O Projeto Leitura, tem como objetivo vencer um dos maiores desafios encontrados pelos professores e amantes da literatura: Criar o hábito da leitura.
Projeto LEF Confira artigos, trabalhos, Vídeos, Fotos, projetos na seção do Letramento no Ensino Fundamental.
DE NOVO A FAZENDA ANGELIM: a esquerda revolucionária com cara de bunda
No final dos anos 1960, membros de organizações clandestinas que combatiam a ditadura e alguns simpatizantes (não membros, alguns dos quais nem sabiam das organizações mas eram militantes de esquerda) realizaram num final de semana um encontro para estudos e debates e algumas cositas más. O local escolhido foi a Fazenda Angelim, lugar onde teria sido preso – na verdade se entregou – Juarez Távora e onde eu morava. Os objetivos para todos eram ler e discutir textos marxistas e experimentar a vida dura e difícil da zona rural. Após o segundo dia somente alguns membros do núcleo duro de uma das organizações permaneceriam no local para realizarem treinamento de sobrevivência na selva, num pedaço de floresta virgem que ainda havia no lugar, e exercícios de tiro. Os demais sabiam que ficaríamos para caçar e pescar.
Eu e alguns amigos éramos contra a participação de simpatizantes neste tipo de atividades, mesmo que apenas nas atividades de estudos, debates e experiências de vida no campo porque não os achávamos amadurecidos para tal. Para provar nossa tese, resolvemos aprontar.
O local de das atividades era numa antiga casa do vaqueiro da fazenda, a uns 50 metros da casa grande, numa sala grande entre selas, cangalhas, arreios e todo tipo de apetrechos para montarias. A dormida era no chão mesmo, forrando a cabeça com o que pudéssemos encontrar. A sala era de chão batido, com apenas uma porta de saída, de madeira pesada, sem tranca, um pouco inclinada de modo a se manter sempre fechada. As dobradiças enferrujadas faziam um barulho horripilante igual a filmes de terror. No final do primeiro dia, enquanto tentávamos nos agasalhar para dormir inventei algumas histórias de assombração que circulariam na região, especialmente sobre com os “revoltosos” que lá morreram quando da estada da Coluna Prestes no local.
Quando todos dormiram, amarrei uma ponta de um relho (corda de couro cru) na porta e a outra no meu pé a uns 6 metros de distância. Eu, “dormindo” como um anjinho, puxei o relho lentamente com o pé e a porta abriu com aquele barulho e rangido terrível, soltei o relho de repente e a porta fechou com o mesmo barulho, terminou com uma batida forte no umbral. Quando alguém conseguiu acender uma lamparina, pude ver um amontoado de gente no canto da sala oposto à porta barulhenta. Algumas meninas tremiam que dava dó. O Marcos Igreja acordou sobressaltado mas logo desconfiou do que poderia ter acontecido. Para fugir da balbúrdia, ele pegou um lençol que usava, saiu da casa e foi dormir tranquilamente na boleia de um caminhão velho que estava estacionado no pátio da fazenda. Repeti a operação mais duas vezes. Alguns saíram correndo e foram para a frente da casa grande, os demais acenderam a lamparina e ficaram vigiando a porta o resto da noite (eu já havia desamarrado o relho) até o dia amanhecer. Muitos ficaram impressionados com meu sono pesado e o do Marcos Igreja parecendo um anjinho no caminhão. Pela manhã indagávamos por que estavam todos com aquelas caras de bunda. Ouvimos belas histórias mas também fomos alvo da desconfiança de alguns. O Marcos, indignado, esbravejou: “como diabos é que vocês querem ser guerrilheiros e ficam se cagando com medo de alma, seus comunistas de bosta”. Foi aí que ele atraiu para si a suspeita de muitos. Eu? Bom, nessa hora eu já estava num delo banho numa lagoa ao lado.
P.S. Uma grande preocupação minha era que meu pai descobrisse os objetivos daquela reunião. Eu havia dito que era uma reunião de escoteiros do grupo que costumava acampar ali. Descobri, boquiaberto, quase 50 anos depois, que meu pai não só sabia de tudo como contribuía mensalmente com dinheiro para uma das organizações que participavam do evento... e não era a minha.