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Comentários sobre o ensaio de Marcos Bagno “A dupla face do ‘errogramatical _ a face lingüística e a face sociocultural “

 

Stella Maris Bortoni-Ricardo

1º de novembro de 2004

 

 

poucos dias começou a circular no nosso grupo o ensaio de Marcos Bagno (MB). O que se segue são algumas considerações sobre esse trabalho.

 

1.                     Foi feliz MB ao iniciar suas reflexões situando o ‘erro’ numa perspectiva histórica.  Essas informações  nos permitem ter mais clareza sobre um fenômeno que está tão naturalizado na nossa visão de mundo, que nem sequer suscita muito estranhamento na sociedade. Interessante a referência ao “consensus bonorum” e ao consensus  eruditorum” entre os romanos. ( De onde o autor obteve essas informações?)

2.                     A ênfase do ensaio é na dupla natureza ( ou dupla face) do ‘erro’ : a lingüística e a social. Esta última está relacionada às dimensões sócio-simbólicas das variáveis lingüísticas. Sererroou não sererro’ depende da carga sócio-simbólica associada à variante. Wolfram e Fasold (1974)  estabelecem uma distinção útil entre variáveis que definem uma estratificação  “sharp” e as que definem uma estratificação “gradient”. Desde 198385 venho me valendo dessa distinção para analisar variáveis no Português do Brasil ( variáveis graduais e descontínuas)  Os dois tipos se distinguem pela distribuição da freqüência, mas principalmente pela consciência que a sociedade tem deles e o grau de estigmatização que recebem. A própria comunidade de pesquisadores ( gramáticos tradicionais e lingüistas descritivos) vai aos poucos ‘aceitando certas construções e resistindo a outras.

3.                     Como observa MB ( citando também Marta Scherre ) há variáveis  que passam despercebidas. É o caso da falta de concordância com sujeitos pospostos. Nos meus próprios textos, constato, ao revisá-los, que emprego muitas concordâncias não-padrão ou hipercorreções.

 

4.                     O  caráter sócio-simbólico das variáveis também joga um papel importante na construção das expectativas mútuas quando as pessoas interagem  ( “Quanto eu tenho de me monitorar para falar com ele neste momento?” ), bem como no julgamento que fazemos quando  recorremos ao código padronizado da língua como um quadro de referência. MB levanta ainda outras questões importantes:

 

5.                     Uma língua segue uma deriva, que não representa progresso ou decadência. Ela apenas vai-se alterando, de acordo com suaprogramaçãointerna e com as circunstâncias sócio-históricas das comunidades de fala. Mas com freqüência deparamos com nostálgicos  comentários sobre a bom português de antigamente. Até de profissionais da área ouvi isso.

 

6.                     A variação é inerente a toda língua natural ( Além de traço inerente é também uma fonte de recursos).

 

7.                     Há uma questão no texto que me parece polêmica .  MB está sugerindo ( ou estou enganada?) que é no mínimo uma ingenuidade, no máximo um desrespeito,  acreditar-se  que o uso de formas prestigiadas de falar podem garantir um melhor ajuste do indivíduo na sociedade.  Também acho que acreditar numa relação nômica, necessária, entre  conhecimento da variedade de prestígio e ascensão social é uma atitude simplista. Mas como ignorar o Enem, o Provão, o vestibular, os concursos públicos e todo o aparato que a filosofia meritocrática  contemporânea estabelece como “gatekeepers” no acesso às posições de mais status e melhor temuneração?  Isso me faz lembrar de um verso do samba “Tô” de Tom , na voz de Zélia Duncan, que está freqüentando as paradas : “Tô estudando pra podê ignorá”.

 

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A DUPLA FACE DO “ERROGRAMATICAL:

A FACE LINGÜÍSTICA E A FACE SOCIOCULTURAL

 

Marcos Bagno (UnB – IL – LIV)

 

Como cada um de nós sabe muito bem, sobretudo graças aos avanços da análise do discurso, todo uso da língua implica inevitavelmente relações de sentido e relações de poder. Nessas relações de poder, a língua é freqüentemente utilizada na prática da discriminação, da exclusão social. O preconceito lingüístico vivo e atuante é uma realidade inegável na cultura brasileira.

Talvez possamos atribuir parte do preconceito lingüístico (que existe em todas as culturas ocidentais) ao vigor de uma concepção tradicional de língua, baseada na crença (de inspiração platônica) na existência de uma língua “essencial”, que vive num mundo apenas inteligível, imaterial, fora do alcance dos nossos sentidos. Que concepção tradicional é essa?

Antes de tudo, é uma concepção que trabalha com abstrações. É muito comum falarmos sobre “a língua”, como se ela fosse um sujeito animado, uma entidade viva. Assim, essa “língua” é pensada como se não estivesse neste mundo, como se fosse um objeto místico a ser buscado sem jamais poder ser alcançado. “A língua” é tratada como se existisse numa outra dimensão, supranatural, à maneira das Formas da filosofia platônica, que só podem ser captadas pelo intelecto e não pelos sentidos.

Ora, “a língua” como uma “essência” não existe: o que existe são seres humanos que falam línguas. A língua não é uma abstração: muito pelo contrário, ela é tão concreta quanto os mesmos seres humanos de carne e osso que se servem dela e dos quais ela é parte integrante. Se tivermos isso sempre em mente, poderemos deslocar nossas reflexões de um plano abstrato — “a língua” — para um plano concreto — os falantes da língua.

No caso específico da língua, esse ideal abstrato é sempre situado num passado remoto e nebuloso, enquanto a situação contemporânea de suposta “decadência” é sempre analisada com pessimismo: “Nunca se falou e escreveu tão mal a língua de Ruy Barbosa”, afirmou, por exemplo, em artigo da Folha de S. Paulo de 1511998 o então presidente da Academia Brasileira de Letras, Arnaldo Niskier, o mesmo que no jornal O Dia (2221999) declarou: “A língua portuguesa propriamente dita é muito difícil”, declaração em que a língua é nitidamente assimilada a uma essência ou Forma ideal (“propriamente dita”) praticamente inalcançável (“muito difícil”).

