Quem são esses brasileiros analfabetos residentes no DF?
O Projeto Leitura, tem como objetivo vencer um dos maiores desafios encontrados pelos professores e amantes da literatura: Criar o hábito da leitura.
Projeto LEF Confira artigos, trabalhos, Vídeos, Fotos, projetos na seção do Letramento no Ensino Fundamental.
Stella Maris Bortoni-Ricardo ( UnB)
Publicado em Silva, Camilo Rosa; Hora, Dermeval da;Chhristiano, Maria Elizabeth (orgs.) Linguística - Práticas Pedagógicas, Santa Maria: Pallotti, 2006, p.11-31
A sociolingüística já nasceu, na década de 60 do século passado, muito compromissada com
questões educacionais. No seu nascedouro, nos Estados Unidos, alentava-se com a esperança
de que poderia representar uma contribuição definitiva para melhorar o desempenho escolar
de crianças provenientes de classes trabalhadoras ou de grupos étnicos minoritários, enfim,
de crianças pouco familiarizadas com a língua e a cultura escolar ( Ver, Bortoni-Ricardo,
1997 ou 2005, especialmente os capítulos 12 e 13). Hoje em dia os sociolingüistas são muito
mais realistas e sabem que grande parte do fracasso escolar que essas crianças experimentam
advém de suas próprias condições de pobreza, como sua dieta empobrecida ou até mesmo a
fome, suas condições precárias de moradia, a pouca convivência com os pais, que têm de
trabalhar, o contato prematuro com a criminalidade urbana, a situação precária das escolas
de periferia e tantas outras. Contribui também para o seu fracasso escolar a expectativa
limitada que os professores têm quando tratam com crianças marcadas por essas adversidades.
Nutrem pouca expectativa em relação ao desempenho desses aluno, e isso em atitudes
discriminatórias em sala de aula ( Ver Bortoni-Ricardo e Dettoni ( 2001) e Dettoni (
1995)
Embora detenham hoje uma visão menos ingênua, sociologicamente fundamentada, da
questão do fracasso escolar, ou até mesmo por isso , os sociolingüistas continuam a
trazer suas contribuições para a questão, examinando, em particular, as diferenças entre a
língua oral de determinada comunidade e a língua empregada nas práticas sociais letradas,
com ênfase nas práticas de sala de aula. É com satisfação que constatamos que William
Labov e associados, na Universidade da Pennsylvania , desde maio de 1998, vêm divulgando
relatório de pesquisa sobre erros de leitura de crianças pobres afro-americanas, na qual
esses sociolingüistas retomam as análises contrastivas entre as duas variedades do inglês
envolvidas .
No Brasil, também tem havido muitas contribuições dos sociolingüistas para o ensino da
leitura e escrita. Citem-se, por exemplo, os trabalhos recentes de Maria Cecília Mollica (
2000 e 2003) e de Dermeval da Hora (2004) , os trabalhos de divulgação científica de Marcos
Bagno, bem como os meus livros Educação em Língua Materna, dirigido a professores e Nós
cheguemu na escola, e agora? voltado para os cursos de Letras e Pedagogia, ambos
publicados pela Parábola Editorial em 2004 e 2005, respectivamente.
Também em um recente projeto do MEC, financiado pelo Banco Mundial, PRALER,
(www.fundescola.mec.gov.br), do qual tive a oportunidade de participar, os autores dos
módulos valeram-se de muitos avanços da Sociolingüística Quantitativa e Interacional na
construção de material que pudesse servir de apoio à escrita e à leitura no ensino
fundamental. O que marca esse trabalho é o fato de que as noções de Sociolingüística
julgadas relevantes para o trabalho pedagógico em sala de aula não foram trivializadas,
como às vezes acontece, nem receberam um status residual em relação à contribuição de
outras vertentes das ciências da Linguagem, inclusive a tradição normativa.
Considero que as noções sociolingüísticas são trivializadas quando aparecem em
textos dirigidos a professores sem uma sólida base científica, apoiadas apenas no senso
comum. Freqüentemente vemos também informações sociolingüísticas reduzidas a diferenças
dialetais no léxico, como se todo o componente de variação da língua, que vai ter
conseqüências relevantes no trabalho pedagógico, se limitasse a alguns itens lexicais
tradicionalmente citados como variáveis em diversas regiões brasileiras, por exemplo:
abóbora e jerimum; aipim, mandioca e macaxeira ; pandorga, papagaio e pipa etc.
