alunos brasileiros ficaram no patamar mais baixo.

      “Sem educação, não haverá crescimento sustentável”, afirma o ex-secretário da Educação de Pernambuco Mozart Neves Ramos, presidente do Todos pela Educação - movimento de empresários do qual faz parte Jorge Gerdau Johannpeter, que dirigiu até há pouco um dos maiores conglomerados siderúrgicos das Américas. “Só conseguiremos mudar a educação se mobilizarmos toda a sociedade, E isso significa muito mais do que mandar nossos filhos para a escola ‘, acredita Gerdau.

      Notável é que o país parece ter acordado para o problema... “Formou-se a consciência histórica que marca os momentos das grandes transformações numa nação”, acredita o ministro Fernando Haddad. Um bom sinal é o estabelecimento de metas de longo prazo que serão avaliadas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).       Espera-se que, até 2021, as escolas brasileiras atinjam o patamar das nações da OCDE, que obtêm média de 6 pontos numa escala de O a 10. A média das escolas de ensino fundamental ainda é 3,8, mas houve avanços entre 2007e 2008. Se cumprirmos as metas a que nos propusemos, ano após ano, chegaremos lá”, diz o ministro Fernando Haddad.

 

 

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MAURICIO PULS
da Folha de S.Paulo
NATÁLIA PAIVA
colaboração para a Folha de S.Paulo

Editado há 40 anos pelo general Costa e Silva, o AI-5, o principal símbolo da ditadura militar, é totalmente ignorado por 82% dos brasileiros a partir dos 16 anos. E, dos 18% que ouviram falar algo sobre ele, apenas um terço (32%) respondeu corretamente que a sigla se referia ao Ato Institucional nº 5.

Editado em 13 de dezembro de 1968 pelo então presidente, o general Costa e Silva, o AI-5 autorizava o Executivo a fechar o Congresso, cassar mandatos, demitir e aposentar funcionários de todos os poderes. O governo podia legislar sobre tudo, e suas decisões não podiam ser contestadas judicialmente. Em dez anos, o AI-5 serviu de base para a cassação de mais de cem congressistas. A censura atingiu cerca de 500 filmes, 450 peças, 200 livros e 500 canções.

Passados quase 30 anos de sua extinção, a lembrança do AI-5 vem se desvanecendo. Como observa o cientista político Marcus Figueiredo, do Iuperj, isso resulta do fato de que boa parte da população nasceu após 1968: O fato tem 40 anos e não faz parte do calendário das datas nacionais. Mas mesmo no estrato de pessoas com 60 anos ou mais (indivíduos que tinham ao menos 20 anos quando o AI-5 foi editado), só 26% dizem ter ouvido falar dele.

O conhecimento sobre o AI-5 cresce à medida que avança a escolaridade formal. Só 8% das pessoas com ensino fundamental ouviram falar do AI-5. A taxa sobe para 53% entre quem tem nível superior, mas só 12% desse grupo se diz bem informado.

Para o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, professor aposentado da USP e da Unicamp, a variável decisiva é a escolaridade: É natural que o desconhecimento exista. A população comum é muito desinformada sobre questões políticas. O pessoal mal lê jornal. Isso não é só no Brasil. Foi feita uma pesquisa com jovens da Alemanha, e a grande maioria nunca tinha ouvido falar de Hitler.

Na opinião do historiador Marco Antônio Villa, da UFSCar, a pesquisa não revela nenhuma surpresa: Nós somos um país sem memória e despolitizado. Se a política fizesse parte do cotidiano, isso não aconteceria. É um duplo problema. Isso permite que quem colaborou com a ditadura possa se travestir de democrata.

Para o historiador Carlos Guilherme Mota, da USP, a pesquisa do Datafolha é previsível e resulta de um ensino ruim, da falta de financiamento às universidades e da falta de interesse num projeto nacional calcado no conhecimento histórico: Vivemos num país em que as elites não têm preocupação em incentivar a educação e a pesquisa histórica, diz.

Mais do que um fiasco do sistema escolar, a historiadora Denise Rollemberg, da UFF, diz tratar-se de um processo que envolve esquecimento e reconstrução da história: No Brasil pós-abertura política, quando a democracia passa a ser valorizada, há uma reconstrução do passado a partir do presente. Nessa reconstrução esquece-se o que houve para esquecer-se do aval dado.

Daniel Aarão Reis, também da UFF, concorda. Diz que que sempre que uma sociedade muda de valores surge o desafio de compreender por que se tolerou a situação agora deixada de lado: É muito mais simples não falar do assunto, esquecer.

Um sintoma de que o apoio à ditadura foi mais amplo do que aparenta transparece na pergunta na qual o pesquisador, após explicar o que foi o AI-5, questiona se Costa e Silva agiu bem ou mal ao editá-lo: 48% avaliam que ele agiu mal, e 26% acham que ele agiu bem. A pesquisa foi feita de 25 a 28 de novembro com 3.486 pessoas. A margem de erro é de dois pontos.

 

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Artigo para Livro Comemorativo ABRALIN 40 anos

 

 

 

É natural que em um país com graves problemas sociais, relacionados à histórica má distribuição de renda e à parca tradição de cultura letrada, como é o caso brasileiro, as ciências sociais tenham desenvolvido aqui um viés aplicado às questões socioculturais. A lingüística não fugiu a essa regra.