Uma das conseqüências mais evidentes dessa visão essencialista da língua foi o surgimento, há mais de dois mil anos, da doutrina tradicional do erro, tão arraigada em nossa cultura. Evidentemente, não se trata propriamente de uma “língua”, mas, como já disse, de uma idealização nebulosa de correção lingüística, à qual se dá geralmente o problemático nome de “norma culta” — que eu prefiro chamar de “norma cultuada” e que o prof. Ataliba de Castilho costuma designar de “norma oculta”. Essa “norma culta” acaba sendo identificada, no senso comum e na prática pedagógica tradicional, com a própria noção de “língua portuguesa” ou de “português”, numa equivocada sinonímia de graves conseqüências para o indivíduo e para a sociedade: o uso que não está consagrado nessa “norma culta” (o uso que não está abonado nas gramáticas normativas e nos dicionários) simplesmente “não existe” ou “não é português”. Esse modo de conceber os fatos de linguagem condena ao submundo do não-ser  determinadas manifestações lingüísticas não-normatizadas, rotuladas automaticamente de “erro” — e, junto com as formas lingüísticas estigmatizadas, condena-se ao silêncio e à quase-inexistência as pessoas que se servem delas.

Ora, já está mais do que comprovado que, do ponto de vista exclusivamente científico, não existe erro em língua, o que existe é variação e mudança, e a variação e a mudança não são “acidentes de percurso”: muito pelo contrário, elas são constitutivas da natureza mesma de todas as línguas humanas vivas. Além disso, as línguas não variammudam nem para “melhor” nem para “pior”, elas não “progridem” nem se “deterioram”: elas simplesmente (e até obviamente, eu diria) variam e mudam... O português brasileiro, por exemplo, não vai nem bem nem mal, ele simplesmente vai, isto é, segue seu impulso natural na direção da variação e da mudança (que, insisto, são simplesmente variação e mudança e nada têm a ver com “progresso” ou “decadência”).

Desse modo, tudo aquilo que é classificado tradicionalmente de “erro” tem uma explicação científica perfeitamente demonstrável. A noção de erro em língua é inaceitável dentro de uma abordagem científica dos fenômenos da linguagem. Afinal, nenhuma ciência pode considerar a existência de erros em seu objeto de estudo (os erros, falhas e equívocos podem ocorrer nas metodologias de pesquisa, nos procedimentos de análise, na elaboração de construtos teóricos, nos preconceitos de diversa natureza ideológica que o cientista pode assumir consciente ou inconscientemente, mas não no objeto em si). É impossível imaginar um zoólogo, por exemplo, observando dois espécimes de aves de uma mesma família para concluir que um deles está “errado” por apresentar algum tipo de diferença em relação aos outros indivíduos da família. Em vez disso, ele vai considerar as diferenças como objetos que merecem análise e que suscitam hipóteses e teorizações para explicá-los.

No entanto, mesmo que tenhamos tudo isso muito claro em nossas mentes, é preciso sempre lembrar que, do ponto de vista sociocultural, o “erro” existe e sua maior ou menor “gravidade” depende precisamente da distribuição dos falantes dentro da pirâmide das classes sociais, que é também uma pirâmide de variedades lingüísticas. Quanto mais baixo estiver um falante na escala social, maior número de “erros” as camadas mais elevadas atribuirão à sua variedade lingüística (e a diversas outras características sociais dele). O “erro” lingüístico, do ponto de vista sociológico e antropológico, se baseia, portanto, numa avaliação negativa que nada tem de lingüística: é uma avaliação estritamente baseada no valor social atribuído ao falante, no seu poder aquisitivo, no seu grau de escolarização, na sua renda mensal, na sua origem geográfica, nos postos de comando que lhe são permitidos ou proibidos, na cor de sua pele, no seu sexo e outros critérios e preconceitos estritamente socioeconômicos e culturais. Por isso é que, muitas vezes, um mesmo suposto erro é considerado como uma “licença poética” quando surge num texto assinado por um autor de renome ou na fala de um membro das classes privilegiadas, e como um “vício de linguagem” ou um “atentado contra a língua” quando se materializa na fala ou na escrita de uma pessoa estigmatizada socialmente.

Do ponto de vista estritamente lingüístico, não existe diferença funcional (nem, muito menos, erro) entre dizer os menino tudo veio e os meninos todos vieram, mas do ponto de vista social a regra gramatical <eliminar plurais redundantes> é avaliada negativamente e rotulada de “erro”, rótulo que, automaticamente, é aplicado a todas as demais características físicas e psicológicas bem como a todos os outros comportamentos sociais do falante que se serve dela. De fato, o suposto erro lingüístico parece desencadear uma série de avaliações negativas lançadas sobre o indivíduo, numa cadeia de causas e conseqüências que, por ser meramente ideológica é, necessariamente, falsa: alguém fala errado  porque pensa errado, porque age errado, porque é errado... O outro lado da mesma moeda ideológica é fácil de imaginar: quem fala certo, pensa certo, age certo, é certo... Esse preconceito social é milenar e já existia, por exemplo, na sociedade romana antiga, onde se falava do consensus bonorum identificado com o consensus eruditorum: as pessoas cultas, educadas e polidas tinham de ser, por conseqüência natural, pessoas boas, honestas, idôneas... Não é de espantar que no senso comum das classes favorecidas exista o preconceito muito arraigado de que todos os pobres são propensos ao vício, à desonestidade, à preguiça, à corrupção moral e à violência..., além, é claro, de falarem tudo errado.

