Artigo: Gustavo Ioschpe
Os quatro mitos da escola brasileira
Nilton FukudaAE
Escola pública no Brasil: o problema central não é a falta de dinheiro, mas, sim, o despreparo dos professores
VEJA TAMBÉM
Neste artigo
• O Brasil na lanterna
O Brasil tem se destacado há décadas na educação por uma razão incômoda: está entre os piores do mundo em sala de aula. Foi esse o tema de dois artigos do economista Gustavo Ioschpe, publicados por VEJA no ano passado. Especialista em economia da educação, com mestrado pela Universidade Yale, nos Estados Unidos, Ioschpe tornou-se referência no meio acadêmico ao abordar as questões do ensino com objetividade matemática. Reuniu suas conclusões no livro A Ignorância Custa um Mundo – O Valor da Educação no Desenvolvimento do Brasil, vencedor do Prêmio Jabuti em 2005. Um dos pilares de sua pesquisa causou controvérsia: Ioschpe afirma que os males da escola brasileira não têm relação com a escassez de dinheiro em sala de aula, tampouco com o baixo salário dos professores – idéias cristalizadas no Brasil –, mas sim se originam do despreparo dos docentes para o exercício da profissão. Neste artigo, Ioschpe se utiliza de comparações internacionais e estatísticas recentes para derrubar quatro dos mitos que, segundo ele, mais prejudicam a visão sobre os reais problemas da educação no país.
1º MITO
O professor brasileiro é mal remunerado
Ao aceitar essa idéia como verdade absoluta, as pessoas estão cometendo pelo menos dois enganos. O primeiro erro é comparar os professores brasileiros aos colegas estrangeiros. Se um país tem renda dez vezes maior que a brasileira, é de esperar que não só seus professores como as outras categorias ganhem um salário dez vezes maior – e é exatamente isso que ocorre. A comparação apropriada não é, portanto, entre a remuneração dos professores de vários países, mas sim desses salários em relação à média nacional. E nessa conta os docentes brasileiros aparecem numa situação mais favorável: enquanto eles recebem salário 56% superior à média nacional, nos países mais ricos a remuneração dos professores é 15% menor. Outra maneira de ver a questão é esclarecer se, lado a lado com outros profissionais brasileiros – de escolaridade e experiência equivalentes –, os professores levam a pior.
É aí que surge o segundo engano sobre a situação dos professores no Brasil. A comparação entre o salário dos docentes e o de outras categorias costuma desconsiderar um conjunto objetivo de variáveis, como jornada de trabalho, férias e aposentadoria (ao contrário da idéia que vigora no país, o professor tem jornada de trabalho mais leve do que o restante da população: 70% trabalham até quarenta horas semanais). São equívocos matemáticos que alimentam o mito de que o professor no Brasil é um injustiçado. Dos estudos mais sérios sobre o assunto, depreende-se justamente o contrário: eles mostram que o professor brasileiro está longe de ser discriminado no mercado de trabalho. Esses profissionais recebem, no Brasil, o esperado para pessoas com as suas qualificações e com a mesma rotina de trabalho. Se a classe docente fosse realmente injustiçada, o magistério não seria uma das carreiras mais populares do país, com mais de 2 milhões de profissionais – número que só faz crescer.
2º MITO
A educação só vai melhorar no dia em que os professores receberem salário mais alto
Essa é uma afirmação que não tem respaldo na experiência internacional – nem na brasileira. Ao avaliarem o efeito que o aumento no salário dos professores havia causado no desempenho dos estudantes, centenas de pesquisas chegaram a um consenso: elevar a remuneração não fez melhorar os resultados na sala de aula. Da própria experiência brasileira, é possível extrair conclusão semelhante. Basta analisar o que ocorreu depois da melhora no salário dos professores, proporcionada pelo antigo Fundef (o fundo para a educação que foi substituído pelo atual Fundeb), desde 1997. Nesse caso, enquanto a remuneração dos docentes melhorou, as notas dos alunos despencaram nos exames nacionais conduzidos pelo Ministério da Educação. Conclusão: ter mais dinheiro no bolso não é o fato determinante para transformar o professor num bom educador. O que mais prejudica a performance dos docentes no Brasil é um sistema que despreza talentos individuais e resultados acadêmicos e forma professores com uma mentalidade equivocada – enquanto apenas 9% consideram ser prioritário proporcionar conhecimentos básicos aos alunos, a maioria prefere formar cidadãos conscientes, de acordo com uma pesquisa da Unesco. É preciso, portanto, redimensionar a questão dos salários. O aumento dos professores pode trazer benefício a eles – mas não aos alunos. O mais urgente é fazer com que o professor chegue à sala de aula sabendo ensinar.
Cristiano Mariz
Alunos de escola particular: o fiasco nos exames internacionais mostra que eles também recebem mau ensino
3º MITO
O Brasil investe pouco dinheiro em educação
Esse é um mito que não resiste a uma rápida consulta aos dados oficiais. De acordo com um recente relatório que comparou o volume de investimento de trinta países em educação, o Brasil não fica atrás das nações mais ricas. Eis os números: enquanto o Estado brasileiro destina 3,4% do PIB às escolas básicas, nos países da OCDE (organização formada por países da Europa e pelos Estados Unidos) esse gasto corresponde a 3,5% do PIB. O governo brasileiro também aparece como um investidor generoso no ensino superior: reserva às universidades 0,8% do PIB – a média da OCDE é de 1% do PIB (e olhe que no Brasil apenas 20% dos jovens estão na universidade, enquanto nos países mais desenvolvidos a média é de 50% de universitários). Conclusão: o Brasil gasta praticamente o mesmo que os países desenvolvidos – e obtém resultados muito piores.
Alguns especialistas consideram a comparação do Brasil com os países mais ricos inadequada e, por essa razão, continuam a bater na tecla da escassez de dinheiro. Eles argumentam que, ao contrário do que ocorre com os países da OCDE, o Brasil ainda precisa dar um enorme salto na educação, o que consumiria uma fatia bem maior de recursos. É a experiência internacional, mais uma vez, que os contradiz. O melhor exemplo vem da Coréia do Sul: entre 1970 e 1995, o governo coreano separou 3,5% do PIB para patrocinar uma revolução em sala de aula. A China também tem gasto pouco – apenas 2% do PIB ao ano – para alcançar resultados igualmente extraordinários. Pesquisas conduzidas em dezenas de países não cansam de demonstrar que o volume de investimento não tem relação com a qualidade em sala de aula. O problema da educação brasileira não é, portanto, a falta de dinheiro – mas sim o fato de o governo gastar mal o que tem.