Desde a segunda metade do século XX, nos estágios formativos da ciência lingüística no Brasil, os pesquisadores pioneiros apontaram para a necessidade de seus estudos assumirem um compromisso com os problemas lingüísticos brasileiros tais como a documentação das línguas brasileiras; a descrição de línguas sobreviventes em comunidades de imigrantes; as características e o status da norma brasileira da língua portuguesa e o ensino dessa norma nas escolas do país. Joaquim Mattoso Câmara Jr. (1957), não obstante seu intenso labor para produzir os primeiros textos de lingüística descritiva do português brasileiro, encontrou tempo para examinar erros escolares, associando-os às características do português falado no Rio de Janeiro, em trabalho que deixa patente a vocação da lingüística nacional para o envolvimento com a questão do ensino do português como língua materna no Brasil.

            Na década de 1960, Rodrigues (1966) produz um artigo, hoje antológico, sobre as tarefas da lingüística no Brasil. Na década seguinte, Vandresen (1973) retoma o tema, dessa vez enfocando as tarefas da sociolingüística. Em ambos os trabalhos, é enfatizado o compromisso da lingüística brasileira com o ensino sistemático da língua portuguesa no país.

            A evolução de duas premissas básicas da lingüística estruturalista do século XX criou as condições para a emergência do ramo da lingüística que veio a ser denominado sociolingüística, graças ao seu caráter interdisciplinar. As duas premissas são o relativismo cultural e a heterogeneidade inerente e ordenada na língua de qualquer comunidade de fala. O primeiro foi herdado da tradição antropológica, segundo a qual nenhuma cultura ou língua de uma comunidade deveria ser classificada como inferior ou subdesenvolvida, independentemente do nível de tecnologia ocidental que aquela comunidade já tivesse atingido. Com base nesse princípio, os lingüistas nos Estados Unidos propuseram a “equivalência funcional e a igualdade essencial de todas as línguas e rejeitaram estereótipos evolutivos equivocados” (HYMES, 1974, p. 70).

            Num primeiro momento, o conceito de relativismo cultural aplicou-se à comparação entre línguas, mas quando a premissa da heterogeneidade inerente foi postulada pela sociolingüística variacionista, no final dos anos 1960, esse conceito passou a aplicar-se também às múltiplas variedades e estilos de uma mesma língua (BORTONI-RICARDO, 1997).

            Desde o seu berço a Sociolingüística, tanto na sua vertente variacionista quanto na sua vertente qualitativa, demonstrou preocupação com o desempenho escolar de crianças provenientes de diferentes grupos étnicos ou redes sociais. Desde então muito tem contribuído para os avanços na pesquisa das questões educacionais em diversos países do mundo, principalmente nas últimas quatro décadas. O objetivo tem sido o de construir novas metodologias que auxiliem professores a desenvolver em seus alunos as habilidades cognitivas necessárias a uma aprendizagem mais ampla, à expansão de sua competência comunicativa (HYMES, 1974) e à capacidade de desempenhar tarefas escolares cotidianas. Entretanto, essa não é uma missão fácil porque tratar de problemas educacionais é uma ação que envolve questões mais abrangentes e não apenas aquelas restritas ao ambiente escolar. Além das consideradas como puramente pedagógicas, existem outras que estão subordinadas a dimensões macro-sociais graves, relacionados à desigualdade na distribuição do capital monetário, que por sua vez gera a desigualdade social (FREITAS, 1996).

            Paralelamente à evolução da sociolingüística quantitativa já referida, estudiosos da antropologia da educação e lingüistas, na década de 1960, começam a constatar, por meio de pesquisas etnográficas, o acentuado etnocentrismo existente nas teorias que tentavam explicar a causa do fracasso escolar de alunos provenientes de classes sociais minoritárias ou trabalhadoras. Entre essas teorias, a mais habitualmente usada como explicação do insucesso do aluno foi a do deficit genético ou ideologia do dom, que defende como causa do fracasso escolar as desigualdades naturais de aptidão e de inteligência entre os indivíduos, ponto de vista esse legitimado pela psicologia diferencial e pela psicometria, e que Soares (1986) considera ser um argumento dissimulado subjacente a um discurso que “pretende” ser científico.