Têm havido, me parece, muitos equívocos no tratamento da questão do “erro” gramatical. Poderíamos classificar esses equívocos em dois grandes grupos. No primeiro grupo estão as atitudes daquelas pessoas que, fascinadas pelos avanços da pesquisa científica, se limitam a considerar os “erros” exclusivamente do ponto de vista lingüístico e negam totalmente sua existência, uma vez que todos os fenômenos divergentes da norma-padrão codificada podem e devem ser explicados à luz de teorias lingüísticas consistentes. No segundo grupo estão as atitudes daquelas pessoas que só consideram o ponto de vista sociocultural e se deixam comover por uma boa intenção baseada na ilusão de que o domínio da tal “norma culta” permite “ascensão social”: assim, elas têm consciência de que o não-respeito às formas gramaticais normatizadas pode ser prejudicial ao futuro do indivíduo que as desobedece e acreditam que é preciso substituir essas formas não-normatizadas pelas formas canônicas, que gozam de prestígio na sociedade.

Acredito que, sobretudo no que diz respeito ao ensino de língua na escola, nós não podemos perder de vista a “dupla personalidade” daquilo que tradicionalmente se chama de “erro”. O erro é uma moeda, e como toda moeda, ele tem duas faces: uma face lingüística e uma face sociocultural. Como já disse e insisto em repetir, do ponto de vista estritamente lingüístico não existe erro na língua, uma vez que é possível explicar cientificamente toda e qualquer construção lingüística divergente daquela que a norma-padrão tradicional cobra do falante. Mas, do ponto de vista sociocultural, o erro existe, sim, e não podemos fingir que não sabemos do peso que ele tem na vida diária dos falantes. É na face sociocultural dessa moeda que está impresso o valor que se atribui ao suposto “erro”. É esse valor que vai entrar em jogo naquilo que Pierre Bourdieu chama de “a economia das trocas lingüísticas”. Quanto vale a língua que eu uso nesse mercado?

Voltando a falar da escola, uma das tarefas de um ensino de língua mais esclarecido seria, então, discutir os valores sociais atribuídos a cada variante lingüística, enfatizando a carga de discriminação que pesa sobre determinados usos da língua, de modo a conscientizar o aluno de que sua produção lingüística, oral ou escrita, estará sempre sujeita a uma avaliação social, positiva ou negativa. É mais do que justo cobrar do professor que ele explique, com base em teorias lingüísticas consistentes, a origem e o funcionamento das formas lingüísticas consideradas não-padrão, que mostre as regras gramaticais que governam cada uma delas. Isso deixará claro que as opções alternativas à regra-padrão tradicional não são caóticas nem confusas nem incoerentes: muito pelo contrário, obedecem regras tão lógicas e consistentes quanto as que governam a opção-padrão e por isso podem ser explicadas cientificamente. A consciência gera responsabilidade. E é ao usuário da língua, ao falanteescrevente bom conhecedor das opções oferecidas pelo idioma, que caberá fazer a escolha dele, eleger as opções dele, mesmo que elas sejam menos aceitáveis por parte de membros de outras camadas sociais diferentes da dele. O que não podemos é negar a ele o conhecimento de todas as opções possíveis. Também não podemos forçar o indivíduo a querer usar as regras padronizadas simplesmente porque nós acreditamos que assim ele se enquadrará melhor na sociedade. E se ele não quiser se enquadrar? E se ele considerar que esta sociedade injusta, excludente e discriminadora não merece o esforço do enquadramento? E se ele quiser, justamente, mostrar a sua diferença, marcar seu distanciamento em relação ao que os grupos dominantes da sociedade consideram o “melhor” ou o “mais aceitável”? E se fizer questão de mostrar que não pertence ao grupo dos “barões doutos”? E se quiser usar a língua como instrumento de crítica e contestação do modelo social vigente? Temos o direito de fazer escolhas no lugar de outras pessoas? É claro que não. Por outro lado, como educadores, temos o dever de expor serenamente os riscos, as vantagens e as desvantagens inerentes ao uso da regra gramatical X ou Y.

Marta Scherre é uma pesquisadora consciente dessa dupla face da velha noção de “erro”. Em seu artigo “A norma do imperativo e o imperativo da norma” (incluído no livro Lingüística da norma, que organizei em 2002) ela enfatiza que

 

em matéria de linguagem, temos tendência a rotular de ‘erradas’ predominantemente as formas que fazem correlação estreita com classe social, mesmo que, consciente ou inconscientemente, façamos uso destas mesmas formas na fala espontânea e na escrita revisada”.

 

Neste trabalho, Scherre mostra que se quem desrespeita as regras da norma-padrão pertence às classes sociais privilegiadas, esse desrespeito não sofre estigma, não é considerado “erro”, não “dói no ouvido” do falante nem lhe causa arrepios. É o caso, que ela analisa no texto citado, dos usos do imperativo no português brasileiro. Por outro lado, se quem desrespeita as regras padronizadas pertence às classes sociais subalternas, então esse desrespeito é estigmatizado, é visto como um atentado contra a língua, é ridicularizado etc. É o caso, que ela também analisou, das regras de concordância.

Quero concluir com um exemplo concreto dessa visão diversificada do que é erro, a visão de que, para os falantes das classes sociais privilegiadas, existem erros mais errados do que outros.

No dia 3 de julho de 2002, a jornalista Dora Kraemer, que escreve no Jornal do Brasil uma coluna chamada “Coisas de política”, fez uma análise da convenção nacional do Partido do Trabalhadores, realizada em São Paulo. O texto é muito longo, por isso selecionei aqui apenas os trechos que interessam à nossa discussão.