Wang Jun-Young
Coréia do Sul: o governo promoveu uma revolução em sala de aula com orçamento moderado
4º MITO
A escola particular é excelente
Os resultados dos exames realizados por estudantes de escolas públicas e particulares autorizam apenas a concluir que a rede privada é um pouco melhor do que os colégios municipais e estaduais. Esses exames estão longe de indicar que a escola particular brasileira é um modelo de excelência acadêmica. O dado mais esclarecedor sobre o assunto veio de uma prova aplicada pela OCDE, que mediu o conhecimento dos estudantes de 41 países e colocou o Brasil nas últimas posições em todas as disciplinas avaliadas. O teste mostrou que não apenas os alunos de escolas públicas haviam contribuído para o fiasco brasileiro: o resultado dos estudantes 25% mais ricos do Brasil foi inferior ao dos 25% mais pobres dos países mais desenvolvidos. Nossas deficiências educacionais são, portanto, visíveis nos alunos que supostamente cursam as melhores escolas particulares. O mito de que a escola particular oferta ensino de alto nível também não resiste ao diagnóstico que toma como base o resultado dos estudantes nos exames do MEC: o conhecimento dos alunos nesses colégios está aquém do desejado – e a anos-luz da excelência, segundo o próprio MEC.
As pesquisas chamam atenção ainda para outro fato que depõe contra a escola particular: 90% de sua superioridade em relação à rede pública deve-se à condição socioeconômica de seus estudantes, que vivem num ambiente mais favorável ao aprendizado. Apenas 10% são atribuídos ao maior brilhantismo acadêmico da escola. As escolas particulares, afinal, sofrem do mesmo problema que os colégios públicos: seus professores passaram por escolas ruins e cursaram faculdades precárias. Infelizmente, eles estão igualmente desqualificados para dar uma boa aula. O Brasil só vai deixar a lanterna na educação quando conseguir fazer um diagnóstico correto – e se livrar desse e dos demais mitos que rondam as escolas do país.
Disponível em: <http:revistaepoca.globo.comRevistaEpoca1,,EDG76173-6014,00.html>.
Sociedade
Sociedade
SEMEANDO O ALFABETO
A rede de apoio ao professor tem 27 municípios, 1.200 escolas, 5.400 professores e 115 mil alunos
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Acesso em: 15janeiro2007.
Edição 452 - 13012007
EDUCAÇÃO
Cybele e as letras
Como uma aluna tachada de caso perdido se transformou numa professora capaz de quadruplicar a alfabetização em escolas do interior da Bahia
Ana Aranha, De Palmeiras, Bahia
ESPECIAIS
• Projeto Generosidade
REESCREVENDO VIDAS
Cybele Amado (de rosa) leva o prazer de ler e de escrever a 115 mil alunos do interior baiano. Na foto, com a equipe de professores que formou na escola do Capão, onde tudo começou
Ela não vai aprender a ler.
A sentença, afirma Cybele Amado, foi dada a sua mãe pela professora da 3ª série. Minhas lições voltavam riscadas de tinta vermelha, diz ela. Eu tinha uma dislexia leve, trocava o V pelo F, mas me condenaram a repetir o ano. Caí na sala de minha irmã mais nova. Foi um trauma. A história poderia ter acabado com um ponto final precoce. Mas Cybele mudou o enredo. Não só se tornou professora como passou a reescrever o destino de milhares de crianças no interior da Bahia: criou um método capaz de quadruplicar os índices de alfabetização e reduzir em mais de quatro vezes os de evasão.
Primeiro, Cybele libertou-se da carapuça de aluna com dificuldades de aprendizagem. Na 8ª série, já balançava os pés atrás da mesa de professora. Tinha sido convidada a ensinar matemática a colegas em situação de risco. Depois fez faculdade de Educação e pós-graduação em Psicopedagogia. Chegou a montar um colégio particular na capital baiana, em parceria com quatro amigos, chamado Escola Alternativa. Mas ela achou pouco. Acabara de voltar de férias da Chapada Diamantina quando tomou a decisão de mudar-se para lá, para mudar a realidade de lá.
Aos 23 anos, Cybele abandonou Salvador para morar sozinha no Vale do Capão, um povoado de mil habitantes a 480 quilômetros da capital. Cercada pelos paredões de pedra da Chapada, sua casa não tinha sequer energia elétrica. Todo fim de tarde a jovem professora acendia uma fogueira para dissipar o medo do escuro. Quando a luz do fogo não era suficiente para espantar tantas sombras, ela chamava uma estudante para lhe fazer companhia.
Cybele corrigia as lições dos alunos de 5ª série quando levou um susto: encontrou nos textos os mesmos traços de dislexia de sua infância. Fui procurar a raiz do problema, afirma. Foi aí que descobri como a dislexia leve pode ser fruto do ensino. Cybele desconfiou que sua dislexia havia sido gerada pela deficiência da alfabetização que recebeu. Já tinha certeza de que repetir o ano fora o pior remédio.
Montou num quarto da casa um pronto-socorro para crianças pequenas com dificuldades de alfabetização. Depois de avaliá-las, Cybele concluiu que apenas uma tinha sinais de distúrbio. As outras eram vítimas de um sistema educacional em que é normal gritar com a criança, e a língua é ensinada como se fosse um código. O método dos professores antigos do Capão, segundo ela, se restringia à cartilha do B mais A é igual a BA. As crianças sabiam ler as sílabas e pronunciar as palavras, mas nem sempre entendiam o significado.
O choque de reencontrar seus fantasmas nos textos dos alunos foi tão grande, diz Cybele, que voltou a trocar as letras: encontrou na própria caligrafia um veroz onde quis escrever feroz. Ainda hoje tropeça no sotaque ao contar o episódio.
Na escola com chão de terra batida, paredes sujas e nenhuma identificação na porta, ela buscou um jeito de fazer criança pequena gostar de ler e de escrever. Não inventou metodologia nova nem teoria revolucionária. Montou uma rede de apoio ao professor que estimula a reflexão sobre o ensino e o uso de brincadeiras, histórias e atividades fora da sala. Implantou também um sistema de acompanhamento que investiga as atividades que dão certo e as que precisam ser reformuladas.
A maioria dos adultos do Capão - oficialmente o nome do povoado é Caeté-Açu, mas ninguém o chama assim - não escreve muito mais que o nome. De repente, os filhos começaram a fazer poesia e pedir prosa de Clarice Lispector. A notícia se espalhou. Em 2000, o Projeto Chapada começou a tecer uma rede que hoje envolve 1.200 escolas. São mais de 5 mil professores acompanhados por coordenadores pedagógicos. Todos eles sob a orientação exigente da professora Cybele Amado. Nos seis anos de projeto, o índice de evasão escolar caiu de 23% para 5% - metade da média nacional para a zona rural.
Em 2005, o projeto alcançou mais 16 municípios. Em apenas um ano, o índice de alunos alfabetizados na 1ª série pulou de 11% para 40%. É quatro vezes maior do que era - e ainda é pouco. A realidade do interior da Bahia é a mesma de 80% dos professores da zona rural do país: só estudaram até o ensino médio. A maioria pega o giz para ensinar as letras sem ter passado por uma faculdade. O que Cybele mudou? Oxente, a diferença é que passamos a pensar a educação como profissionais, não como professorinhas, diz ela.