A essa explicação seguiu-se outra, a teoria do deficit cultural, intimamente relacionada aos fatores ambientais, ao estímulo recebido pelo indivíduo e à alimentação. A teoria do deficit cultural, também chamada do deficit verbal ou social, foi largamente aceita na época de sua concepção. Postulava uma ausência ou falta de cultura dos alunos pertencentes a grupos minoritários da sociedade, causada pelo ambiente cultural “empobrecido” em que viviam eles e suas famílias, também considerado cognitivamente desestimulante, principalmente, no que dizia respeito à linguagem. O fracasso do aluno, de acordo com esse pensamento, teria origem no seu background cultural. As diferenças entre a linguagem e as experiências que a criança traz de casa e a linguagem e experiências demandadas pela escola resultariam no insucesso do aluno. De acordo com essa teoria, as crianças de classes sociais desfavorecidas sofriam privações que poderiam ser de ordem material ou cultural. Crianças oriundas de meios em que as famílias sofriam as conseqüências do desemprego, da pobreza e da superpopulação eram as que mais sofriam o risco de fracassar na escola (STUBBS, 1980). As crianças pobres eram consideradas inferiores intelectual e moralmente. O meio ambiente e o background lingüístico do aluno estariam, portanto, relacionados ao seu sucesso ou fracasso na vida escolar. Erickson (1987) comenta, considerando os argumentos da teoria do deficit cultural, que o conceito de nutrição (nurture) substituiu o conceito de natureza (nature) como principal razão para o fracasso escolar. Ambas as teorias deixavam nítido o preconceito de raça e de cultura, embora essa postura não tenha sido claramente assumida pelos seus mentores. William Labov (1972), com o objetivo de argumentar contrariamente a essas teorias, realizou estudos dialetais contrastivos, mostrando que a variação é um fator inerente à língua. Entretanto, muitas foram as críticas que apontavam a proposta da Sociolingüística educacional como limitada a uma dimensão micro-social, ingênua e simplista, tendo sido a crítica de John Ogbu (ERICKSON, 1987), a mais severa de todas. Erickson conclui que a continuidade das investigações no final da década de 1960 permitiu que antropólogos norteados por uma visão sociolingüística identificassem no âmbito da escola importantes fatores que influenciam o rendimento escolar e o ânimo dos alunos. Ou seja, que o estilo de comunicação entre professores e alunos pode ser uma das causas do fracasso escolar. Essa posição tinha um aspecto de neutralidade, pois procurava analisar o fato do fracasso escolar sem buscar culpados e mostrava uma nova forma de interpretá-lo.

            Sabe-se hoje que o fracasso escolar depende também de fatores externos, que estão fortemente ligados às condições socioeconômicas do aluno. O resultado das injustiças sociais e as limitadas possibilidades de ascensão social a que estão sujeitos os indivíduos que não conseguem uma educação de qualidade manifesta-se por meio de um desinteresse pelas atividades intelectuais e pelo desestímulo em relação a tudo que a escola propõe.

A teoria da reprodução (Bourdieu e Passeron, 1975) postula que a escola reproduz as relações do sistema capitalista, enfatizando a relação existente entre ela e a organização do trabalho e afirmando que essa instituição estaria reproduzindo em seu contexto as desigualdades estabelecidas pela sociedade. O foco da teoria é analisar de que forma o capital cultural estaria influenciando contextos particulares, como, por exemplo, a escola. Destacam-se nessa teoria a valorização das ações humanas e as relações reflexivas das interações sociais como duas importantes contribuições dadas pelos estudos interpretativistas de natureza sociolingüística à questão educacional.            

            Embora algumas críticas tendam a apontar a sociolingüística como algo voltado apenas para a micro-realidade de sala de aula, é notório que isso verdadeiramente não ocorre. O que a Sociolingüística faz é buscar respostas para questões educacionais dentro do universo da escola. Com isso, ela envolve-se em temas consideravelmente mais amplos que se inserem no contexto social maior, conciliando os aspectos micro e macro do processo. E é para esse contexto que a escola deve preparar o indivíduo.

Os ecos do envolvimento da Sociolingüística variacionista e interacionista com os problemas educacionais nos países do Norte chegariam rapidamente ao Brasil. Suas primeiras manifestações podem ser encontradas no empenho dos estudiosos em refutar o chamado preconceito lingüístico e em recomendar que a língua efetivamente usada nas comunidades de fala fosse considerada na pedagogia da língua materna. O estado de São Paulo foi pioneiro na difusão dessas idéias. Em 1978, Ataliba Castilho et alii produzem para a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo publicações relevantes como subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o segundo grau.

Na década seguinte uma grande quantidade de livros foi publicada, dando continuidade às propostas educacionais de bases lingüísticas, entre os quais, queremos ressaltar, muitos tiveram seu fulcro nas teorias sociolingüísticas. Mencionaremos aqui apenas os títulos que serviram de fundamento para a proposta curricular no Distrito Federal no início dos anos 80, mesmo correndo o risco de produzirmos uma listagem com muitas lacunas, pelo que já nos penitenciamos. Na área de alfabetização, citamos Eglê Franchi (1984) e Paulo Freire (1982); no ensino da leitura e escrita para séries posteriores, constavam da referida proposta João Wanderley Geraldi (org., 1984), Rodolfo Ilari (1985), Mary Kato (1985), Alcir Pécora (1983). Voltados especialmente para a leitura tivemos Marisa Lajolo (1982), Maria Helena Martins (1983), Ezequiel Theodoro da Silva (1983) e Regina Zilberman (org., 1982). Alguns autores ocuparam-se em especial com o ensino da gramática: Evanildo Bechara (1985), Celso Pedro Luft (1985) e Mário Alberto Perini (1985), enquanto outros trataram da questão de uma perspectiva filosófica: Maurizzio Gnerre (1985) e Magda Soares (1986).

À medida que chegavam ao mercado editorial obras com recomendações importantes para o aprimoramento do ensino da língua portuguesa nas escolas brasileiras, pôde-se observar a ocorrência de algumas mudanças de postura, em especial um esforço dos livros didáticos para substituir a excessiva ênfase na terminologia gramatical pelo tratamento da língua em uso, embora ainda haja muito que fazer para tornar mais eficiente o trabalho pedagógico com a leitura e a escrita nas nossas escolas.