Entre os bons trabalhos recentes de sociolingüística aplicados à Educação convém citarmos
aqui uma nova geração de dissertações de mestrado, na Faculdade de Educação da Universidade
de Brasília, a partir de 2004, que tem trazido contribuições sociolingüísticas para a
leitura e escrita. Cito três delas: a de Maria do Rosário do Nascimento Ribeiro Alves, que
examina, na escrita de alunos ingressantes no Ensino Médio, problemas na língua escrita que
deveriam ter sido sanados nas séries iniciais; a de Maria Alice Fernandes de Sousa, voltada
para a incorporação de saberes sociolingüísticos no trabalho de uma professora de
alfabetização, e a de Maria Lúcia Resende Silva, que examina a possibilidade de inclusão
de alunos de classes de aceleração em que a professora faz uso de recursos pedagogicamente
sensíveis, fulcrados na pesquisa sociolingüística e etnográfica.
Mais recentemente, estou produzindo textos para um novo programa coordenado pelo
MEC, em parceria com algumas universidades brasileiras, voltado à educação continuada de
professores -- Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica -
MEC/SEB – www.mec.gov.br. A contribuição da Universidade de Brasília para essa rede pode
ser encontrada em www.cform.unb.br. Juntamente com esse programa, que será aplicado em
parceria com as secretarias de educação estaduais e municipais, está sendo produzido também
pelo MEC/SEB um programa a ser veiculado nos estados brasileiros cujos resultados do SAEB –
Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Básico - são mais precários. Trata-se do programa
Pró-Letramento (www.mec.gov.br).
O presente capítulo está baseado em material produzido para esses programas, mais
especificamente nos fascículos “Da fala para e escrita 1 e 2” Módulo 1, Programa de
Formação Continuada em Alfabetização e Linguagem do Cform/UnB e no fascículo “Modos de
falar e modos de escrever”, este último do Pró-Letramento. Mantive algumas características
do gênero dos textos em que me baseei , principalmente o tratamento bem simplificado dos
fenômenos gramaticais em discussão, que visava a uma melhor comunicação com professores que
porventura tivessem poucos conhecimentos de teoria lingüística. No entanto procurei citar
vários trabalhos acadêmicos que aprofundam a discussão.
No citado fascículo “Da fala para a escrita 1”, começamos a tratar do processo de
integração dos saberes da linguagem oral no desenvolvimento da escrita, enfocando
particularmente as regras fonológicas variáveis produtivas no português brasileiro. Vimos
que, quando nossos alunos chegam à escola, já têm uma competência comunicativa bem
desenvolvida. Já são capazes de se comunicar bem, no âmbito da família, e de conversar com
os amigos, colegas, professores etc. Quando começam a ter contato com a língua escrita, ao
aprender a ler e escrever, vão-se valer dos conhecimentos que já têm da língua oral para
se comunicarem também pela língua escrita. Neste capítulo vamos continuar a refletir sobre
os recursos de que as crianças dispõem para se comunicarem oralmente, discutindo a
integração entre saberes da oralidade e da escrita mas vamos ampliar essa discussão,
incluindo, além de regras próprias da pronúncia, regras que atuam na formação das
sentenças, isto é, vamos trabalhar principalmente com algumas características da sintaxe na
fala dos nossos alunos.
Para iniciar nossa tarefa, apresentamos este episódio de uma conversa entre uma
professora e alunos de séries iniciais. A conversa girou sobre a peça de teatro “Pluft, o
fantasminha” de Maria Clara Machado, que as crianças haviam lido e espontaneamente
representado algumas cenas. Maria Clara Machado foi uma das maiores escritoras brasileiras
de peças infantis. Nasceu em 1921 em Belo Horizonte e morreu em 2001 no Rio de Janeiro,
onde morou desde pequena. Era filha do escritor Aníbal Machado. No Rio de Janeiro criou um
famoso grupo de teatro amador, O Tablado. “Pluft, o fantasminha” é uma de suas peças mais
conhecidas e apreciadas pelas crianças .A fala de cada aluno está identificada com um “A”
seguido de um número. A fala da professora está identificada com um “P”.
A1- É pra mim começar a falar, professora?
P- Pode começar sim, Daniel. Nós vamos todos conversar sobre a peça que lemos, “Pluft,
o fantasminha”. Do que vocês gostaram mais?
A2- Eu achei engraçado porque ele tinha medo de gente. E é gente que tem medo de fantasma.
P- E por que ele tinha medo, Tatiana?
A2- É porque ele ainda era pequeno.
A3- Eu gostei muito quando os amigos da menina começou a procurá ela. Um tava carreganu
uma vela, otro tava com uma garrafa e o otro com um mapa.
P- Muito bem, André! Quem se lembra dos nomes deles?