Conhecida pelas escolas em que circula como um doce general, Cybele é delicada no falar, mas direta na mensagem. Educação não é missão para quem gosta de criancinhas. Segundo sua cartilha, gostar é verbo escasso. Tem de ser louca por criança. O resultado são alunos curiosos, como Laís, de 7 anos. A menina não desgruda dos gibis da Turma da Mônica na hora do intervalo. Toda semana leva um livro diferente para casa. O preferido é o de Chapeuzinho Vermelho. Fez até a mãe, Diosina Pereira, prometer que vai à cidade comprar um só para ela.
Diosina acompanha o que acontece na escola pela Associação de Pais, Educadores e Agricultores. A comunidade se organizou no dia em que Cybele fez uma greve entre os alunos para exigir a contratação de professores nativos do povoado. Antes, os professores faltavam toda segunda e sexta-feira com a desculpa de que tinham de viajar os 30 quilômetros que separam o povoado da sede, a cidade de Palmeiras.
Antes de Cybele, aula de Português era só tomar ditado e fazer cópia. A escola não tinha nem giz!, diz Rosângela Mendes. Ela trouxe música, fez a gente escrever cartas poéticas. Rosângela estava na 6ª série quando a forasteira chegou. Fez muita companhia a Cybele ao lado do fogo nas noites escuras. Hoje é diretora da escola.
Além de Rosângela, outros oito alunos viraram professores. Todos dão aula na escola do Capão. Cybele se emociona quando volta à escola do Capão, de onde saiu há menos de um ano para expandir o projeto. Logo é cercada:
- Cybele Amado! - diz uma criança.
- Você não sabe quanto eu tirei em Português... - diz uma segunda criança.
- Vai voltar quando? - diz outra.
A professora responde: Lembra da história de ter de escolher entre ajudar 200 ou ajudar mil?. Horas depois, em seu escritório, ela é mais precisa: São 115 mil alunos beneficiados pela rede. E já vai dizendo: Coloque aí o mais importante: aqui não se faz nada pela metade. Todas essas crianças saem capazes de se deliciar com o que lêem.
Edição 452 - 13012007
EDUCAÇÃO
Cybele e as letras
Como uma aluna tachada de caso perdido se transformou numa professora capaz de quadruplicar a alfabetização em escolas do interior da Bahia
Ana Aranha, De Palmeiras, Bahia
ESPECIAIS
• Projeto Generosidade
A rede de apoio ao professor tem 27 municípios, 1.200 escolas, 5.400 professores e 115 mil alunos
Apanhador de meninos
DOUTOR PARTEIRO
Áureo Augusto em uma de suas consultas
pouco ortodoxas, pagas com jacas e mamões
Cybele Amado não teve filhos, mas é mãe do Vale do Capão. Além de espalhar o gosto pela leitura entre as crianças, ela não perde os primeiros minutos de suas vidas. É que a professora-mãe se casou com o médico-parteiro da comunidade: doutor Áureo Augusto. Ele atende a população local de graça há 23 anos e já perdeu a conta de quantos meninos acolheu na companhia da enfermeira improvisada. O casal recebe o pagamento de partos e consultas na forma de frutas, verduras e ovos que o povo vai deixando na porta. Eles, que são vegetarianos, agradecem. No começo, a gente chegava e já tropeçava numa jaca. Hoje, deixamos uma cesta do lado de fora. É só chegar e recolher a feira, diz Áureo. Quando andam pelas estradas, Cybele vai apontando para o marido os rostos que ele pôs no mundo. Esse povo tem muito filho! Mas desejam cada um que nasce. Vi uma mãe perder o seu 16o e chorar como se fosse o único, diz o parteiro. Áureo deixou Salvador para fundar uma comunidade alternativa na Chapada. Acabou acolhendo bebês com luz suave e música ambiente. Em sua casa e no consultório só se pode entrar descalço. Além de médico, ele é artista plástico, escritor e marceneiro. Se a política desembarcasse em Capão, o casal brinca que faria uma bela plataforma eleitoral: Educação e saúde!.
Bom de bola - e de poesia
A MELHOR JOGADA
Saulo dos Santos é um exemplo do que acontece quando a escola não desiste do aluno, por mais que ele tente desistir da escola
Saulo dos Santos, o menino do lance acrobático da foto acima, tem 13 anos e três repetências. Ele era um garoto de olhos agitados e respostas rápidas que havia perdido o interesse pelos estudos. Ou melhor: não dá para perder o que nunca se teve. Enquanto seus colegas assistiam às aulas, ele escapava para a quadra de terra nos fundos da escola. Eu ia mal porque não queria estudar mesmo, preferia jogar futebol, diz Saulo. A professora Cybele olhou bem para ele. Teve longas conversas com o garoto, seus pais e professores para entender a aversão pelas letras. Percebeu que para chamá-lo para dentro da escola era necessário investir no que ele tanto gostava no lado de fora. Saulo foi escalado para o time de futebol do povoado e o treino condicionado à presença na aula. Esse ano ele não perdeu uma. Também propôs e ganhou o primeiro campeonato de futebol da escola e se revelou um belo artilheiro. O menino faz parte de uma família de 16 filhos, 14 vivos, típica do interior da Bahia. Sua mãe, Maria das Graças Santos, afirma: A gente vive da roça, da graça de Deus e há quatro meses de uma bolsa do governo. Ela mesma parou de estudar na 4ª série porque não tinha professora de 5ª. Agora, está abismada com o filho: Esse menino não se interessava por nada, mas a escola não largou ele. Hoje, ele vai estudar até debaixo de chuva, diz. Maria das Graças fala firme sobre os filhos que perdeu e sobre o cotidiano sem energia elétrica. A voz só fraqueja quando se lembra da despedida de Cybele. Ela fez uma ceia cheia de sentimento. Deu uma semente para cada um. A nossa eu plantei aí fora, diz. Deu um girassol. Saulo interrompe a entrevista para saber se o São Paulo tem time júnior. É um baiano são-paulino. Parecia que não precisava nem perguntar, sua aula preferida só podia ser Educação Física. Ele esclarece: Na escola? Não, o que eu gosto aqui é de escrever. Sou bom de poesia!.
Fotos: Maurilo ClaretoÉPOCA
Diversos estados brasileiros têm desenvolvido sistemas de avaliação educacional no âmbito de projetos de gestão voltados para a melhoria da educação. Um desses projetos é o do município de Sobral, Ceará (INEP, 2005).