Há que se chamar atenção especialmente para um fenômeno bem brasileiro. Os cursos de Letras têm sido razoavelmente ágeis na inclusão dos resultados da pesquisa lingüística em seus currículos, mas esses cursos geralmente não se ocupam da formação do professor das séries iniciais, nem tampouco do alfabetizador. Seu foco tem sido a formação de professores para as séries conclusivas do ensino fundamental e para o ensino médio. A formação do alfabetizador e do professor das séries iniciais fica a cargo dos cursos de Pedagogia e Normal Superior, este último implantado somente na última década. Em alguns estados brasileiros ainda existem os cursos de magistério de nível médio, mas em outros a formação que esses cursos forneciam hoje está sendo realizada em nível superior. No entanto, os cursos superiores responsáveis pela formação dos alfabetizadores e professores de séries iniciais incluem em seus currículos muito pouca informação lingüística. O resultado é que a pesquisa resultante dos estudos da linguagem acaba por ser pouco aproveitada, justamente na tarefa de alfabetização e no ensino inicial da leitura e da escrita, o que em parte poderia explicar os resultados tão ruins que a sociedade brasileira vem colhendo, com a aplicação de exames como o SAEB, a Prova Brasil, o SARESP, o PISA, entre outros. Estamos sugerindo aqui que a aplicação dos resultados da pesquisa lingüística, e particularmente da pesquisa sociolingüística, no esforço de formação de professores do ensino fundamental poderia contribuir efetivamente para a qualidade dessa formação, o que haveria de refletir-se gradualmente no desempenho de nossos alunos.

É interessante observar ainda que os programas recentes de educação continuada dos docentes, de iniciativa do Ministério da Educação e de secretarias municipais e estaduais de educação, como o Praler e o Pró-letramento, entre outros, têm-se preocupado mais em transmitir aos professores noções de lingüística que os cursos de formação inicial. O seguinte fragmento do fascículo “Da fala para a escrita 2”, de autoria de Stella Bortoni, que compõe o módulo 1 do Programa de Alfabetização e Linguagem da Rede Nacional de Formação Continuada de Professores (MEC SEB UnB, 2007) é bem ilustrativo dessa tendência. “Toda vez que duas ou mais pessoas se envolvem numa interação verbal, cada uma delas cria expectativas sobre a forma como ela própria e seus interlocutores vão-se comportar. Queremos dizer que, em uma interação face a face, ou mesmo mediada pelo telefone ou pelo computador, todas as pessoas envolvidas seguem normas sociais que definem o seu comportamento, particularmente o seu comportamento lingüístico. Se todas elas consideram a interação em que estão envolvidas como informal, tenderão a empregar formas lingüísticas adequadas às interações informais. Se uma delas tiver uma interpretação diferente e considerar a situação como formal, poderá vir a empregar formas inadequadas para a situação. Da mesma maneira, em uma situação formal, se um interlocutor escolher usos lingüísticos informais, sua fala resultará inadequada para a situação. Mas veja bem: às vezes uma pessoa reconhece que a situação é formal, dispõe-se a monitorar-se, mas lhe faltam recursos comunicativos próprios da fala monitorada. É por isso que a escola precisa empenhar-se na ampliação dos recursos comunicativos dos alunos. Dispondo de uma gama mais ampla de recursos comunicativos, os alunos, sempre que precisarem e desejarem, saberão monitorar sua fala, ajustando-se às expectativas de seus interlocutores e às normas sociais que determinam como as pessoas devem comportar-se em cada situação. Ao fazer isso estão seguindo normas sociais e serão bem recebidos pelos seus interlocutores. Lembre-se de que as normas sociais que definem um comportamento lingüístico adequado podem ser implícitas, isto é, fazem parte das crenças e dos valores que as pessoas têm. Mas podem ser explícitas também. É o caso das normas gramaticais, que são explícitas.  Mas não podemos nos esquecer de que as gramáticas normativas não admitem flexibilidade. Não levam em conta a noção de adequação. São prescritivas: abonam uma forma considerada correta e rejeitam as que são consideradas ‘erro’”.

           

A realidade e a prática em sala de aula têm mostrado que a Sociolingüística voltada para a educação pode contribuir de forma significativa para melhorar a qualidade do ensino da língua materna em cursos de formação de professores alfabetizadores porque trabalha com os fenômenos da língua em uso, com base na relação língua e sociedade e voltada para a realidade dos alunos.

Licenciandos em cursos de Pedagogia que recebem formação sociolingüística estão mais bem preparados para lidar com o ensino da língua materna, pois se tornam mais eficientes como mediadores e co-construtores do conhecimento lingüístico necessários aos alunos para sua participação nas práticas sociais que acontecem na escola e na sociedade.

No restante do capítulo vamos analisar fragmentos coletados pelas autoras deste texto, em um exercício em que alunos do curso de Pedagogia da Universidade de Brasília refletem sobre fenômenos presentes nos modos de falar e nos modos de escrever o português do Brasil. As análises realizadas por esses estudantes, que tiveram acesso a conhecimentos sobre ensino de língua, a partir da perspectiva da sociolingüística, demonstram um saber e uma capacidade de análise de textos de crianças em início do processo de alfabetização que não lhes teriam chegado de forma sistemática sem a contribuição da Sociolingüística, como, por exemplo: identificação de regras variáveis da língua portuguesa, de erros ortográficos oriundos da transposição para a escrita de fenômenos da fala, de erros ortográficos decorrentes do pouco domínio que a criança alfabetizanda possa ter em relação às convenções do sistema ortográfico da língua, além de noções de monitoração estilística e do conceito de competência comunicativa, entre outros aspectos importantes.