A2- Era João, Julião e Sebastião. E aí ele olhô na garrafa pensanu que era uma luneta e
ele falô: tô venu uma casa perdida na areia branca. Aí o otro falô que eles precisavu
encontrar ela. E eles começaru a cantar. Ele falô: pobre Maribel. E o otro falô:a gente
precisamu salvar a neta do grande capitão Bonança.
P- Eles eram amigos do avô de Maribel, o capitão Bonança.
A3- Eu achei o pirata Perna de Pau muito besta, ele era mau. Ele queria robá ela e deixou
ela presa na casa do Pluft e disse que ninguém ia achar ela nunca mais e falô: se você faze
barulho e saí daí vô te levar pro mar para navegar, navegar, navegar. E saiu e foi buscar
uma lanterna, ele tamém tava com medo de fantasmas.
A1- A menina Maribel tava amarrada na cadera, quando ela viu o Pluft ela desmaiou.
P.Ele também teve medo dela, mas depois ficaram amigos.
A2- Quando Pluft viu a Maribel chorano disse pra mãe dele que ela tava derramano o mar todo
pelos olhos.
P- Ele nunca tinha visto ninguém chorar porque fantasma não chora, senão derrete.
A3- Eu gostei muito quando o tio Gerúndio do Pluft chamô os fantasma do mar pra ajudar a
salvar a Maribel. Eles deru uma surra no Perna de Pau.
P- Eles eram os marinheiros fantasmas. E vocês gostaram também quando o capitão Perna de
Pau encontrou o tesouro?
A2- Ele pensô que tinha um tesouro de verdade.
A1- Ele pensô que o capitão Bonança era rico
P-E como era o tesouro do capitão Bonança?
A3- Tinha uma foto da Maribel, uma receita de pexe assado e um rosário.
P. E o dinhero, onde estava o dinhero?
A2- Ele pensô que o dinhero tava tudo no cofrinho, mas o tio Gerúndio disse que o dinhero
tava no fundo do mar. O Perna de Pau ficou com medo e foi embora.
A1- E todo mundo comeu os pastel de vento da mãe do fantasminha e fizeru uma festa. E
Pluft gritô: viva gente! E cantaru e dançaru.
Vamos refletir agora sobre a conversa entre os três alunos e a professora. Como pudemos
ver, os alunos foram capazes de comentar a peça que eles leram e representaram, recuperando
os pontos principais. Fica bem demonstrada sua habilidade de compreender o texto com o qual
trabalharam e a sua competência comunicativa para conversar sobre esse texto. Observe que
souberam identificar o tema da peça, que é o momento em que uma criança – fantasma ou gente
- enfrenta o dilema de crescer e de lidar com seus medos. Veja por exemplo a primeira fala
de A2: “Eu achei engraçado porque ele tinha medo de gente. E é gente que tem medo de
fantasma.” Foram também capazes de reconhecer os protagonistas e o antagonista, que era o
perigoso marinheiro Perna de Pau. Observem ainda que os alunos souberam estabelecer
relações lógicas, como a relação de causa e efeito, como se vê na resposta que A2 deu à
Professora:
P- “E por que ele tinha medo, Tatiana?”
A2- “ É porque ele ainda era pequeno.”
No curso da conversa, as crianças demonstraram habilidades para usar várias
estratégias interacionais. Usam discurso direto quando dizem: “se você fazê barulho e saí
daí, vô te levar pro mar para navegar, navegar, navegar”.Também usam competentemente o
discurso indireto: “Quando Pluft viu a Maribel chorano disse pra mãe dele que ela tava
derramano o mar todo pelos olhos”.Esses são recursos narrativos que demonstram bem a
competência comunicativa que os alunos já desenvolveram. Eles também fizeram referência a
detalhes da narrativa. Por exemplo: “Tinha uma foto da Maribel, uma receita de pexe assado
e um rosário.” Todas essas são evidências dos recursos comunicativos que já fazem parte da
competência das crianças quando elas começam o processo de aprender a ler e a escrever.