Como metas o projeto definiu a alfabetização de crianças de 6 e 7 anos de idade; alfabetização corretiva de todos os alunos de 2ª a 6ª série que não sabiam ler; a regularização do fluxo escolar; a redução do abandono para menos de 5%; progressiva universalização e qualificação da educação infantil; a reestruturação do sistema de ensino das séries terminais de Ensino Fundamental e alfabetização de todos os jovens e adultos que não sabiam ler. Com relação às mudanças na prática pedagógica, a rotina da sala de aula passou a ser norteada por 10 princípios:
1) A criança precisa falar
2) A criança precisa agir
3) A criança precisa brincar
4) A criança precisa ter limites
5) A criança precisa trabalhar em grupo
6) A criança precisa desenhar
7) A criança precisa ouvir histórias
8) A criança precisa contar histórias
9) A criança precisa ler e escrever
10) A criança precisa ser estimulada
O sistema de avaliação instituído contemplava, entre outras variáveis, a participação das famílias que eram motivadas a avaliar o trabalho escolar, e a organização e funcionamento da escola, inclusive limpeza, disciplina, merenda, biblioteca e segurança.
INEPMEC. Vencendo o desafio da aprendizagem nas séries iniciais: a experiência de SobralCE. Série Projeto Boas Práticas na Educação n. 1. Brasília, 2005
Juiz manda punir publicidade só em inglês
Decisão liminar (provisória) ordena que anúncios apenas usem estrangeirismos se a tradução em português tiver o mesmo espaço
Haverá multa à União se ela não fizer cumprir o Código de Defesa do Consumidor; governo irá analisar decisão antes de se manifestar
ROGÉRIO PAGNAN
DA REPORTAGEM LOCAL
O juiz federal substituto da 1ª Vara de Guarulhos (SP), Antônio André Muniz Mascarenhas de Souza, determinou que o governo federal fiscalize o uso da língua portuguesa em anúncios publicitários pelo país, em combate ao estrangeirismo.
Expressões como sale, off e summer, comuns nas peças publicitárias, deverão ser acompanhadas de tradução na língua nacional, com o mesmo destaque da estrangeira. A medida vale para termos em qualquer língua, mas afeta principalmente palavras em inglês, as mais usadas por anunciantes.
Segundo a decisão, em caráter liminar (provisório), o governo federal deverá aplicar as punições já previstas no artigo 56 do Código de Defesa do Consumidor, como multa, apreensão do produto e cassação dos registros. Se não cumprir a ordem judicial, a União será multada em R$ 5.000 por dia.
O governo Lula também é obrigado, pela liminar, a avisar os órgãos de defesa do consumidor que eles devem divulgar, a consumidores e fornecedores, a necessidade da tradução em todo o território nacional.
A medida vale para anúncio com proposta contratual -que traz desconto, condição de pagamento, garantia, validade e risco inerente ao produto. Afeta desde vitrines de lojas até meios de comunicação como TV, rádio, jornal e internet.
Peças exclusivamente publicitárias estão isentas da tradução. Não pode é dizer, em língua estrangeira, entre na minha loja que estamos com 50% de desconto, exemplificou o procurador Matheus Baraldi Magnani, 30, autor da ação.
O juiz diz que a informação em português trata-se de um direito fundamental de inserção da pessoa humana na sociedade: o direito à informação. Magnani diz concordar. O sujeito pode não ter acesso econômico à rua Oscar Freire, mas ele tem, pelo menos, um direito básico de digestão visual daquelas expressões, de intelecção daquelas expressões.
Na visão do procurador, alguns fornecedores usam propositalmente as expressões estrangeiras para evitar clientes.
O Ministério Público Federal fez uma enquete pela internet e, segundo o procurador, cerca 300 pessoas foram consultadas sobre o tema. Foi assustador o índice de apoio, acima de 90%.
A AGU (Advocacia Geral da União) disse, ontem à noite, que estuda o teor da decisão para analisar se irá recorrer.
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Disponível em http:www1.folha.uol.com.brfspcotidianff1201200709.htm. Acesso rm 12 de janeiro de 2007.
O filme Escola de Rock não apresenta grandes pretensões em termos estéticos. Sua finalidade mais importante é de ordem comercial. Quer atender às necessidades de entretenimento da grande massa de consumidores de produtos culturais de fácil assimilação, tipo fast food, sem querer despertar reflexões mais profundas, sem desejar produzir emoções estéticas mais genuínas.
Para aqueles que estão envolvidos de alguma forma com questões pedagógicas, Escola de Rock pode servir como suporte para a discussão da reforma de ensino realizada no Brasil durante o governo FHC.
Análise do filme
Dewey Finn, roqueiro desempregado, expulso de sua banda durante os ensaios para um concurso de rock, precisando de dinheiro, resolve aceitar a substituição de uma professora em uma escola particular, mesmo sem ter licença para lecionar, assumindo a identidade de um amigo que possui esta licença.
A diretora diz a Dewey que Horace Green é o melhor Colégio do Estado e que conquistou essa posição graças a um rigoroso código de disciplina que se estende, inclusive, ao corpo docente. A anuidade da escola é de 15 mil dólares, cerca de 3.000,00 reais por mês. Ela pressiona Dewey a seguir o programa curricular cientificando-o de que a Escola não admite métodos experimentais. Os professores precisam explicar, em reuniões realizadas periodicamente com os pais, o que eles estão ensinando aos filhos.
Depois de espiar a aula de música que estava sendo ministrada a seus alunos, o falso professor decide trabalhar na sala de aula com aquilo que fornecia todo o sentido para a sua vida. Anuncia aos alunos a intenção de formar uma banda com eles para tentar vencer um concurso de rock. Ele denomina a atividade de Projeto Banda de Rock. Sem saber, ele começa a aplicar o método de ensino conhecido como Pedagogia de Projetos.
O ensino baseado na Pedagogia de Projetos consiste na resolução de uma situação-problema. Valoriza a participação ativa dos alunos no processo ensino-aprendizagem. Espera-se que os Projetos de Trabalho contribuam para a formação de indivíduos ativos, reflexivos, atuantes e participantes, com espírito de iniciativa e autonomia. Os alunos se sentem valorizados na medida em que têm a oportunidade de opinar, debater e decidir sobre o encaminhamento do projeto. A partir daí, tornando-se sujeito ativo do processo, ele se sente comprometido com a sua aprendizagem. Com este método, desenvolve-se a capacidade dos alunos de trabalharem em equipe, a capacidade de tomarem decisões, de formularem e resolverem problemas. Enfim, a Pedagogia dos Projetos desenvolve nos alunos a habilidade de aprender a aprender.
No refeitório, ao discutir com um professor sobre a validade da aplicação de testes de avaliação, Dewey cita a letra de uma música: “Vamos deixar o riso das crianças lembrar-nos de como costumávamos ser”. Na sala de aula, furiosamente, ele arranca da parede e amassa com as mãos a tabela de pontos positivos e negativos de cada aluno organizada pela professora afastada. O filme faz uma crítica explícita ao sistema de avaliação, pilar do ensino tradicional, que acaba, muitas vezes, castrando a criatividade e robotizando os alunos, transformando-os em meros cumpridores burocráticos de tarefas escolares.