 

Análises sobre o texto de Marcelo, 7 anos, 2ª série.

Os exemplos de análises referentes ao texto seguinte mostram que os pedagogos em formação já aprenderam, nas noções de fonologia supra-segmental, com base em Mattoso Câmara Jr (1970, p. 63), que o acento em português tem tanto a função distintiva quanto a delimitativa. Numa seqüência de vocábulos sem pausa, num mesmo grupo de força, pode-se depreender no vocábulo fonológico a alofonia das vogais médias e e o em sílabas pré-tônicas ou átonas finais (BORTONI-RICARDO, 2006). Mesmo não dispondo de terminologia técnica mais precisa, demonstram que estão alerta para a grafia de monossílabos átonos que antes não lhes parecia constituir um problema potencial na aprendizagem da escrita, já que sua estrutura silábica é a canônica, CV, ou apenas uma vogal,  geralmente consideradas de menor dificuldade.

 

“O papagaio i a jibóia

O papagaio tava passeando na floresta e quando a jibóia apareceu e o papagaio gritou aaaaaaaa!!!  e ele siu voando e ele contou para o amigo”

 

1.      Trata-se de uma criança que está sendo inserida na cultura de letramento, pois já domina alguns conceitos previstos na gramática normativa, como a acentuação da palavra jibóia. Porém, esse domínio ainda é limitado, tendo em vista que escreveu a conjunção “e” com a letra “i” que reflete melhor a sua pronúncia.

2.      É visível no texto do Marcelo da 2ª série que sua competência na língua escrita é bastante desenvolvida para uma criança de sua idade, mas ainda precisa ser trabalhada para que ele possa superar alguns equívocos, como, por exemplo, a troca da letra “e” pela letra “i”

3.      Nesse trecho Marcelo reproduziu o padrão de sua pronúncia na escrita,  escrevendo a conjunção “e” da forma como a pronuncia. Em “O papagaio tava passeando na floresta...” grafou a forma verbal “passeando” de acordo com as normas ortográficas, recuperando o segmento “d” que normalmente não aparece na sua pronúncia.

4.      “O papagaio i a jibóia”. Nesse trecho podemos notar que o aluno tem um bom domínio da escrita, tendo em vista sua série. Ele escreve de acordo com a expectativa da norma escrita as palavras “papagaio” e “jibóia”. Além disso, tem domínio sobre as regras de acentuação, como podemos notar na palavra jibóia. Porém, o aluno demonstra não conhecer ou não ter domínio da forma escrita da conjunção “e”, e a escreve exatamente como fala “i”.

5.      “O papagaio tava passeando...” A tendência de suprimir a sílaba inicial “es” do verbo “estar” já é uma característica comum na sociedade, e ao escrever o aluno tende a suprimi-la também, tendo em vista que o tem como correto.

6.      Situação: O papagaio i a jibóia. Nesse caso podemos perceber a troca da vogal “e” pelo “i”. Isso ocorre pelo fato que o e é uma vogal média e é pronunciada como i em sílabas de tonicidade 1 e 0 em um grupo de força.

7.      O aluno utiliza a letra “i” para escrever a conjunção “e”, erro que pode ser explicado porque nessa faixa etária a criança, em processo de alfabetização, escreve da maneira que ouve e fala.

8.      “Tava”: O aluno pronuncia a forma verbal “estava” não como a língua escrita prevê. É comum que os alfabetizandos reproduzam na fala as características da modalidade oral do português do Brasil, de maneira mais específica as características de seu grupo social.

9.      “O papagaio i a jibóia”: Nesse caso o aluno, ao invés de usar o “e” usou o “i”. Isso ocorre porque a sílaba tem tonicidade 1 no grupo de força.

10.  “O papagaio tava passeando (...)”. Quando não monitoramos a fala, a tendência é suprimir a sílaba “es” nas formas do verbo “estar”. E da mesma forma que os alfabetizandos falam, também tendem a escrever. Ao invés de escrever “estava” o aluno escreveu “tava”.

11.  “O papagaio tava passeando”. O aluno Marcelo escreveu a palavra “estava” do jeito que ele e a maioria dos brasileiros pronunciam. Ele já entende a diferença entre a língua oral e a escrita. Sabe que na língua oral ele pode pronunciar ou não o gerúndio “ndo”, mas que na escrita precisa se monitorar para recuperar essa ausência.

Em nossa fala não-monitorada costumamos pronunciar as formas do gerúndio (“falando”; “aprendendo”; “saindo”) suprimindo o d. Isso acontece porque os fonemas n e d são articulados na mesma região da boca. Por serem fonemas muito próximos o n tende a assimilar o d.

12.  “O papagaio i a jibóia”: Nesse caso a criança grafa a vogal “e” como ela se apresenta foneticamente, ou seja, com o som de “i”, mas também grafa perfeitamente a palavra jibóia, fazendo uso correto da consoante “j” e da acentuação gráfica.

13.  O aluno Marcelo já possui competência comunicativa, mas ainda apresenta alguns erros na escrita, quando ele escreve como se fala, usando “i” em vez de “e”. Outro erro cometido decorre de uma desatenção quando escreveu “siu” em vez de “saiu”.