Como acabamos de ver, nossos alunos de séries iniciais já são capazes de manter uma
conversa, fornecendo contribuições relevantes ao tema em questão e fazendo avançar o
processo interativo. Ao produzir suas contribuições para a conversa, expressam-se
espontaneamente, construindo suas frases com os recursos que já têm. Se atentarmos para a
forma de seus enunciados, verificamos que há ali muitos usos próprios da linguagem não-
monitorada, empregada no dia a dia em ambientes informais, nas conversas entre amigos ou
entre pessoas que se conhecem bem. As crianças incorporaram esses usos ao seu repertório
porque convivem em ambientes onde tais usos lingüísticos são freqüentes. No entanto, como
já sabemos, é função da escola ampliar a competência comunicativa dos alunos, ajudando-os a
dominar mais recursos comunicativos. A forma como as crianças do nosso diálogo conversam é
adequada às interações informais, que não exigem uma fala monitorada. Mas, à medida que
forem crescendo e avançando na sua escolaridade, terão necessariamente de participar em
outros eventos, mais formais. Para se ajustarem de forma adequada às expectativas dos
participantes nesses eventos mais formais, vão precisar monitorar também a sua fala. Por
exemplo, na conversa informal com a professora, Daniel disse: “É para mim começar a falar,
professora?”. Esse enunciado não está adequado a um evento de interação mais formal. Numa
circunstância formal, Daniel precisará dizer: “É para eu começar a falar, professora?”.
Esses dois enunciados são variantes da mesma regra variável .
Vejamos agora algumas características da fala dos alunos, discutindo em cada caso a
variante que eles usaram e a outra variante possível, a que é reservada aos estilos mais
monitorados. Quando discutimos regras variáveis com professores, uma pergunta freqüente que
surge é: Por que temos na língua variantes que são bem recebidas em estilos formais e
outras que não o são? Boa pergunta! Vamos a ela.
A língua de uma comunidade é uma atividade social e como qualquer atividade social está
sujeita a normas e convenções de uso .
Em qualquer língua podemos escolher entre usos mais formais ou menos formais. Mas essa
escolha não é totalmente livre. Ela é condicionada pelas normas que definem quando e onde é
adequado usar linguagem informal (não-monitorada) e quando e onde se espera que os
participantes da interação usem linguagem formal (monitorada).
Toda vez que duas ou mais pessoas se envolvem numa interação verbal, cada uma delas
cria expectativas sobre a forma como ela própria e seus interlocutores vão-se comportar.
Queremos dizer que, em uma interação face a face, ou mesmo mediada pelo telefone ou pelo
computador, todas as pessoas envolvidas seguem normas sociais que definem o seu
comportamento, particularmente o seu comportamento lingüístico. Se todas elas consideram a
interação em que estão envolvidas como informal, tenderão a empregar formas lingüísticas
adequadas às interações informais. Se uma delas tiver uma interpretação diferente e
considerar a situação como formal, poderá vir a empregar formas inadequadas para a
situação. Da mesma maneira, em uma situação formal, se um interlocutor escolher usos
lingüísticos informais, sua fala resultará inadequada para a situação. Mas cabe aqui uma
observação. Às vezes uma pessoa reconhece que a situação é formal, dispõe-se a monitorar-se
mas lhe faltam recursos comunicativos próprios da fala monitorada. É por isso que a escola
precisa empenhar-se na ampliação dos recursos comunicativos dos alunos. Dispondo de uma
gama mais ampla de recursos comunicativos, os alunos, sempre que precisarem, saberão
monitorar sua fala, ajustando-se às expectativas de seus interlocutores e às normas sociais
que determinam como as pessoas devem comportar-se em cada situação. Ao fazer isso estão
seguindo normas sociais e serão bem recebidos pelos seus interlocutores. Temos ainda
de nos lembrar de que as normas sociais que definem um comportamento lingüístico adequado
podem ser implícitas, isto é, fazem parte das crenças e dos valores que as pessoas têm. Mas
podem ser explícitas também. É o caso das normas gramaticais. Convém ainda ponderar que as
gramáticas normativas não admitem flexibilidade. Não levam em conta a noção de adequação.
São prescritivas: abonam uma forma considerada correta e rejeitam as que são consideradas
erro. Neste texto não estamos trabalhando com essa postura prescritivista. Vemos os usos da
língua sempre em função de sua adequação à situação de fala.
Tendo esclarecido por que qualquer falante precisa dispor de amplos recursos
comunicativos, vamos refletir sobre a fala dos alunos que comentaram a peça “Pluft o
fantasminha”. Começamos com a fala de Daniel: “É pra mim começar a falar, professora?”.
Você sabe que essa estrutura sintática, muito usada pelas crianças, é considerada errada
pela gramática normativa e não é bem recebida em situações que exigem uma fala monitorada.