Ao adotar o método, o falso professor descobriu uma forma de livrar-se da rotina das aulas convencionais. Um dos alunos pergunta a ele: “Vamos ficar enrolando todos os dias?” Ou seja, para os alunos, e também para os pais, ensino significa transmissão de conteúdos realizada por um professor que desenvolveu competência especial para isso. Os pais dos alunos irão pressionar Dewey pelo fato dele não estar cumprindo o programa curricular. Desenvolver competências e habilidades nos alunos é considerado uma embromação.
Durante a execução do projeto, Summer, a aluna mais aplicada da turma, diz a Dewey que fez uma pesquisa na Internet para saber qual era a função de fãs de bandas de rock. Ou seja, o filme mostra que o professor não precisa entregar-se, de forma exaustiva, ao papel de transmitir informações. Os próprios alunos podem ir atrás delas. Aplicando o método, Dewey nem percebe que está sendo um ótimo professor porque acha que está apenas se divertindo junto com os alunos.
Quando Dewey começa a ensinar os alunos a tocarem músicas de rock, percebe que eles estão com suas mentes e corpos bastante enrijecidos. Ele canta uma música criticando o método de ensino tradicional: “Se eu fizer tudo o que você quer. Vou virar um robô. Tarefas todo dia. Sem poder nem reclamar”.
No transcurso do projeto, as crianças criam, elas próprias, a coreografia, o figurino, o nome e o logotipo da banda, as imagens de computação gráfica. Dewey ensina os alunos a assumirem uma postura ativa diante da realidade, ensina-os a serem críticos, a desafiarem o sistema de ensino, a não se conformarem.
Zack, um dos alunos, aparece no início do filme revelando falta de auto-estima, falta de vontade própria. Vive desanimado, porque só fazia o que o pai e a professora lhe ordenavam. Ou seja, estava atolado na passividade e no conformismo. O pai o proibia de fazer o que ele mais gostava que era tocar violão. Rock e guitarra, então, nem pensar.
O método de ensino adotado pelo falso professor provoca em Zack um choque mental e uma sensível mudança em sua fisionomia. No horário de almoço, no refeitório, ele vai contar a Dewey: “Professor, achei a sua lição incrível!”. Zack revela que estava deixando de ser um zumbi, demonstra que estava resgatando a sua alma. Dewey, por sua vez, fica orgulhoso ao ser elogiado pelo aluno diante de professores de verdade.
Durante a implementação do projeto, os demais alunos se transfiguram também, manifestando motivação, vivacidade, espírito criativo. Eles tornam-se cúmplices do processo de ensino-aprendizagem.
Submetido ao descondicionamento, Zack acaba compondo uma música. Ou seja, assume uma postura ativa diante da realidade representando-a esteticamente para criticá-la. Marx diria que Zack, na medida em que assume a condição de sujeito com potencial para recriar o seu mundo, vai se transformando a si mesmo. Ao assumir a postura de criador, Zach renasce espiritualmente, resgata a alma que havia sido apagada pelo controle e pela disciplina burocratizante do ensino tradicional. Uma parte da letra da música por ele composta, dirigida à professora substituída por Dewey, diz o seguinte:
“Querida, sempre tiramos 10
Mas estamos ficando bitolados
Não é difícil decorar suas mentiras
Parece que estou hipnotizado
Foi quando um feiticeiro chegou na cidade
E ele virou a minha cabeça
Ele disse que o intervalo era a aula
E dois e dois eram cinco
E agora, querida, sinto-me vivo
É isso
Estou vivo.
Uma outra parte da letra exprime os sentimentos de Summer, a aluna mais aplicada da classe:
Você sabe que eu era a melhor aluna
Com boas notas mas sem alma
Levantei a mão para dizer o que penso
Eu já fiquei calada demais
E então o feiticeiro levou você embora
Faça o que o feiticeiro faz
Não o que o feiticeiro manda.
Os dois versos finais exprimem o princípio básico da Pedagogia de Projetos que é a autonomia que os alunos precisam exercer no processo de ensino-aprendizagem. Este princípio vai de encontro à idéia de Erich Fromm: ama o controle e mata a vida.
Summer fazia tudo motivada pelas notas e estrelinhas, só fazia o que a professora determinava. Durante a execução do Projeto, ela descobre um meio de conseguir a inscrição da banda no concurso de rock, a qual havia sido recusada pelos organizadores do evento. Ao ser elogiada por Dewey, ela assinala toda satisfeita: “Não fiz aquilo por nota”. Ela estava, também, sofrendo um processo de descondicionamento e, nisso, transborda de felicidade porque começava a fazer as coisas por prazer, por vontade própria, e não mais por obrigação.
Dewey também se sente realizado e feliz porque estava fazendo o que gostava. Nunca havia dado aulas e revela uma grande virtude: sabe elevar a auto-estima de cada jovem, ao contrário dos pais e do Colégio que estavam massacrando-os, incutindo neles a passividade, o sentimento do dever, o sentimento de incapacidade. Dewey descobre o talento especial de cada um dos alunos, levando em conta a sua individualidade.
Enfim, no processo de transfiguração, as crianças aprendem a ter iniciativa, abandonam a postura conformada diante das situações às quais estavam submetidas.
A reforma de ensino no Brasil
A proposta pedagógica apresentada no filme Escola de Rock expõe alguns princípios postulados pela reforma de ensino instituída no governo FHC.
Seguindo as orientações de organismos multilaterais como o Banco Mundial e a Unesco, o governo brasileiro aprovou, em 1996, a nova Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional. E, em 1998, o MEC instituiu as novas Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio.
No sistema anterior, o Ensino Médio tinha como um dos objetivos a formação de trabalhadores disciplinados, habituados a respeitar a hierarquia e as regras institucionalmente estabelecidas. Os alunos ficavam envolvidos, muitas vezes, em tarefas rotineiras e repetitivas, executadas de forma mecânica.
As novas diretrizes curriculares estabelecem que a escola não pode mais ficar voltada para a memorização, não pode mais trabalhar com conhecimentos fragmentados. A terceira revolução tecnológica proporciona o acesso a uma quantidade fantástica de informações de forma rápida e eficiente. Não seria mais necessário, por isso, ficar armazenando uma grande quantidade de informações no cérebro dos alunos, desde que estamos vivendo a era do acesso fácil a informações. Temos os sites de busca que nos proporcionam as informações que precisamos em poucos segundos. Temos os discos de CD e de DVD que podem guardar milhares de imagens e milhares de páginas de textos. Temos uma grande quantidade de livros à disposição na Internet sem precisar pagar nada. Podemos adquirir um disco de CD com as obras completas do Freud, que ocupam 2 metros nas estantes das bibliotecas, por um preço irrisório.
De acordo com o MEC e com os pareceres do Conselho Nacional da Educação, na era da revolução da informação, num contexto de transformações extremamente rápidas, a escola deve assumir uma nova função, adequando-se aos novos tempos. Não pode permanecer presa a concepções de ensino que vêm sendo mantidas desde a Idade Média.
Na reforma do Ensino Médio instituída pelo governo FHC, o currículo passou a ser orientado para o desenvolvimento de competências básicas e não mais concentrado, exclusivamente, na transmissão de conteúdos.