14.  “O papagaio i a jibóia”. Em quase todas as variedades do português brasileiro, as vogais e e o, quando ocorrem em sílabas átonas, antes ou depois da sílaba tônica, são pronunciadas i e u, respectivamente. Nesse caso houve uma troca da vogal e pela vogal i na grafia da conjunção, por essa ser um monossílabo átono que funciona como uma sílaba pré-tônica das palavras seguintes.

15.  “O papagaio i a jibóia”: O aluno grafou o fonema e quando se encontra em sílabas átonas no grupo de força, com a letra “i”. Seguindo, portanto, a pronúncia.

16.  “O papagaio i a jibóia”. A troca da vogal “e” pela vogal “i” é um fenômeno comum. Nesse caso ele se dá pela interferência da fala na escrita. Pronuncia-se “i” o que se escreve “e”, como na palavra “ele”, onde verdadeiramente se diz “eli”.

17.  “O papagaio tava passeando”. Ao escrever, a criança tende a suprimir a sílaba suprimida na fala. E nós, de um modo geral, tendemos a suprimir em nossa fala a sílaba “es” nas formas do verbo “estar”.

 

 

Análises sobre o texto de Patrícia, sem informação sobre idade e série

Nos fragmentos de análise sobre o texto seguinte, observa-se que os alunos atentaram para a regra variável gradual da supressão do segmento r final e de desnasalização de sílabas finais. Fazem também a distinção entre características da escrita associadas a traços da língua oral e aquelas que se explicam simplesmente pelo desconhecimento das convenções ortográficas.

 

“Quero continuar. A aprende eu quero seu uma promotora quero. Aprender . debiji. Carro. E moto quero. Apender. Ler. Eu quero aprender escreva manho. Eu estou na escola. Para que eu porsa pega uma iprego nenho. Eu gosta ria de.ir em sopolo. De avião.eu quero ter uma casa. Minha . quero se uma profesora- para que - eu poça- em sina ais outra pessoa que poço aprende. Escreve e le. Para que ele e ela poça ter, um fotubo melho. Esta e o meu soi que eu sempo soeis”

 

 

  1. “ela poça ter, um fotubo melho”. A aluna utiliza uma das representações do fonema s, substituindo a grafia padrão por “ç”. A aluna suprimiu o “r” quando grafou a palavra “melhor”, esse segmento tende a ser omitido na fala não-monitorada. Isso é comum, pois a pronúncia do r é uma regra variável.
  2. “Para que eu porsa paga uma...” – A aluna suprimiu o fonema r pós-vocálico final no verbo “pegar”. Tal fenômeno ocorre principalmente no infinitivo do verbo e em palavras de duas sílabas ou mais. A aluna escreveu de acordo com a pronúncia na fala não-monitorada.
  3. “(...) outra pessoa que eu poço aprende. Escreve e Le.” – Aqui ocorreu o fenômeno da supressão do r final, que geralmente ocorre no infinitivo dos verbos, como foi o caso aqui. Porém um aspecto importante a ressaltar é que normalmente nas palavras monossilábicas tendemos mais a pronunciar o r final, mas a Patrícia, não seguiu esse padrão. A supressão do r final está tão consolidada em seu repertório que ela, mesmo no monossílabo “ler”, escreveu “le”. Outro ponto é que, ao longo do texto, ela escreveu o verbo “aprender” de diversas maneiras: “aprende”, “apender” e “aprender”.
  4. No texto escrito por Patrícia, ela escreve: “quero se uma profesora – para que – eu poça – em sina ais outra pessoa que poço aprende”. Esse é um problema que a criança apresenta na escrita e não pode ser explicado pelos hábitos de pronúncia. Há certa confusão na representação escrita do dígrafo ss. Então, no caso da Patrícia, ela trocou o dígrafo ss pelo ç. Esses erros ocorrem devido às convenções das regras de ortografia, processo de padronização da língua, etc.
  5. “Poça”: grafia errada, a Patrícia ainda não se familiarizou com o dígrafo ss. “Em sina”: acredito que a Patrícia não tem conhecimento do verbo ensinar, deve ter associado a alguma palavra como: “em cima”, “em qual”, etc. “Ais”: colocou o i no artigo as. Faltou no trecho concordância numeral.
  6. “Para que ele poça ter”. Poça – possa: A troca do dígrafo “ss” por “ç” pode ser explicada por conseqüência das convenções da língua, pois trata-se de um fonema que possui um som e pode ser representado por diversas letras. A supressão do “m” na conjugação do verbo diz respeito à desnasalização que ocorre nas palavras em que a sílaba final é átona. 
  7. “A aprende eu quero seu uma promotora que quero” – Percebemos que Patrícia suprimiu a letra “r” no fim da palavra. As pesquisas nessa área mostram que suprimimos o “r” com freqüência nos infinitivos verbais e no futuro do subjuntivo, também em palavras que possuem mais de uma sílaba, sendo um fenômeno muito comum e freqüente tanto na fala como na escrita.
  8. “(...) para que eu poça” – Nesse caso não há [interferência] de hábitos de pronúncia, mas sim a forma de representação do fonema “s”, pois ele pode ser representado de várias formas, mas nesse caso a regra da ortografia diz que deve ser escrita com “ss” – possa.
  9.  “quero se uma profesora...” – A menina suprimiu o r pós-vocálico do verbo ser. Em todas as regiões do Brasil o r pós-vocálico, independente da forma como é pronunciado, tende a ser suprimido especialmente nos infinitivos verbais.
  10. “... uma profesora – para que - eu poça – em sina...” – Nas palavras “profesora” e “poça” a representação do fonema s é convencionalmente feita pelo dígrafo “ss”. A aluna ainda não tem domínio das convenções que regem a grafia desse fonema.
  11.  “Eu gosta ria” – Na fala, diferente da escrita, não há divisão de palavras. Na cadeia de fala acabamos unindo alguns morfemas, como no exemplo “homem de vida boa”, acabamos falando “ômidevidaboa”. Por isso se a pessoa não tem familiaridade com a forma escrita, transfere tudo da fala.
  12. “Eu poça” – Sapato, roça, assado, essas três palavras embora escritas de forma diferente pronunciam-se igualmente seus “sas”. Pessoas em início de escolarização encontram muita dificuldade ao escrevê-las, talvez devido à falta de familiarização com a forma escrita e as freqüentes interferências da fala na escrita.
    1.  