Argumenta a gramática que o pronome “mim”, por ser um pronome pessoal oblíquo, não pode
exercer a função de sujeito e recomenda que nessas construções seja usado um pronome reto:
“É para eu começar a falar, professora?”. Depois da preposição “para”, ou qualquer outra
preposição, usamos os chamados pronomes oblíquos: “para mim”; “sem mim”; “por mim”; “para
ti”; “sem ti” etc. No entanto, os gramáticos normativos rejeitam o emprego desses pronomes
oblíquos quando eles são seguidos de um verbo no infinitivo, alegando que, naquela posição,
tem de ocorrer o pronome reto, que exerce a função de sujeito. A escola e a sociedade
brasileira acataram muito fielmente o que os gramáticos disseram a esse respeito. Por isso
é comum ouvirmos diálogos como este entre mãe e filho pequeno por exemplo:
Filho—Mamãe, é pra mim dormir cedo?
Mãe—Mim não dorme, você tem de falar: É pra eu dormir cedo? E é pra você dormir cedo,
sim. Amanhã tem aula.
Crianças pequenas ainda não se familiarizaram com essa exigência gramatical, por isso usam
enunciados como o que Daniel usou com a professora. Sempre que os professores ouvirem
enunciados como esse, devem sugerir ao seu aluno que troque o pronome “mim” pelo pronome
“eu”, mas essa substituição só deverá ser feita quando ao pronome se seguir um verbo no
infinitivo. Veja mais um exemplo nestes versos da música. “Menina” cantada por Netinho.
“Te carreguei no colo, menina
Cantei pra ti dormir.”
Onde o autor da canção usou o pronome “ti”, a gramática normativa recomenda que fosse usado
o pronome do caso reto: “Cantei para tu dormires”.
Continuemos a refletir sobre as características na fala das crianças conversando
com a professora. Vejamos esta fala do André (A3):
“Eu gostei muito quando os amigos da menina começou a procurar ela. Um tava carreganu uma
vela, otro tava com uma garrafa e o otro com um mapa.”
Veja que André falou: “..os amigos da menina começou a procurar ela.” Essa
construção é muito comum no português do Brasil. Mas, se for empregada em uma situação em
que os participantes têm a expectativa de ouvir uma linguagem monitorada, seria mal
recebida. Por quê? Porque existe uma regra gramatical que nos manda “concordar” o predicado
com o sujeito. Se o sujeito está no plural, o predicado que está relacionado com ele também
tem de vir no plural. Como “os amigos da menina” é o sujeito e está no plural, o verbo do
predicado também tem de estar no plural: “Eu gostei muito quando os amigos da menina
começaram a procurar ela”.Na nossa linguagem não-monitorada tendemos muito a não fazer essa
concordância, especialmente quando o verbo está longe do sujeito ou o sujeito vem depois do
verbo. Assim: “Chegou uns pacotes pra você”.
Os pesquisadores que vêm estudando a concordância verbal como uma regra variável nos
mostram que a concordância do verbo com o sujeito plural na terceira pessoa é mais
freqüente quando o sujeito é animado e/ou humano, vem imediatamente antes do verbo e quando
a forma do verbo na terceira pessoa do singular e do plural são bem diferentes. Por
exemplo: “ele dá; eles dão”, “ele é; eles são” .
É importante que os professores, à medida que se tornam
pesquisadores de sua própria prática, comecem a prestar atenção no modo como eles próprios,
seus colegas, amigos, familiares e alunos usam a concordância do verbo com o sujeito na
terceira pessoa do plural, falando ou escrevendo.
Voltemos nossa atenção à fala da menina Tatiana:
A2- Era João, Julião e Sebastião. E aí ele olhô na garrafa pensanu que era uma luneta e
ele falô: tô venu uma casa perdida na areia branca. Aí o otro falô que eles precisavu
encontrar ela. E eles começaru a cantar. Ele falô: pobre Maribel. E o otro falô:a gente
precisamu salvar a neta do grande capitão Bonança.
Há muito o que comentar nessa fala, mas por enquanto vamos nos deter no trechinho:
“a gente precisamu salvar a neta do grande capitão Bonança.”
Muito freqüentemente as crianças usam o pronome de tratamento “ a gente”
acompanhado de um verbo flexionado na primeira pessoa do plural como a Tatiana usou. Esse
pronome “a gente” é muito comum no português brasileiro contemporâneo e substitui, às
vezes, o pronome “eu” e às vezes o pronome “nós”. ( Omena, 1996) Mas, equivalendo à
primeira pessoa do singular – “eu”, ou à primeira pessoa do plural “nós”, a forma “ a
gente” concorda, segundo a gramática normativa, com o verbo na terceira pessoa do
singular: “a gente faz e acontece”. Os professores têm de ficar alerta para o emprego da
forma “a gente” pelos seus alunos, observando como fazem a concordância, especialmente na
educação infantil e no primeiro ciclo do ensino fundamental.