O objetivo, agora, é possibilitar ao aluno aprender produzindo conhecimento. Ou seja, permitir ao aluno aprender a aprender. Deste modo, a escola desenvolveria no aluno a autonomia necessária para ele continuar aprendendo sozinho, fora da escola, durante a vida toda. Este objetivo seria justificado pelo fato de o progresso científico e tecnológico, as transformações dos processos de produção, as mudanças na sociedade e nas relações internacionais estarem assumindo uma velocidade fenomenal.
De fato, o conhecimento produzido pelas Ciências Humanas, pelas Ciências da Natureza e pelas Ciências Exatas está sendo superado muito rapidamente. Quando fiz o curso de graduação em Ciências Sociais, a crença predominante era que a ditadura do proletariado constituía a salvação da humanidade. Muitas idéias de Marx eram postas como verdades absolutas. Depois de alguns anos, com o colapso do socialismo, com a revolução tecnológica, tudo o que parecia sólido se desmanchou como fumaça no ar.
Com isso, não estou defendendo o abandono dos textos clássicos. Os alunos das Ciências Humanas devem, sim, continuar estudando as obras dos pensadores consagrados porque não devemos ficar reinventando continuamente a roda. Todavia, existem duas formas deles conhecerem essas obras. A primeira seria uma doação feita pelo professor através de aulas que expõem a interpretação dada por ele à obra dos autores clássicos. Nessa forma de ensino, o aluno só vai aproveitar as explicações do professor se ele tiver tempo e se for bastante pressionado pelo sistema de avaliação para ler e reler os textos em casa, com cuidado. O aluno deve trabalhar estes textos fazendo monografias ou apresentando seminários. Caso contrário, não ficará conhecendo, mesmo que superficialmente, a obra dos autores que leu.
As transformações revolucionárias que estamos presenciando exigem dos alunos o desenvolvimento da capacidade de aprender e continuar aprendendo para poderem enfrentar essa realidade. Exigem, sobretudo, o desenvolvimento da flexibilidade mental para poderem se adequar às mudanças. Trata-se, portanto, de desenvolver certas competências e habilidades e não mais armazenar conhecimentos como alguns países armazenavam moedas metálicas no período mercantilista sustentados por princípios da ciência econômica que imaginavam a equivalência entre dinheiro e riqueza.
Em suma, a reforma do Ensino Médio estipulou que os conteúdos curriculares deixam de constituir fins em si mesmos e passam a ser simples meios para desenvolver nos alunos a capacidade de aprenderem sozinhos. Quanto mais pronto é o conhecimento que lhes chega, menos estariam desenvolvendo a própria capacidade de buscar esses conhecimentos, de aprender a aprender. Logo, precisaria ser feito um enxugamento do currículo enciclopédico, congestionado de informações, e seria necessário adotar estratégias de ensino diversificadas que mobilizassem menos a memória e mais o raciocínio dos alunos.
Quais competências os alunos deveriam desenvolver para poderem enfrentar o mundo em estado de convulsão? O Ensino Médio deveria promover nos alunos as capacidades de pesquisar, buscar informações, analisar e classificar as informações. Deveria desenvolver a capacidade de abstração, o pensamento sistêmico, ao contrário da compreensão parcial e fragmentada dos fenômenos. Deveria desenvolver a criatividade, a curiosidade, a capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema. Deveria desenvolver o pensamento crítico, o saber comunicar-se, a capacidade de buscar conhecimento. Deveria desenvolver a habilidade de trabalhar em equipe, a disposição para o risco e admissão de críticas. Os alunos deveriam aprender a pensar, aprender a relacionar o conhecimento com os dados da experiência cotidiana, a dar significado ao aprendido e a captar o significado do mundo, a fazer a ponte entre a teoria e a prática, a fundamentar a crítica, a argumentar com base em fatos, a lidar com os sentimentos que a aprendizagem desperta. Propõe-se uma escola que incentive a imaginação criativa, favoreça a iniciativa, a espontaneidade, o questionamento e a inventividade, que promova e vivencie a cooperação, o diálogo, a partilha e a solidariedade.
A formação para o novo mundo do trabalho
Um dos objetivos da reforma seria adequar o ensino a um mundo do trabalho que sofreu e que continua sofrendo transformações importantes.
Estamos tendo o privilégio de viver numa época de mudanças revolucionárias nas forças produtivas da humanidade. O conjunto de transformações que estamos presenciando vem sendo denominado de Terceira Revolução Tecnológica. O mundo do trabalho sofre os efeitos dessa fantástica revolução tecnológica. Sem entrar em muitos detalhes, o modelo de produção fabril baseado nos princípios do fordismo e do taylorismo vem sendo superado há algumas décadas. Os operários dentro das fábricas, e dentro de empresas, estão deixando de ser simples cumpridores das tarefas determinadas pelos seus chefes. Passaram a participar de discussões e decisões para melhorar os resultados de seus trabalhos em termos de produtividade e qualidade final dos produtos e serviços.
Aquele operário retratado por Charles Chaplin no filme Tempos Modernos passou por profundas transformações. Ele não é mais um simples peão, não precisa de chefes para desempenhar bem suas funções, discute com seus colegas e toma decisões relacionadas ao seu trabalho cotidiano a fim de melhorar a produtividade e a qualidade dos produtos.
O modelo de exploração da força de trabalho tornou-se, por isso, mais eficaz. Hoje, a empresa não compra apenas a capacidade física e mental do trabalhador, mas compra também a sua alma. O trabalhador precisa estar preparado para engajar-se na luta pela conquista dos objetivos da empresa.
Em síntese, o trabalhador, hoje, nas empresas vinculadas ao mercado globalizado, não é mais um simples cumpridor de tarefas ditadas pelos chefes. Ele precisa saber analisar uma situação, detectar problemas, ter iniciativa, precisa ser criativo, saber trabalhar em equipe, precisa saber tomar decisões e ter disposição para colaborar na conquista dos objetivos da empresa. Ou seja, o mundo do trabalho requer uma escola que forme trabalhadores capazes de assumir compromissos e habituados à cumplicidade.
As empresas necessitam, enfim, de uma força de trabalho diferente daquela que a escola vinha formando através do ensino tradicional. A escola antiga preparava as crianças e os jovens para a disciplina exigida pelo trabalho mecânico, repetitivo e rotineiro das linhas de produção das fábricas. Ensinava os alunos a acatarem ordens, castrando o seu espírito de iniciativa. Ensinava a competir, sem desenvolver a capacidade de cooperar e trabalhar em equipe. Ensinava a cumprir tarefas por obrigação, não instigava os alunos a aprenderem pela motivação própria da conquista de conhecimento, pelo prazer da descoberta, pelo prazer da conquista de objetivos através do trabalho de equipe.
A Escola de Rock mostra muito bem o tipo de formação exigido pelo novo mundo do trabalho.