      Análises sobre texto de Lucas, 8 anos, 2ª série, nasceu e mora em CeilândiaDF

       

      Nos fragmentos de análise do texto seguinte, observamos que os alunos estão alerta para a despalatalização da consoante nasal palatal, traço muito freqüente nas comunidades de fala do Centro-Oeste. Atentam também para o fenômeno da concordância nominal não-padrão e levantam hipótese de hipercorreção, além de perceber a monotongação do ditongo ou.

       

       “A Dengue

       Eu fui la em São Paulo e coeci um menino que tinha dengue e ele quase morreu e o nome dele e Junío e ele tem um irmao que tambem tem dengue e a mãe deles fico quase doida e o pai tambem e na casa deles os visinho não tampava a caixa dagua e os xaxis ela não trocava a agúa e não quidava e e quando as dona xego ela vi que os menino estavam com dengue e ela teve que coida deles e ae que o pai não deixou e o menino fico feles mas so que o pai e o irmao mas pequeno não quer e a mãe fico muito braba e o irmao tambem e o Junio foi embora para São Paulo”.

       

      1. “Eu fui lá em São Paulo e coeci”. Ocorreu a perda do fonema nasal palatal que é representado na escrita pelo dígrafo “nh”.
      2. (...) e na casa dele os visinho” – Nessa frase vemos a ocorrência de dois fenômenos. O primeiro é que a criança escreveu “vizinho” com “s” e não com “z”. Isso ocorre devido ao caráter arbitrário das convenções da nossa língua. O fonema s pode ser representado de inúmeras formas e a criança, por não conhecer muito bem ainda as convenções gramaticais da nossa língua, escreve “vizinho” com “s”. Mesmo fenômeno ocorre na palavra “poço”.
        1. Outro fenômeno que ocorre nessa frase é a não-utilização do plural redundante. A criança marcou o plural somente nos elementos que ocorreram à esquerda do nome. No caso ele marcou o plural em “deles” e “os”, mas não em “visinho”.

          1. “vi que os menino”. Ocorreu a supressão do fonema “s” no final da palavra menino. Esse uso é muito freqüente quando estamos falando sem prestar muita atenção à forma de nossa fala (estilo não-monitorado).
          2. Coeci – O adequado de acordo com a gramática normativa é “conheci”, por isso pode-se analisar que tal aluno ainda não tem conhecimento pleno de dígrafo.
          3.  “na casa deles os visinho”. Nessa situação houve a supressão do “s” final, pois tendemos a fazer a concordância nominal colocando a marca de plural nos elementos que ocorrem à esquerda do nome. Na mesma palavra também o aluno usou o “s” no lugar de “z”. Isso ocorre devido às várias convenções ortográficas no processo de padronização da língua.
          4. “e na casa deles os visinho”; Lucas, 8 anos. No trecho o aluno tende a flexionar somente os elementos à esquerda do nome, no exemplo, esse elemento é um artigo. A regra de concordância não-redundante ocorre com mais freqüência, nos estilos não-monitorados. Quando a forma de plural é apenas um acréscimo de um s, tendemos a não empregá-la.
            1. É possível observar que nem todos os problemas que as crianças apresentam em sua escrita podem ser explicados pelos seus hábitos de pronúncia. No trecho o aluno escreveu “visinho” com s, sendo que, de acordo com a norma padrão, usa-se o “z”. Isso ocorreu porque um mesmo fonema pode ser representado de duas formas ou mais. A forma de representar o fonema s em cada palavra é convencionada pelas regras de ortografia, que o aluno ainda irá aprender ao longo do processo de alfabetização.