 

 

 

3 de julho 2002 Jornal do Brasil

 

PT enquadra até a militância – Dora Kraemer

 

De atenção voltada para a emoção, eis que os acontecimentos políticos nos pegam em flagrante descuido eleitoral. Contrariando todas as previsões - artigo em baixa cotação no mercado - a campanha seguiu seu ritmo normal, se é que se pode chamar de normal tanta troca de chumbo em uma guerra que, a rigor, só começa daqui a três dias.

 

Na véspera da final da Copa do Mundo o PT fez convenção nacional em São Paulo, mas adiou a divulgação da proposta de plataforma de governo exatamente para não deixá-la em segundo plano na cena ocupada pelo futebol. E, por causa do esporte, na imprensa deixamos de registrar em todos os seus detalhes a mudança do figurino nos encontros petistas, agora de um profissionalismo ímpar sob a batuta de Duda Mendonça. [...]

 

Ou Duda resolveu que aquilo é charme, ou Lula não vê contradição em discursar pelo incremento da Educação neste país, sem fazer uma única homenagem a um simples plural. Sobre a concordância verbal, então, melhor não descer a minudências.

 

E isso logo agora que Lula tem um vice que lá na convenção fez questão de contar a vida toda ao microfone, incluindo a passagem em que aplicava parte do parco salário no pagamento de um professor de matemática e outro de português. Veja o PT como seria agora simples a correção daquele pequeno cacoete que o partido acha que desperta o preconceito dos partidários da idéia de que, quem pretende dirigir a pátria, deveria pelo menos falar direito o idioma pátrio.

 

Mas, considerando que George Bush também claudica visivelmente no inglês, vai ver que hoje em dia essas coisas já não têm a menor importância. [...]

 

Doutor engavetado  

 

Havia receio entre os petistas reunidos sábado passado, no Parque do Anhembi em São Paulo, com a possibilidade de vir a público gravações resultantes de grampos em telefones de altas figuras do partido.

 

Mas havia também perplexidade com o pedido do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, de abertura de inquérito contra José Dirceu, presidente do PT.

 

[...]

 

 

Estamos aqui diante de uma comprovação palpável das atitudes divergentes dos chamados falantes cultos diante dos fenômenos da variação lingüística. A jornalista não poupa críticas aos “erros” cometidos por Lula quanto às regras de concordância nominal e verbal. No entanto, ela mesma não se incomoda em usar uma dessas regras variáveis, ao escrever “a possibilidade de vir a público gravações”, porque essa regra de concordância já está perfeitamente incorporada ao português brasileiro culto contemporâneo. É a regra que se aplica ao sujeito anteposto ao verbo: quase sistematicamente, quando o verbo aparece em primeiro lugar no sintagma, contrariando a ordem canônica da frase portuguesa, que é Sujeito-Verbo, nós deixamos este verbo no singular, mesmo quando o sujeito é plural. Todos os brasileiros, independentemente da classe social ou do grau de escolaridade, dizemos, todos os dias, coisas como: “Quando vai chegar os livros que eu pedi?”, “Foi feita todas as alterações que você sugeriu”, “Telefonou umas vinte pessoas pra você”... Essa regra já é tão predominante na língua falada, que mesmo na escrita mais monitorada ela ocorre, como nestes exemplos que cito do artigo da profa. Marta Scherre:

 

·         Não importa as sucessivas decisões judiciais favoráveis ao pagamento (Correio Braziliense, 28112001, p.3, c.3);

 

·         Falta ao governo FH decisões corajosas e firmes, principalmente contra os partidos que o apóiam (O Estado de São Paulo, 1791995, A-2, c.2);

·         Ainda não se sabe como será conduzida as negociações sobre o destino da política salarial na reunião que o presidente Itamar Franco convocou para amanha à tarde no Palácio do Planalto. (Correio Braziliense, 1871993, Brasil, p.3, c.2).

 

Diante disso, me parece que fica muito claro que o preconceito lingüístico, na verdade, não existe: o que existe, mesmo, é um preconceito essencialmente social, que se serve do uso da língua como pretexto válido para excluir a maioria dos falantes dos bens sociais, culturais, econômicos e políticos, que ficam então reservados às pequenas camadas dominantes.

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Indicadores do Inep, IBGE e PNUD estão reunidos no Mapa do Analfabetismo, que traz informações de todos os municípios brasileiros

A distribuição das pessoas que não sabem ler e escrever pelas diversas regiões do País mostra que existe uma elevada concentração desta população nas grandes cidades brasileiras. Em 125 municípios, de um total de 5.507, estão 25% dos analfabetos do País, e 586 cidades respondem pela metade dos analfabetos da população com 15 anos ou mais, segundo dados de 2000.

Entre os cem municípios com maior número de analfabetos estão 24 capitais. A cidade de São Paulo apresenta o maior número de pessoas que não sabem ler e escrever: 383 mil. Em seguida está o Rio de Janeiro, com 199 mil.

Estas informações estão no Mapa do Analfabetismo no Brasil, estudo produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, que traça um panorama da situação educacional de todos os municípios brasileiros. A publicação reúne indicadores produzidos em 2000 pelo IBGE, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e pelo Inep.

O Brasil possui cerca de 16 milhões de analfabetos com 15 anos ou mais e 30 milhões de analfabetos funcionais, conceito que define as pessoas com menos de quatro anos de estudo. Além de apresentar e analisar estes dados gerais, o estudo detalha a situação do analfabetismo, apresentando informações por faixa etária, gênero, raça, localização (rural e urbana) e renda domiciliar.

Também estão disponíveis a taxa de analfabetismo funcional, o número médio de séries concluídas pela população e a freqüência à escola, assim como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Essas informações são complementadas com o número de alunos matriculados em cada nível de ensino e o número de docentes e de estabelecimentos.

O objetivo da publicação é colocar informações à disposição de todas as instâncias administrativas, para subsidiar a formulação das políticas para a área e ampliar a reflexão sobre o tema. A análise das informações disponíveis mostra, por exemplo, que 35% dos analfabetos já freqüentaram a escola, segundo dados do IBGE de 2001.