A crise estrutural do capitalismo
O processo de transformações revolucionárias que estamos vivendo é complexo porque além das profundas mudanças tecnológicas, vem sendo acompanhado por uma crise estrutural do capitalismo.
Todos sabem que o modo de produção capitalista é revolucionário devido à sua capacidade de transformar tudo de forma constante e radical. E, também, devido à sua fantástica capacidade de produzir riquezas.
Entretanto, o capitalismo é contraditório porque não consegue distribuir os frutos do progresso econômico. Pelo contrário, concentra cada vez mais a riqueza gerada pelo trabalho coletivo.
Com o conhecimento e as tecnologias de produção que temos hoje, já seria possível acabar com a fome e a miséria no mundo. E isso com todo mundo trabalhando algumas poucas horas por semana para fazer o trabalho essencial da sociedade que é produzir alimentos, vestuário, construir casas, cuidar da saúde e da educação, da coleta de lixo, da manutenção das vias públicas etc.
Isso tudo seria possível se o regime de propriedade dos meios de produção fosse outro. Na forma de divisão do trabalho e distribuição da riqueza instituída em sociedades de classe, sobretudo no capitalismo, o número de pessoas sem emprego aumenta cada vez mais. E sem emprego, bilhões de habitantes do planeta não podem consumir o que a sociedade tornou-se capaz de produzir graças aos progressos fantásticos da ciência e da tecnologia.
A preocupação das Elites Internacionais
As elites internacionais estão bastantes cientes dos impasses atuais do capitalismo. O Banco Mundial, por exemplo, começou a exigir dos governos nacionais que dependem de seu financiamento uma preocupação maior com as questões sociais. A Organização das Nações Unidas vem cobrando dos países membros a redução das desigualdades sociais bem como a eliminação da pobreza. A ONU constata que as desigualdades estão aumentando no mundo todo.
Desde a crise dos anos 70, as políticas neoliberais têm se firmado tanto em países desenvolvidos como em países considerados em desenvolvimento, como o Brasil, a Argentina e o México. A globalização vem acentuando o predomínio da lógica do capital, sobretudo do capital financeiro, em detrimento das políticas sociais do Estado de Bem Estar. Se os governantes não reduzirem impostos e se não flexibilizarem a legislação, correm o risco da fuga de capitais que pode ser desastrosa para o país por agravar o problema do desemprego. Nesse contexto, apesar das preocupações manifestadas pela ONU, pelo Banco Mundial e pelas organizações da sociedade civil de caráter humanitário, a miséria vem aumentando na face do planeta.
O grande problema da era da globalização é que o Estado de Bem Estar Social está falido mesmo nos países desenvolvidos. A crise fiscal inviabilizou, da mesma forma, as políticas keynesianas de pleno emprego. A mundialização do mercado agravou ainda mais essa crise. Como os governos nacionais são forçados a flexibilizar a legislação trabalhista, a crise social se torna mais perigosa ainda.
Enfim, as transformações revolucionárias que estamos presenciando são preocupantes para as elites dominantes porque contribui enormemente para a piora da crise social. As inovações tecnológicas, como a informatização e a robótica, têm contribuído para aumentar o desemprego. O crescimento econômico não gera mais postos de trabalho, concorre para a diminuição do número de horas de trabalho e, principalmente, para a diminuição de oportunidades para o trabalho não qualificado. O aumento da exclusão e das desigualdades numa sociedade que estimula o consumo compromete os processos de solidariedade e coesão social. As conseqüências são a violência, o aumento do preconceito e da intolerância.
Diante dessa realidade, as elites internacionais sabem que não podem tomar a atitude que a rainha Maria Antonieta tomou, às vésperas da Revolução Francesa, ao ser notificada que o povo estava passando fome e em estado de desespero.
As elites sabem que as contradições do capitalismo podem fazer o sistema econômico e financeiro desmoronar como um castelo de cartas. Nesse caso, as guerras poderiam tornar-se necessárias para o reequilíbrio do sistema, mas, por outro lado, poderiam fazer pipocar revoluções sociais no mundo todo da mesma forma como ocorreu durante e após a 1ª e 2ª guerras mundiais.
Levando-se tudo isso em consideração, as dívidas dos países pobres vêm sendo perdoadas. O capital financeiro internacional não fez muito escândalo quando a Argentina decidiu, de forma unilateral, que só iria pagar uma parte pequena da sua dívida externa. Só o Brasil continua sendo mais realista que os próprios países credores convivendo com a miséria acarretada pelo pagamento, sem fim, da dívida externa.
Um dos paliativos apontados pelo Banco Mundial para amenizar a crise estrutural do capitalismo foi a reforma do ensino básico. De acordo com a UNESCO, a educação deve passar a ser encarada como meio de produzir um desenvolvimento mais harmonioso, mais autêntico, de modo a fazer recuar a pobreza, a exclusão social, o sentimento de injustiça e de revolta.
No Brasil, a reforma do Ensino Médio teve uma preocupação especial com a exclusão social. O sistema de ensino anterior estava contribuindo para reproduzir esta situação de exclusão. De cada 100 alunos que se matriculavam no Ensino Médio, só 16 estavam concluindo o curso. Nesse caso, em lugar de formar cidadãos, a escola estava contribuindo para aumentar a exclusão social.
A Unesco propõe que na sociedade contemporânea a educação deve levar o aluno a aprender por prazer e não por obrigação. O aluno deve sentir o prazer de compreender, de conhecer, de descobrir. Dessa forma, a escola deverá re-despertar a curiosidade natural dos alunos eliminando a repetição e a padronização, estimulando a criatividade, o espírito inventivo e a afetividade valorizando a qualidade, a delicadeza, a sutileza, as formas lúdicas e alegóricas de conhecer o mundo.
A missão fundamental da educação consistiria em ajudar cada indivíduo a desenvolver todo o seu potencial e a tornar-se um ser humano completo, e não um mero instrumento da economia. A aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento de competências deveriam resultar na educação do caráter, na abertura cultural e no despertar da responsabilidade social.
Diante da violência, do desemprego e da vertiginosa substituição tecnológica, espera-se que a escola contribua para a formação de pessoas mais aptas a assimilar mudanças, mais autônomas em suas escolhas, mais solidárias, que acolham e respeitem as diferenças, pratiquem a solidariedade e superem a segmentação social.
A reforma do ensino deve receber o apoio dos professores?
É do interesse da sociedade civil a execução da reforma do ensino exigida pelo Banco Mundial e formulada pelo governo FHC?
Não seria o novo projeto pedagógico do ensino básico mais interessante, politicamente, do que o anterior cuja finalidade era a formação de mão-de-obra adequada ao modelo fordista de organização da fábrica? Não seria mais interessante, politicamente, uma escola que se propõe a desenvolver a autonomia dos jovens do que aquela dirigida para uma vigorosa disciplina do corpo e da mente tendo por finalidade formar trabalhadores que não precisam refletir e que são condicionados a respeitar a hierarquia obedecendo a ordens sem qualquer questionamento?