Vamos voltar agora à fala de André: “ Eu gostei muito quando os amigos da menina
começou a procurá ela.”
Além da concordância verbal que acabamos de mencionar, há mais uma característica
nesse enunciado que o tornaria mal recebido numa situação em que os participantes têm
expectativa de que seja usada uma linguagem muito monitorada. Trata-se do emprego do
pronome “ela” como objeto direto (“procurá ela”). Na nossa linguagem não-monitorada
tendemos a usar os pronomes “ele-ela; eles-elas”, que geralmente funcionam como pronomes
sujeito, na função de objeto direto, em lugar dos pronomes oblíquos átonos “o”, “a”, “os”,
“as” (“procurá-la”). Esses pronomes oblíquos átonos de terceira pessoa, quando não são
pronunciados agregados a um /l/, como em “procurá-la” ou a um /n/, como em “ouviram-na” são
pouco perceptíveis. Observe-se que em: “Ele machucou-a assim” o pronome “a” fica pouco
perceptível. Por isso tendemos no português brasileiro a empregar os pronomes “ele”, “ela”
em qualquer função: “Ele machucou ela assim”. Estamos vendo que essas duas frases são
variantes da regra de variação do pronome pessoal de terceira pessoa. Embora seja muito
empregado o chamado pronome sujeito com função de objeto direto, essa variante não é bem
recebida quando estamos escrevendo ou monitorando nossa fala. Vamos refletir um pouco mais
sobre isso.
Vemos a seguir alguns diálogos em que aparecem variantes da regra variável de
emprego dos pronomes de terceira pessoa. Algumas dessas variantes parecem mais aceitáveis
numa interação formal do que outras.
1) Diálogo entre uma senhora e o vendedor na farmácia:
Senhora - O senhor tem aspirina?
Vendedor - Temos de marca e genérico. A senhora vai levá-la?
Senhora – Não. Não vou comprar agora não. Levo depois.
Esse diálogo seria perfeitamente adequado numa interação formal. O vendedor usou a variante
de prestígio da regra variável, que é o pronome objeto (“vai levá-la”). Na última fala da
compradora ela omitiu o objeto direto. Não usou nem o pronome sujeito “ela” nem o pronome
objeto “a” ou “la”. Poderia ter dito: “Não vou comprá-la agora não” ou então “Não vou
comprar ela agora não”. Também poderia ter usado um pronome em “Levo depois”. Assim: “Levo
ela depois” ou “Levo-a depois”. Ao optar por omitir o pronome, evitou usar “Levo ela
depois”, que poderia ser mal recebido, dependendo das expectativas de seu interlocutor e
“Levo-a depois”, que não é uma construção muito comum no português oral do Brasil. Muitas
vezes nós preferimos omitir o pronome objeto para não ter de produzir um enunciado que pode
não ser muito bem recebido. Quando optamos por omitir o pronome, os especialistas dizem que
estamos usando a variante do objeto nulo dessa regra variável ( Tarallo, F. e Duarte, M.E,
1988). Observe que a omissão do pronome não cria dificuldade na comunicação porque o nosso
interlocutor sabe pelo contexto a que estamos nos referindo.
2) Diálogo entre dois palhaços no circo:
Palhaço 1 – Você viu o macaco?
Palhaço 2 – Eu vi ele subindo no trapézio.
Nesse diálogo o Palhaço 2 usou o pronome sujeito “ele” em função de objeto direto. Poderia
também ter dito: “Eu o vi subindo no trapézio”, mas preferiu usar o pronome “ele” para
tornar seu enunciado mais compreensível. Veja que em “Eu vi ele subindo no trapézio” o
pronome “ele” está exercendo a função de objeto direto do verbo “ver” e de sujeito do verbo
“subir”. Por isso construções como essas são mais bem recebidas do que construções em que
os pronomes “ele” ou “ela” somente estão exercendo função de objeto, como em “Eu vi ele”.
3) Diálogo entre uma cliente e um caixa de banco:
Cliente – Quero fazer um depósito em cheque.
Caixa – Me dê ele aqui para eu ver se é desta praça.
Cliente – Acho que deixei ele na bolsa dentro do carro.
Caixa – A senhora pode ir buscar ela que eu espero.
Nesse exemplo temos três empregos do pronome sujeito em função de objeto direto. Nenhum
desses enunciados é adequado para uso na linguagem formal escrita ou na linguagem oral
monitorada.
Vejamos agora outros exemplos da variação do pronome de terceira pessoa em poemas
escritos para crianças.