Em face desta situação, o estudo destaca que o mais preocupante é que, a despeito dos avanços conquistados, ainda observamos o baixo desempenho dos sistemas de ensino, caracterizado pelas baixas taxas de sucesso escolar, sobretudo nos primeiros anos de escolaridade.

As informações do Mapa do Analfabetismo serão enviadas às secretarias estaduais de educação e secretarias municipais das capitais de estado. Também estarão disponíveis para consulta no endereço eletrônico www.inep.gov.br.

Em apenas 19 municípios população possui mais de 8 anos de estudo
A análise do grau de escolarização da população, ou seja, o número médio de séries concluídas, mostra que em apenas 19 cidades brasileiras a população possui um índice que corresponde às oito séries do ensino fundamental. Em outros 1.796 municípios do País a escolarização média da população é inferior a quatro séries concluídas, o que não é suficiente para o término do primeiro ciclo do ensino fundamental.

A partir destes dados, o estudo mostra que existe uma forte correlação entre o grau de instrução e a taxa de analfabetismo. Em Niterói (RJ), cuja população possui o maior número médio de séries concluídas do País, de 9,5 anos, a taxa de analfabetismo é de 3,6%.

No outro extremo está a cidade de Guaribas (PI), na qual a população tem, em média, apenas 1,1 série concluída. No município, a taxa de analfabetismo é de 59%, e o analfabetismo funcional alcança quase 93% da população.

As diferenças regionais ficam evidentes quando se leva em conta o grau de instrução da população. Todos os dez municípios com melhores indicadores estão nas Regiões Sul e Sudeste, e as dez cidades com o menor número médio de séries concluídas estão nas Regiões Norte e Nordeste.

Analfabetismo chega a ser 20 vezes maior entre mais pobres
As taxas de analfabetismo estão diretamente relacionadas à renda familiar, segundo os dados apresentados pelo Mapa do Analfabetismo. Nos domicílios que possuem renda superior a 10 salários mínimos, o índice é de apenas 1,4%, enquanto nas famílias que possuem renda inferior a um salário mínimo o índice alcança 29%.

Na Região Nordeste o contraste é ainda maior. Nos domicílios com renda até um salário mínimo o índice é de cerca de 37%, e nas famílias com renda acima de 10 salários mínimos o analfabetismo é de 1,8% da população de 15 anos ou mais.

Faixas etárias - O analfabetismo atinge pessoas de todas as faixas etárias, com intensidades diferentes. Na faixa de 10 a 19 anos, 7,4% da população é de analfabetos. Enquanto os analfabetos nas faixas etárias mais avançadas foram criados pelo sistema educacional de décadas atrás, os analfabetos mais jovens deveriam ter sido alfabetizados ao longo dos últimos anos, mostrando assim a atual situação do ensino fundamental em nosso País, afirma Otaviano Helene, presidente do Inep.

A maior concentração de analfabetos está na população de 60 anos ou mais, onde 34% das pessoas não sabem ler e escrever. O relatório defende estratégias específicas voltadas para cada segmento etário. O que os trabalhos na área mostram é que os alunos recém-alfabetizados devem ser imediatamente encaminhados para o ensino regular, para evitar uma das características mais comuns em programas de alfabetização em massa: o retorno à condição de analfabeto em curto prazo de tempo.

Localização - No meio rural brasileiro, a taxa de analfabetismo é três vezes superior à da população urbana: 28,7% e 9,5%, respectivamente. Os contrastes regionais são bastante acentuados, quando se compara a situação no campo. No Nordeste, o índice é de 40,7%, alcançando 49,2% no Estado do Piauí. A melhor situação está na Região Sul, com 11,9% de analfabetos na área rural. Apesar de, em números absolutos, o número de pessoas iletradas no campo ser inferior ao das cidades, as taxas indicam uma situação grave que necessita de uma política específica, afirma José Marcelino de Rezende Pinto, diretor de Tratamento e Disseminação de Informações Educacionais do Inep .

Erradicação do analfabetismo exigiria 200 mil alfabetizadores
O Brasil possui cerca de 49 mil professores atuando no primeiro ciclo do ensino fundamental na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), cerca de 800 mil no primeiro ciclo do Ensino Fundamental Regular e mais de 700 mil no segundo ciclo do Ensino Fundamental Regular.

Segundo o estudo, um programa de alfabetização que trabalhasse com um ciclo semestral - prazo em que alfabetizaria e deixaria o educando atendido em condições de reingressar nos sistemas de ensino - e que tivesse por meta erradicar o analfabetismo em quatro anos exigiria cerca de 200 mil alfabetizadores. Trata-se um número, embora avantajado, absolutamente realista, em especial considerando que as matrículas de 1ª a 4ª série no Ensino Fundamental estão em queda no país, liberando salas e docentes.

Ao considerar a erradicação do analfabetismo como meta factível, os autores lembram a necessidade de um grande esforço nacional, a exemplo do que ocorreu em outros países. Uma ressalva, no entanto, é feita no que diz respeito à qualidade dos programas voltados à alfabetização de jovens e adultos e nas várias tentativas já realizadas no País. O que faltou muitas vezes foram programas de qualidade, claramente delineados para seus diferentes perfis, e com o nível de profissionalização que se espera de qualquer atividade. Nesta área, improvisação geralmente redunda em fracasso, finaliza.
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Em trabalhos recentes, voltados principalmente para a formação de professores alfabetizadores e de séries iniciais (Bortoni-Ricardo, 2004a e b), tenho discutido muito a questão de erros de ortografia. Propus mesmo que seja feita uma distinção funcional entre erros de ortografia que resultam da interferência de traços da oralidade e erros que se explicam porque a escrita é regida por um sistema de convenções cujo aprendizado é lento e depende da familiaridade que cada leitor vai adquirindo com ela, em diversos suportes: livros e textos impressos em geral, áudios-visuais, internet e outros usos do computador, outdoors e quaisquer  objetos portadores de textos.