              1. “e a mãe fico quase doida”; Lucas, 8 anos. É comum os alunos reproduzirem na escrita o processo próprio de sua língua oral. No trecho, o aluno reduz o ditongo ou, que tende a ser pronunciado como uma vogal simples o. Isso é comum quando os alunos ainda não têm muita familiaridade com a língua escrita.
              2. “...não trocava a água e não quidava...”: Neste caso a criança usa o “qui” para expressar o “cui”.
              3. Nesse texto a criança comete um erro na linha 4, no termo “chegou”. Ela substitui o “ch” por “x”. Erro comum em que crianças e até mesmo adultos cometem. Também subtrai a letra “u” do fim da palavra, erro que pode ser explicado pela forma como a palavra às vezes é pronunciada.
              4. “...coeci um menino...”. Na palavra “conheci” o “nh” foi suprimido, pois é um travamento nasal e por isso não é muito marcado na fala, ocorrendo também na escrita.
              5. “...os visinho...”. Na palavra “visinho”, o aluno se equivocou ao escrevê-la com “s”, pois ele ainda não está familiarizado com as convenções da escrita. Já a concordância nominal não foi realizada pois há uma tendência de marcar o plural somente nos elementos que estão à esquerda do nome.
              6. “Ela vi que os menino estavam com dengue e ela teve que coida deles”. Vi: Suprimiu o u, pelo que eu li foi por esquecimento, ela teria competência para escrever o verbo “viu”. Os menino: precisa se familiarizar com a concordância. Coida: para mim foi hipercorreção o no lugar do u e suprimiu o r do infinitivo do verbo “cuidar”.
              7. “(...) e a mãe deles fico quase doida” – Ocorre redução do ditongo ow na palavra “fico”. Isso ocorre porque freqüentemente em nossa fala não pronunciamos o ditongo “ou”. Isso ocorre até em sílabas tônicas finais que são mais resistentes a mudanças.
              8. “(...) que os menino estavam com dengue” – Ocorre concordância não-redundante. Tal fenômeno, que ocorre com mais freqüência nos estilos não-monitorados, nesse caso ocorreu na escrita. Isso ocorre porque geralmente dispensamos os elementos redundantes na fala.
              9. Lucas suprimiu o “s” final em “os visinho, as dona e os menino”, pois ainda escreve de acordo com a linguagem oral, em que se costuma marcar o plural apenas no elemento que vem à esquerda do substantivo, que no caso são os artigos “os” e “as”.
              10. “...vi que os menino...” – Geralmente se faz a concordância nominal colocando a marca de plural nos elementos à esquerda do nome, no caso o artigo “os” deixando de marcar o nome que vem em seguida “menino”. O aluno optou pela marcação não-redundante.
              11.  “... coeci um menino que tinha dengue...” – Percebemos que Lucas suprimiu o “nh” da palavra. Talvez pelo “nh” ser um dígrafo e representar apenas um único som ele não achou na hora de escrever a letra correta, então escreveu a palavra da forma como ele a fala.
              12.  Podemos observar a influência de uma característica comum na Região Centro-Oeste, que é a despalatização da consoante nasal palatal nh. É provável que essa criança suprima também essa consoante em sua pronúncia.
                1.  

                   

                  Análises sobre texto de Laura, 2ª série

                   

                  Categoria pai: Seção - Notícias

 

 

A formação dos professores de português, hoje, no Brasil, é uma catástrofe. Nós, os responsáveis pelos cursos de Letras, não enxergamos a bomba-relógio que temos nas mãos. As estatísticas não mentem: a retumbante maioria dos estudantes de Letras vêm de camadas sociais pobres ou mesmo miseráveis, filhos de pais analfabetos ou que têm escolarização inferior a quatro anos. Isso significa muita coisa. Significa que esses estudantes têm um histórico de letramento muito reduzido: no ambiente familiar, não convivem com a cultura letrada, não têm acesso a livros, revistas, enciclopédias etc. Significa que não são falantes das normas urbanas de prestígio (as mesmas que supostamente terão de ensinar a seus futuros alunos) e têm domínio escasso da leitura e da escrita. Só na faculdade é que a maioria deles vai ler, pela primeira vez na vida, um romance inteiro ou um texto teórico. Vêm, quase todos, do ensino público, essa tragédia ecológica brasileira muito pior que as queimadas na Amazônia. Nós, porém, fingimos que eles são ótimos leitores e redatores, e despejamos sobre eles, logo no primeiro semestre, teorias sofisticadas, que exigem alto poder de abstração e familiaridade com a reflexão filosófica, e textos de literatura clássica, escritos numa língua que para eles é quase estrangeira. E assim vamos nos iludindo e iludindo os estudantes.

O resultado é que os estudantes de Letras saem diplomados sem saber lingüística, sem saber teoria e crítica literária e sem saber escrever um texto acadêmico com pé e cabeça. Todos os dias, recebo mensagens de formandos que me pedem orientação para seus trabalhos finais. Alguns até me enviam seus projetos. São textos repletos de erros primários de ortografia, pontuação, sintaxe, vocabulário, com frases truncadas e sem sentido. Assim eles chegam ao final do curso, e suas monografias, mal escritas, sem nenhum rigor teórico ou metodológico, são aprovadas alegre e irresponsavelmente por seus supostos orientadores.

O problema, é claro, não está no fato (que merece comemoração) de acolhermos na universidade alunos vindos das camadas mais desfavorecidas da população. O problema é não oferecermos a eles condições de, primeiro, se familiarizar com o mundo acadêmico, que lhes é totalmente estranho, por meio de cursos intensivos (e exclusivos) de leitura e produção de textos, de muita leitura e muita produção de textos, para só depois desses (no mínimo) dois anos de preparação eles poderem começar a adentrar o terreno das teorias, das reflexões filosóficas, da alta literatura. Se não fizermos isso urgentemente (anteontem!), as salas de aula do ensino básico estarão ocupadas por professores que, mal sabendo ler e escrever adequadamente, não poderão desempenhar sua principal tarefa: ensinar a ler e a escrever adequadamente! Não sei, aliás, por que escrevi “estarão ocupadas”: elas já estão ocupadas, neste momento, por essas pessoas, de quem se cobra tanto e a quem não se oferece uma formação docente que também seja, minimamente, decente.

Categoria pai: Seção - Notícias

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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