Nos versos de poemas de Vinícius de Moraes
Os nomes ou pronomes sublinhados estão exercendo função de objeto direto. Os professores
podem levar poemas como estes a sua sala de aula e mostrar a seus alunos como os objetos
diretos podem ser preenchidos com substantivos precedidos ou não de artigo ou com pronomes
de terceira pessoa, na variante de pronome sujeito ou de pronome objeto. Essa será uma boa
oportunidade para que os alunos avaliem quais variantes serão melhor recebidas na escrita e
na fala monitorada e quais são mais adequadas para uma fala coloquial.
O pato pateta
Pintou o caneco
Surrou a galinha
Bateu no marreco.
Quer ver a foca
Fazer uma briga?
É espetar ela bem na barriga.
Quem matou o pintainho?
Eu, disse o pato.
Quem viu ele morto?
Eu, disse o mocho
Com meu olho torto
Eu vi ele morto.
Vamos agora retomar nossa conversa sobre a fala dos alunos Daniel, Tatiana e André com a
Professora. Veja essa resposta que Tatiana deu à Professora.
P- Muito bem, André! Quem se lembra dos nomes deles?
A2- Era João, Julião e Sebastião. E aí ele olhô na garrafa pensanu que era uma
luneta e ele falô: tô venu uma casa perdida na areia branca. Aí o otro falô que eles
precisavu encontrar ela. E eles começaru a cantar. Ele falô: pobre Maribel. E o otro falô:
a gente precisamu salvar a neta do grande capitão Bonança.
Observem que a aluna se referiu aos nomes dos três marinheiros e em seguida empregou
o pronome “ele” duas vezes e o pronome “outro” também duas vezes. Quando usamos os pronomes
pessoais de terceira pessoa (ele-ela, eles-elas) ou os pronomes demonstrativos “ o outro”,
“ a outra”, “um”, etc. estamos sempre nos referindo a alguém ou alguma coisa já mencionada
no discurso. Os especialistas dizem que esses pronomes são anafóricos, isto é, remetem a
algo que já foi mencionado antes. Eles são diferentes do pronome de primeira pessoa “eu” e
de segunda pessoa “tu” ou “você”, que se referem, respectivamente, à pessoa que está
falando e à pessoa que está ouvindo e por isso não suscitam dúvidas. Já os pronomes “ele”,
“ela”, “outro” , por se referirem a um termo mencionado anteriormente, podem dar origem a
ambigüidades: o ouvinte pode não entender de pronto a quem ou a quê o pronome se refere.
Quando isso acontece numa conversa por exemplo, um dos participantes pode perguntar: “Ele
quem?” solicitando mais dados para facilitar sua compreensão. Na língua escrita o leitor
não pode pedir informações desse tipo e por isso o emprego dos pronomes de terceira pessoa
tem de ser cuidadoso de modo a não provocar ambigüidades. Narradores experientes valem-se
de várias estratégias discursivas para que não pairem dúvidas sobre a identidade dos
personagens a quem estão-se referindo usando os pronomes de terceira pessoa. Dizem, por
exemplo, “o primeiro”, “o segundo”, “este último”, “aquele”, etc. Narradores menos
experientes, como é o caso de crianças nas séries iniciais, ainda não dispõem dessas
estratégias. É o que acontece com Tatiana quando diz:
A2- Era João, Julião e Sebastião. E ai ele olhô na garrafa pensanu que era uma luneta e
ele falô: tô venu uma casa perdida na areia branca. Ai o otro falô que eles precisavu
encontrar ela.
Não sabemos a quem Tatiana se referiu quando empregou os pronomes “ele” e “outro”.
Para evitar ambigüidade, a aluna precisaria ter repetido cada nome. Poderia também referir
-se a eles usando recursos como: “o primeiro”, “o segundo”, “o último”. Mas esses recursos
não são comuns na língua oral. Aparecem mais na escrita porque nessa modalidade o leitor
pode recuperar as informações voltando no texto e verificando a ordem de aparecimento dos
nomes.
Com muita freqüência nossos alunos vão usar os pronomes de terceira pessoa em textos
orais e escritos como a Tatiana os usou e os professores terão de mostrar a eles que o
texto não está claro e que eles precisam explicar melhor a quem se referem. Para tornar
essas noções mais claras, estamos incluindo alguns fragmentos de poemas transcritos com
algumas adaptações. Podemos verificar em que casos os pronomes de terceira pessoa estão
suscitando uma ambigüidade e em que casos a compreensão não está prejudicada.
O pato ganhou sapato,
Foi logo tirar retrato.