 

   Estou incluindo neste trabalho fragmentos do Projeto PRALER (www.fundescola.mec.gov.br),  que ilustram o tratamento sociolingüístico que venho conferindo aos textos voltados para a formação de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental.

 

Fragmento 1:

Todos sabemos bem que nossos alunos, quando chegam à escola, já são capazes de falar com muita competência o português, que é a língua materna da grande maioria dos brasileiros. Você não precisa se preocupar em ensiná-los a se comunicar usando a língua portuguesa em tarefas comunicativas mais simples, do dia-a-dia, que já fazem parte  de sua competência comunicativa. Todos nós começamos a dominar essas tarefas comunicativas desde nossos primeiros meses de vida. À medida que a criança cresce vai ampliando essas habilidades.

No entanto, é nossa tarefa na escola ajudar os alunos a refletir sobre sua língua materna. Essa reflexão torna mais fácil para eles desenvolver sua competência e ampliar o número e a natureza das tarefas comunicativas que já são capazes de realizar, primeiramente na língua oral e, depois, também, por meio da língua escrita. A reflexão sobre a língua que usam torna-se especialmente crucial quando nossos alunos começam a conviver com a modalidade escrita da língua.

 

Fragmento 2:

Em primeiro lugar, os professores-alfabetizadores têm de aprender a fazer a distinção entre problemas na escrita e na leitura que decorrem da interferência de regras fonológicas variáveis e outros que se explicam simplesmente pela falta de familiaridade do alfabetizando com as convenções da língua escrita. O diagrama seguinte ilustra essa distinção.

 

Na análise dos problemas ortográficos, começamos por recolher amostras da produção escrita de nossos alunos. Nessas amostras identificamos palavras ou seqüências cuja grafia ainda não está de acordo com as regras da ortografia. Em seguida, fazemos a distinção entre problemas ortográficos que são reflexos de interferências da pronúncia na produção escrita e problemas que decorrem simplesmente do caráter arbitrário das convenções ortográficas. Por exemplo, se o alfabetizando escreve: “O que eu quero se quando crece e um contado ingual meu pai”, sabemos que ele escreveu “se”, “contado” e “crece” (ser, contador, crescer) sem o “r” final porque ele pronuncia com freqüência essas palavras sem o fonema r final. Também na palavra “ingual”, podemos supor que a regra de nasalização de sílabas iniciais seja produtiva em seu repertório. Já na palavra “crece” (crescer) a ausência da letra “s” no dígrafo “sc” não se explica por interferência da oralidade, mas pela pouca familiaridade do alfabetizando com as convenções da escrita. A coleta desse material nos ajuda a visualizar o perfil sociolingüístico dos alunos, considerando-se aí seus antecedentes sociodemográficos, bem como seu repertório estilístico nas modalidades oral e escrita.  De posse dessas informações, o professor poderá organizar uma agenda do trabalho pedagógico com aquele aluno e os demais. Ao desenvolver essa agenda, estará coletando mais dados para realimentar sua análise.

 

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Fragmento 3:

 

No texto seguinte encontramos vários problemas na ortografia que são decorrentes da influência da fala na escrita e também problemas que  não se explicam pela pronúncia mas, sim, pelo fato de que a jovem autora do texto ainda tem pouca familiaridade com as convenções da língua escrita.

 

O Paiz

 Meu sonho é ser feliz

é conhecê novos lugares

e conhecê o mundo

Meu sonho é ter muintos mais amigos

 

Meu sonho era que o mundo foce um paraizo

tudo moderno

mais tudo em paiz

cada um no seu lugá

 

Nota: A autora é uma  menina de 9 anos, cursando 3ª série no Distrito Federal. O texto foi  coletado por Juliana Moreira Del Fiaco, aluna do Curso de Pedagogia na Universidade de Brasília.

 

Vamos começar a analisar o texto  pelos problemas que resultam de interferência na fala na escrita.

 

Em “conhecê” , a autora do texto não escreveu o “r” final. De fato, no português brasileiro, há uma forte tendência para suprimirmos o r final nos infinitivos verbais. Veja que em “ser”, o “r” apareceu. É que essa regra de supressão do r é uma regra variável. Ora suprimimos o r final na nossa pronúncia, ora o realizamos. Tendemos a suprimi-lo mais freqüentemente nos infinitivos e nas formas verbais do futuro do subjuntivo  e em palavras com mais de uma sílaba. No texto, vemos que a autora também o suprimiu no substantivo “lugá”.  Ao verificar esses problemas, o professor deve preparar várias atividades com essa aluna de modo a levá-la a tomar consciência de que,  na fala, costumamos suprimir o r final, mas, na escrita, temos de escrevê-lo.  Para facilitar a conscientização desse fenômeno (perda do r final), o professor poderá chamar a atenção para as variadas realizações desse r, nas diversas regiões do Brasil. Em algumas regiões  o r é pronunciado  na garganta ( r velar), como no Rio de Janeiro e em Brasília, por exemplo. Em outras é pronunciado como uma vibrante na ponta da língua (no Paraná, por exemplo) e em certas regiões, no interior do Brasil, com a língua  encolhida ( r retroflexo).

 

Outro problema que resulta da interferência da pronúncia na escrita se vê na palavra “muintos” . Em quase todas as regiões do Brasil, pronunciamos assim essa palavra, e as crianças, quando estão aprendendo a escrever, a reproduzem como a falam. É preciso mostrar-lhes que falamos  “muintos”, mas escrevemos “muitos”. Outra pronúncia regional dessa palavra, encontrada em pontos da Região Nordeste,  é muntcho.

