Quem são esses brasileiros analfabetos residentes no DF?
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A sina das meninas noivas
Eriane casou-se aos 12 anos. Márcia, com um filho no colo, aos 13. Ana Paula, aos 14. O Brasil é o país com o quarto maior número de “casamentos infantis”
Por João Batista Jr.
access_time11 jan 2019, 07h00
Veja edição 2617 janeiro de 2019
Para dar um fim ao martírio de dividir o mesmo teto com seu pai, cuja rotina incluía bater nos filhos e na mulher depois da lida na roça, Eriane Costa Ribeiro decidiu deixar o inferno familiar aos 12 anos. Acreditava ter algum futuro ao juntar-se com um homem de 38 anos que a assediava no bairro do Rio dos Cachorros, zona rural de São Luís, no Maranhão. A pequena Eriane estava apenas trocando de algoz. Na nova moradia, era espancada pelo companheiro todos os dias, além de cozinhar e limpar a casa. Com ele, teve uma filha. Cansada das agressões, fugiu de casa — sem levar a criança — para se abrigar na residência de um vizinho, que se tornou seu novo companheiro: Raimundo Nonato, de 48 anos. Hoje, aos 17, a adolescente espera o segundo filho e aparenta ter mais de 30 anos. Eriane deixou a escola na meninice e é economicamente dependente de Raimundo Nonato Ela não sabe a tabuada de cor, mas dá conta de carpir um quintal de 300 metros quadrados e limpar a fossa usada como banheiro. Cozinha, limpa, engoma as camisetas do cônjuge, a quem chama de “senhor”.
Eriane é parte da fotografia triste do Brasil que continua afundado na miséria e no abismo da desigualdade social — e o Maranhão é o epicentro desse drama, com seu alto nível de pobreza e um dos mais elevados índices de “casamentos infantis”, expressão usada para designar casais em que um dos integrantes, ou ambos, não atingiu a maioridade.
O Brasil ocupa a quarta posição entre os países com maior número de casamentos infantis. Ao todo, 3 milhões de brasileiros vivem nessa condição — número inferior apenas ao da Índia (15,5 milhões), de Bangladesh (4,4 milhões) e da Nigéria (3,5 milhões). Em proporção da população, o Brasil fica à frente da Índia. Aqui, a incidência é de 1,4% da população. Na Índia, é de 1,2%. Nas franjas mais jovens, entre 10 e 14 anos, existem hoje 22 849 meninos em “situação de matrimônio”, como dizem os estudiosos do assunto. No caso das meninas, o número salta para 65 709.
Por definição, casamento é a união consensual entre duas pessoas donas de maturidade emocional e física com o desejo mútuo de construir uma família. A teoria parece um conto de fadas diante da realidade das meninas-noivas. As causas estão na gravidez precoce, na baixa escolaridade, na ausência de trabalho, na falta de perspectiva a longo prazo e na fuga de uma família desestruturada. Muitas vezes, todos esses fatores atravessam, juntos e incontornáveis, o destino da mesma garota. As sequelas vão além da perniciosa manutenção do círculo da pobreza. Segundo estudo da Harvard Medical School, as meninas-noivas têm sete vezes mais riscos de morrer no parto por não terem corpo de adultas; seus bebês têm probabilidade 60% maior de morrer do que a média. As mães precoces também exibem alto índice de depressão, ansiedade e agressividade. “A menina se vê presa em uma situação da qual não pode sair, por depender do marido para ter um teto e comer. Isso gera revolta. Muitas ficam agressivas e descontam a raiva nos filhos, com falta de paciência ou com violência física”, diz Stephany Mello, psicóloga e assistente social da prefeitura de Codó, uma das cidades mais pobres do Maranhão, onde há dezenas de meninas com menos de 18 anos casadas.
No passado, o casamento de homens já na maturidade com meninas mal saídas da infância era uma praxe que contava com o respaldo da Igreja Católica. “O padre orientava o marido a consumar o casamento depois de a menina ter a primeira menstruação”, diz a historiadora Mary Del Priore. A prática acontecia em todas as classes sociais. As monarquias se uniam para manter a nobreza, o poder e a fortuna. A infanta Carlota Joaquina, por exemplo, casou-se aos 10 anos com o futuro rei dom João VI, então com 18 anos. Era assim.
Ao longo do tempo, o próprio conceito de infância mudou com o aumento da expectativa de vida — um brasileiro vivia apenas 33 anos no início do século XX. Até a década de 50, ainda se considerava que a vida adulta da menina começava no dia seguinte ao início do ciclo menstrual. A migração da população do campo para a cidade, o surgimento da pílula anticoncepcional e os avanços nos direitos das mulheres mudaram o panorama. Somadas todas as mudanças na sociedade e a despeito dos avanços, é chocante o alto índice de casamentos infantis no Brasil. “Essa prática nociva tem como raiz a desigualdade de gênero”, diz a advogada Paula Tavares, especialista no assunto do Banco Mundial.