Hoje, as fábricas estão exigindo trabalhadores com autonomia, que sejam criativos, que tenham iniciativa e capacidade de tomar decisões. E as elites dominantes querem escolas que desenvolvam seres humanos sensíveis, pessoas com uma individualidade bem constituída, com formação humanística e para o exercício da cidadania. Ou seja, querem cidadãos conscientes, que não ajam como massa social revolucionária ou massa de manobra de líderes totalitários.
O contexto histórico está possibilitando a construção de uma escola voltada para o desenvolvimento pleno do ser humano. As elites precisam de profissionais capazes de pensar, cooperar e tomar decisões dentro de suas empresas. E, temendo a revolução social, as elites querem uma escola capaz de formar cidadãos responsáveis, humanizados e civilizados e não seres humanos robotizados, condicionados a obedecer cegamente, com potencial para agir como bestas selvagens em situações de crise social grave.
Considerações finais
Além de mostrar o tipo de ensino adequado às necessidades atuais das empresas, bem como aos interesses das elites cientes das conseqüências catastróficas da crise estrutural do capitalismo, Escola de Rock nos indica de que forma o método pedagógico que apresenta poderia desarmar a bomba social planetária.
O método de ensino adotado pelo falso professor possibilita aos alunos a conquista do sentimento de realização através de uma atividade que exige criação e solidariedade. Podemos notar no filme que as crianças se transfiguram quando se sentem realizadas vendo os resultados do trabalho realizado coletivamente.
Do ponto de vista marxista, o ser humano se realiza ontologicamente através do trabalho não alienado, isto é, do trabalho de criação cultural, sobretudo artístico. Para alguns marxistas, uma outra forma de as pessoas se sentirem realizadas é através de relações sociais não alienadas, ou seja, relações sociais orientadas pela afetividade, pela solidariedade, pela amizade sincera, pelo amor à humanidade e não pela competitividade e pela lei da selva impostas pelos princípios utilitaristas de mercado. No filme Escola de Rock, em lugar de competir para ver quem tirava a nota mais alta, os alunos foram obrigados a cooperar para fazerem um trabalho bonito, gratificante e emocionante.
Em suma, a melhor forma de tentar evitar uma explosão social de proporções planetárias é oferecer às pessoas a oportunidade de se sentirem gratificadas através de relações sociais de tipo comunitário e através do trabalho de criação artística e cultural.
Um ser humano que se sentisse verdadeiramente realizado deixaria de sentir a necessidade de consumir para preencher o vazio ontológico produzido pelo trabalho e pelas relações sociais alienadas.
À massa de excluídos das relações de mercado poderia ser oferecido o direito de viver em comunidades ordenadas por princípios diferentes daqueles estabelecidos pelo capitalismo. Ou seja, comunidades sem propriedade privada dos meios de produção, sem divisão do trabalho, sem divisão social do trabalho, semelhantes às fazendas kibutzim de Israel. Dessa forma, as pessoas ficariam livres da alienação produzida pela mercantilização do mundo, pela lógica totalitária do capital, livres da alienação do trabalho e da alienação das relações sociais. Não seria necessário um Estado e um Direito para garantir a ordem. A ordem comunitária nasceria espontaneamente do sentimento de realização de todos.
As pessoas não necessitariam, também, se drogarem para tentar escapar do vazio ontológico-existencial que lhes é imposto pela sociedade mercantilizada. E, não sentindo mais a necessidade de consumir para preencher este vazio, as pessoas se sentiriam humanas e felizes vivendo de forma muito simples. Como salientou a personagem central do filme A festa de Babete, um artista nunca se sente pobre. Enfim, o Estado não precisaria mais gastar recursos preciosos no combate à violência e ao crime organizado.
Se as elites dominantes estão necessitando de seres humanos que não se sintam frustrados, se elas querem escolas que façam os alunos se sentirem realizados como seres humanos, por que não aproveitar essa oportunidade histórica favorável ao projeto político progressista e emancipacionista? Se querem nos conceder os anéis para não perderem os dedos, por que não aceitar a oferta?
Permitindo à população marginalizada do planeta viver de atividades artísticas e de relações sociais não alienadas, as classes dominantes não precisariam mais se preocupar com a explosão da bomba social. No meu caso particular, gostaria de me readaptar para ensinar numa Escola Comunitária de Arte. Junto com os meus alunos, ficaria produzindo literatura, poesia, música, cinema e teatro, sem qualquer tipo de controle burocrático.
O único risco para o sistema capitalista seria uma emigração em massa para as comunidades alternativas como forma de se escapar do vazio existencial, da necessidade de adrenalina, cocaína e álcool. Aí o sistema poderia quebrar.
Existe, ainda, um outro grande problema. Todos aqueles que já trabalharam dentro de escolas sabem que não adianta reformar a legislação do ensino se não for desmontada toda a estrutura do antigo sistema. Trata-se de uma estrutura monstruosa, talvez até mais sólida do que a da Igreja Católica. Além disso, os professores precisariam passar por uma profunda reciclagem e receber incentivos concretos para abandonarem todo o material que já produziram para subsidiar as suas aulas. Os professores precisariam jogar fora milhares de horas de suas vidas dedicadas ao preparo de aulas, dedicadas à sua qualificação profissional, para começar tudo de novo, do zero. Precisariam reassumir a mentalidade de recém-formados, a mesma condição de Dewey Finn. A diretora do Colégio Horace Green precisaria voltar a ser alegre e divertida. Precisaria abandonar as feições de bruxa que o sistema de ensino, de forma perversa e cruel, lhe infundiu.
A reforma de ensino proposta pelo MEC, se aplicada rigorosamente, sem que estas mudanças sejam efetuadas, pode transformar a escola num circo e produzir um estado de anomia monumental. Pode melar tudo. O resultado pode ser catastrófico porque o estado de anomia faz tudo perder significado. O que seria da escola se o trabalho dos professores perdesse sentido tanto para eles como para os alunos? Nem gosto de pensar nisso...
O método de ensino tradicional tem suas virtudes. Qualquer trabalho, mesmo não alienado, — inclusive o intelectual e artístico —, requer muita disciplina. Por isso, as mudanças propostas pela reforma do ensino exigem educadores sérios, com formação teórica sólida, bem motivados profissionalmente, dispostos a encarar desafios. Caso contrário, a reforma pode acarretar a implementação, dentro das salas de aula, de técnicas de ensino sem nenhuma fundamentação teórica mais consistente. Aí, sim, seria enrolação na verdadeira acepção da palavra.
O Projeto Banda de Rock, apresentado no filme, além de estar apoiado em concepções pedagógicas sólidas, pode ser vinculado, inclusive, a concepções de natureza humana e de desalienação sugeridas pelo marxismo. Ou seja, foi realizado a partir de fundamentos teóricos sérios. Não se trata de nenhuma brincadeira inconseqüente realizada por um professor pedagogicamente despreparado. Mesmo que o filme transmita