A maior parte dos problemas que verificamos no texto provém do fato de que a criança que o escreveu ainda tem pouco conhecimento das convenções da língua escrita. Essas convenções são arbitrárias. Como já vimos, os gramáticos de cada língua passam muitos anos, às vezes, até mais de um século, definindo as convenções da ortografia. Para nos familiarizarmos com essas convenções, isto é, com a forma convencionada de se escrever cada palavra, precisamos ter muito contato com a língua escrita, lendo e escrevendo muito. Quando temos dúvida, vamos a um dicionário.

No texto, vemos ainda que a aluna ainda não sabe escrever “paiz”. Escreveu essa palavra com “z”, como em “raiz”. Mas a forma convencionada de se escrever “país” é com a letra “s” ao final, indicando-se o hiato com um acento agudo na segunda vogal do hiato :  “país”. O professor vai precisar  trabalhar com essa aluna palavras como “país”, “raiz”. Pode mostrar-lhe também que o nome próprio “Luís”, pode ser escrito assim com “s” e acento no “i”,  ou assim: “Luiz”.

   Também em “paraizo”  e “foce”, vemos que a autora do texto precisa familiarizar-se mais com as convenções. A forma verbal “fosse” deverá ser trabalhada juntamente com outras que apresentam o morfema modo-temporal –sse .

  Temos aí um convenção ortográfica prevista pela regularidade morfológica ( ver, a propósito, Morais, 1999).  Observe-se que ela já escreveu corretamente “feliz” e “natureza”. O professor deve chamar a atenção para  essas ocorrências corretas e desenvolver mais exercícios para que a  aluna aprenda as palavras que ainda não está escrevendo conforme as convenções. Mas deve lembrar-se de exercitar as palavras sempre situando-as em um contexto, em uma frase ou um texto um pouco maior.

 

 

 

 Diante da ênfase na análise e sistematização de erros de ortografia, uma questão – bastante pertinente – que se apresenta é: por que falar em erros na escrita quando evitamos enfatizar erros na oralidade? De fato, a tradição da Sociolingüística, desde o seu nascedouro, amparada pelo conceito de competência comunicativa _ introduzido por  Dell Hymes em 1966, um ano depois que Noam Chomsky trouxe para a teoria lingüística os conceitos de competência e desempenho _ ,  rejeita veementemente a idéia de erros no repertório do falante nativo de uma língua. Todo falante nativo é competente em sua língua materna e nela pode  desempenhar variadas tarefas comunicativas  (para uma discussão mais detalhada, ver Bortoni-Ricardo, 2004 c).

 

O que a sociedade tacha de erro na fala das pessoas a Sociolingüística considera tão-somente uma questão de inadequação da forma utilizada às expectativas do ouvinte. Essas, por sua vez, decorrem das imagens que os interlocutores fazem uns dos outros, dos papéis sociais que estejam desempenhando e das normas e crenças vigentes na comunidade de fala. Em outras palavras, diante de um enunciado que a cultura dominante rejeita por conter um erro, a Sociolingüística analisa a variante ali empregada, avalia o prestígio a ela associado e mostra em que circunstâncias aquela variante é adequada considerando-se as normas vigentes. O erro na língua oral é, pois, um fato social. Ele não decorre da transgressão de um sistema de regras da estrutura da língua e se explica, simplesmente, pela (in)adequação de certas formas a certos usos. Por ser um fato social, só se corporifica quando a sociedade o percebe como um pecado no domínio das etiquetas sociais. A teoria sociolingüística substituiu a noção tradicional de erro pela noção de diferenças entre variedades ou entre estilos. Um erro, como fato social, ocorre quando o falante não encaixa uma determinada variante no contexto que é o seu habitat natural na ecologia sociolingüística de uma comunidade de fala.

 

Essa postura culturalmente relativista da Sociolingüística visou, desde o início, a combater o estigma associado a variantes de pouco prestígio social, ou seja, associado àquilo que a sociedade chama de erro.

 

Pois bem, se para a Sociolingüística não é produtivo – pelo contrário é altamente nefando – o conceito tradicional de erro, por que alguns lingüistas (entre os quais me incluo) transitam com facilidade pela metodologia de erros da língua escrita? Neste texto quero argumentar que as modalidades oral e escrita de uma língua, além das conhecidas distinções que mantêm entre si, distinguem-se ainda pelo estatuto do chamado erro. Vejamos. Na fala, como acabamos de argumentar, não enfatizamos erros, enxergando-os apenas como diferenças entre maneiras possíveis e competitivas de se falar: “se ele vinher” e “se ele vier” são duas maneiras de dizer a mesma coisa, a primeira associada a estigma na ecologia sociolingüística do português do Brasil e a segunda, prestigiada. Ao empregar a primeira dessas variantes fora de um contexto onde ela é comum, o indivíduo não atende a expectativas e sofre como sanção social a pecha de ter cometido um erro. Que decálogo ele transgrediu ao nasalizar a vogal da palavra? O “vinher” é a forma usual na sua rede de relações sociais eou na região de onde provém e se explica pelo próprio paradigma morfológico do verbo vir no qual muitas formas (como “vinha”, “venho”, “vínhamos” etc. contêm o segmento nasal. A transgressão é, como já dissemos, um fato social, pois o estigma se lhe advém pela simples ruptura com uma etiqueta lingüística.

 

Na língua escrita o chamado erro tem uma outra natureza porque representa a transgressão de um código convencionado e prescrito pela ortografia. Aqui também há um forte componente de avaliação social, pois erros ortográficos são avaliados muito negativamente. Mas podemos considerá-lo uma transgressão porque a ortografia é um código que não prevê variação. A ortografia de cada palavra é fixada ao longo de anos e até séculos no processo de codificação lingüística. (Scliar-Cabral, 2003). Com raras exceções cada palavra tem apenas uma grafia.