Mas ele estava muito apertado
E ele ficou duro, sem graça
Diante do macaco retratista
O primeiro pronome “ele” poderia suscitar uma ambigüidade: ele refere-se a “sapato” ou a
“pato”? Os professores poderão mostrar a seus alunos que a interpretação mais razoável é
que o pronome se refira a “sapato” porque é lógico pensarmos em sapatos apertados. Já o
segundo “ele” também poderia criar uma ambigüidade, mas é mais lógico pensarmos que o pato,
e não o sapato, ficou duro e sem graça diante do retratista. Para evitar ambigüidade pode-
se substituir cada ocorrência de “ele” pelo nome. O texto então ficaria assim:
O pato ganhou sapato,
Foi logo tirar retrato.
Mas o sapato estava muito apertado
E o pato ficou duro, sem graça
Diante do macaco retratista .
(Adaptado de um poema de Mário Quintana )
Será oportuno perguntar aos alunos qual das duas versões preferem e por quê.
Há ainda algumas características interessantes na fala das crianças que estamos
comentando. André, o nosso aluno A3, quando estava imitando o capitão Perna de Pau, disse:
“Se você fazê barulho e saí daí eu vô te levá pro mar”. Observe as formas verbais “fazê” e
“saí”. Essas são formas do futuro do subjuntivo. Nos verbos regulares essas formas
coincidem com a forma do infinitivo, por exemplo: “se eu ganhar o campeonato, vou ganhar
uma medalha”. A primeira ocorrência de “ganhar” está conjugada no futuro do subjuntivo. A
segunda ocorrência é a forma do infinitivo do verbo. Nos verbos irregulares o futuro do
subjuntivo é diferente da forma do infinitivo .Por exemplo: “se você fizer questão, vou lhe
fazer uma visita”. As formas do subjuntivo são mais usadas na língua escrita. Na modalidade
oral há uma tendência a serem substituídas por outras formas verbais mais usuais.
Especialmente no caso do futuro do subjuntivo dos verbos irregulares tendemos a substituí-
las pela forma do infinitivo como fez a menina Tatiana. Mas temos de nos lembrar de que um
enunciado como “Se você fazê barulho” será mal recebido numa situação em que os
participantes esperam que seja usada a forma prevista na gramática normativa: “Se você
fizer barulho”. Ao chegar à escola para iniciar sua educação fundamental, as crianças ainda
não conhecem, nem usam espontaneamente, as formas do futuro do subjuntivo de verbos
irregulares. Essas formas são parte dos recursos comunicativos que vão acumular durante sua
escolarização. Alguns verbos irregulares mais comuns, como “fizer”, “trouxer”, “vier” etc.
devem merecer especial atenção em sala de aula. Já as formas do futuro do subjuntivo dos
verbos regulares não precisarão dessa atenção porque essas as crianças já sabem empregar
correntemente. Não é preciso tampouco ensinar às crianças o nome dos tempos e modos
verbais, nem fazê-las conjugar verbos irregulares e regulares. Basta criar oportunidades
para que as crianças usem as formas do futuro do subjuntivo naturalmente.
Vejamos alguns exemplos dessa prática:
1) Os professores poderão elaborar com as crianças um convite para uma festa de aniversário
parecido com este pedindo-lhes que preencham a lacuna.
“No dia 12 deste mês será o meu aniversário. Vou fazer uma festa e estou convidando você.
Se você ------- a minha festa vou ficar muito feliz”.
É de se esperar que elas sugiram a forma “vier”. Se aparecer a forma “vir” do infinitivo,
Os professores devem mostre a elas quando usar “vir” e quando usar “vier” .
2) Poderão também elaborar junto com os alunos anotações para a agenda, como esta, onde
também a lacuna deverá ser preenchida pelos alunos.
“Na segunda-feira que vem vamos encapar nossos livros. Por isso cada aluno deve trazer
papel e fita adesiva. Quem ------- poderá encapar também com plástico”.
É provável que as crianças espontaneamente sugiram a forma “quiser”.
3) Vejamos mais um exemplo. Os professores vão elaborar com os alunos um lembrete
semelhante a este para ser levado aos pais. Novamente os alunos vão preencher a lacuna.
“Queridos pais, amanhã vamos comemorar o dia das crianças. Todos os alunos devem trazer um
pratinho de doce ou salgados. Quem não --------- os doces ou salgados, pode trazer uma
garrafa de refrigerante”.
Ao fazer esse exercício os professores vão incentivar as crianças a fornecer a
forma verbal “trouxer” para preencher a lacuna. Elas também poderão sugerir formas
equivalentes, como por exemplo: “puder trazer”, “quiser trazer” etc.
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