 

A língua oral, por seu lado, é a província da variação inerente. A variação é de sua própria natureza e é um recurso fundamental para que os falantes marquem suas identidades, seus papéis sociais, seu alinhamento com o interlocutor, enfim, para que amoldem a forma da sua fala à função que essa está desempenhado no processo interacional. Na língua oral, portanto, o indivíduo tem a variação ao seu dispor, cabendo-lhe aprender na escola e na vida a ajustar a variante adequada a cada contexto de uso.

 

Na modalidade escrita a variação não está prevista quando uma língua já venceu os estágios históricos da sua codificação. A uniformidade de que a ortografia se reveste garante sua funcionalidade. Toda variação fonológica de um discurso oral (inclusive e principalmente a de natureza regional) se reduz a uma ortografia fixa e invariável, cuja transgressão não é uma opção aberta para o usuário da língua. Assim, o texto escrito pode ser lido e entendido por falantes com os mais diferentes antecedentes regionais. Estamos pois diante de dois estatutos bem distintos. Ensinamos nossos alunos a usar os recursos da variação oral para tornar sua fala mais competente, preservando contudo suas características sociodemográficas,  e ensinamos nossos alunos a usar a orto-grafia: a grafia normatizada, fixada, canônica. É por isso que à Sociolingüística abomina referir-se a erros quando se trata de fala, considerando-os, todavia, quando são transgressões ortográficas. O erro ortográfico é como um erro aritmético, que se pode facilmente aferir mediante consulta a uma tabuada. O erro ortográfico também é aferível mediante consulta a um guia ortográfico ou a um dicionário.

 

Um professor não se pode eximir de corrigir uma soma aritmética errada. Não pode também ignorar uma palavra com erro ortográfico. Não se preocupará, porém, em fazer constantes intervenções na língua oral de seu aluno porque sabe que ali ele dispõe de flexibilidade para ajustar seus recursos lingüísticos à situação de fala. Um professor poderá aceitar de seu aluno tanto “eu encontrei ele no jardim”, quanto “eu o encontrei no jardim”, dependendo do contexto em que o enunciado apareça. Mas não poderá jamais aceitar que o aluno escreva: “eu encomtrei...”.

 

Considerar uma transgressão à ortografia como erro não significa considerá-la uma deficiência do aluno que dê ensejo a críticas ou a um tratamento que o deixe humilhado. O domínio da ortografia é lento e requer muito contato com a modalidade escrita da língua. Dominar bem as regras de ortografia é um trabalho para toda a trajetória escolar e, quem sabe, para toda a vida do indivíduo.

 

As pedagogias contemporâneas também nos têm ensinado que a aprendizagem da ortografia é, antes de tudo, um trabalho criativo. Quando vai escrever, o aluno reflete sobre o que está fazendo e vai buscar subsídios na sua língua oral e nos conhecimentos que está adquirindo sobre a estrutura da língua escrita para construir hipóteses sobre a forma correta de se escrever. A construção dessas hipóteses vai-se tornando mais eficiente à medida que os alunos avançam na aprendizagem da escrita. Mas, desde o início, mesmo quando escrevem de forma muito diferente da prevista pelas regras ortográficas, os alunos estão construindo suas hipóteses. Os erros que cometem ao escrever ajudam o professor a entender como a hipótese heurística do aluno foi construída. Por isso, cada erro deve ser objeto de produtiva discussão entre professor e aluno. Ao discutir os erros com o aluno, este vai verbalizar o caminho do seu raciocínio na decisão de escrever de uma forma ou de outra.

 

O erro ortográfico também é muito elucidativo porque permite ao professor perceber a interferência dos traços orais da fala do aluno na sua escrita. Analisando os erros de ortografia, juntamente com o aluno, o professor poderá planejar uma agenda de atividades pedagógicas que visem a ajudá-lo a superar os problema apresentados.

 

Cabe então perguntar: e na língua oral, o professor não pode também intervir para fornecer ao aluno uma variante diferente daquela que ele está usando? É claro que pode, mas sem perder de vista o fato de que a língua oral é muito mais flexível e permite variações. A intervenção do professor, quando da produção oral de seus alunos, será sempre para ajudá-los a encontrar a variante adequada a cada evento de fala. Já a intervenção do professor, diante de uma transgressão da ortografia, será para prover a forma gráfica canônica, que não permite variações.

 

Em suma, há uma diferença crucial no tratamento pedagógico de “erros” na produção oral do aluno, que a Sociolingüística considera apenas como alternativas associadas a variantes e estilos diversos, e o erro ortográfico, que consiste numa hipótese heurística mal sucedida na aprendizagem da tecnologia da escrita. O erro ortográfico precisa sempre ser corrigido para que o aluno adquira domínio dessa tecnologia.

 

Referências

Bortoni-Ricardo, S.M. “Interferências da língua oral na língua escrita” in Ramos, Wilsa M. (org.) Praler – Programa de Apoio a Leitura e Escrita, Unidade 13 FUNDESCOLADPESEIFMEC . (www.fundescola.mec.org.br) 2004a.

Bortoni-Ricardo, S.M. “O sistema alfabético: ampliando nossa percepção da relação entre sons e letras” in Ramos, Wilsa M. ( org.) Praler – Programa de  Apoio a Leitura e Escrita, Unidade 12, FUNDESCOLADPESEIFMEC   (www.fundescola.mec.org.br) 2004b

Bortoni-Ricardo, S.M. Educação em língua materna :  a sociolingüística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004c.

Morais, A. G. de “Ortografia:este peculiar objeto de conhecimento”, em Morais, A.G. (org.) O aprendizado da ortografia. pág.7-19, Belo |Horizonte: Autêntica, 1999.

Scliar-Cabral, L. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2003

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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