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Há 200 anos, ideias de Darwin causam temor
Na semana em que se comemora o bicentenário de nascimento de Darwin e, por coincidência, no ano do sesquicentenário da publicação de seu livro mais célebre, A Origem das Espécies, como explicar a persistente má vontade para com suas teorias em países que abrigam as melhores universidades e costumam ganhar a maiorias dos prêmios Nobel nas categorias científicas?
Charles Darwin é um paradoxo moderno. Não do ponto de vista da ciência, área em que seu trabalho é plenamente aceito e celebrado como ponto de partida para um grau de conhecimento sem precedentes sobre os seres vivos. Sem a teoria da evolução, a moderna biologia, incluindo a medicina e a biotecnologia, simplesmente não faria sentido. O enigma reside na relutância, quase um mal estar, que suas ideias causam entre um vasto contingente de pessoas, algumas delas fervorosamente religiosas, outras nem tanto.
Veja o que ocorre nos Estados Unidos. O país dispõe das melhores universidades do mundo, detém metade dos cientistas premiados com o Nobel e registram mais patentes do que todos os seus concorrentes diretos somados. Ainda assim, só um em cada dois americanos acredita que o homem possa ser produto de milhões de anos de evolução.
Outros pilares da ciência moderna, como a lei da relatividade, de Albert Einstein, não suscitam tanta desconfiança e hostilidade. Raros são aqueles que se sentem incomodados diante da impossibilidade de viajar mais rápido que a luz ou saem à rua em protesto contra a afirmação de que a gravidade deforma o espaço-tempo. Evidentemente, o núcleo incandescente da irritação causada por Darwin tem conotação religiosa.
A teoria da evolução de Darwin usa o termo em sua conotação científica. Neste caso, a teoria é uma síntese de um vasto campo de conhecimentos formado por hipóteses que foram testadas e comprovadas por leis e fatos científicos. Ou seja, uma linha de raciocínio comprovada por evidências e experimentos. Por isso, quando é ensinado numa aula de religião, o Gênesis está em local apropriado. Colocado em qualquer outro contexto, só serve para confundir os estudantes sobre a natureza da ciência.
Hoje, os biólogos se dedicam a responder questões ainda em aberto no evolucionismo, como quais são exatamente as mudanças genéticas que provocam as adaptações produzidas pela seleção natural. É espantoso que, enquanto continuam a desbravar territórios na ciência, as ideias de Darwin ainda despertem tanto temor
Salvador, 7 de fevereiro de 2009
Aniversários, Charles Darwin e Mata Atlântica (Não necessariamente nessa ordem)
Descobri ontem, lendo excelente matéria na revista Época desta semana, de autoria de Peter Moon _“Darwin estava errado?”, a propósito do bicentenário de nascimento do maior cientista do século XIX, que nasci no mesmo dia do mês que ele. Já havia descoberto, quando passei meu aniversário de vinte anos nos Estados Unidos, que também sou malunga com Abraão Lincoln, mas confesso que partilhar meu aniversário com o britânico Charles Darwin me emociona mais que partilhá-lo com o presidente americano que venceu a Guerra da Secessão e aboliu a escravidão em seu país, ainda que eu o respeite muito.
Aprendi também, na mesma reportagem especial, que a primeira parada do brigue de três mastros e seis canhões da Marinha Real, que trazia a bordo o jovem naturalista, Charles Darwin, foi em Salvador, em 29 de fevereiro de 1832. No Recôncavo Baiano, Darwin ficou mesmerizado com a visão da Mata Atlântica, sua primeira experiência com a profusão de vida animal e vegetal em uma floresta nos trópicos.
A viagem no Beagle durou seis anos (1831-1836). Da Bahia, a expedição rumou para o sul, margeando a costa, parando em Montevidéu, Buenos Aires e Ilhas Malvinas. Contornou o extremo sul do continente, pelo Estreito do Beagle e demandou o norte, seguindo pelo litoral do Chile até Galápagos, no Equador. A cada parada, Darwin observava a fauna e fazia as anotações que o levaram a desenhar a árvore da vida, ao chegar à Inglaterra. Nessa árvore cada ramo é uma espécie, que conduz a novas espécies, no processo de adaptação pela sobrevivência.
Hoje em dia, com as pesquisas do DNA, os cientistas sabem que a árvore é de fato uma teia, mas as ideias revolucionárias de Darwin continuam válidas. Existem evidências contemporâneas de que as mutações se dão por meio de infecções virais. Quando são adaptativas essas infecções, que podem inocular espécies distintas, invadem o DNA dos hospedeiros e promovem mudanças.
Com as revisões que a pesquisa moderna permitiu, o darwinismo continua mais válido que nunca e tem influenciado muitas ciências, inclusive a Linguística. Os sociolinguistas sabem que toda língua está em permanente mutação. Antes de uma mudança se consolidar, aquele traço passa por um processo de variação. O que os sociolinguistas ainda não sabem, com certeza, é se toda mudança linguística é funcional, isto é, visa a tornar a comunicação mais ágil. Por exemplo, quando falamos, “Encontramos eles lá no Pelô” transmitimos a mensagem de forma mais clara que no enunciado”Encontramo-los no Pelô”. Mas há mudanças que não tendem à economia. Tendemos a dizer “Eu sou mais velha do que ela”, em vez de “Sou mais velha do que ela.” Esse é um assunto que ainda vai merecer muita reflexão.
Na minha família, éramos apreciadores de Charles Darwin. Para meu pai, agnóstico, a sua maneira, a aceitação da teoria não trazia nenhum conflito. Minha mãe, devota de muitos santos e das almas do Purgatório, de mineiríssima tradição religiosa, era muito letrada, e por isso sabia que o marido tinha razão ao ensinar às filhas o princípio da evolução das espécies. Fui criada aprendendo a respeitar as ciências. Durante meus anos de colégio interno, me calava sobre minha crença no darwinismo. Não queria escandalizar as freirinhas, tão ingênuas em relação aos fatos da vida. Ademais, essa crença não afetava meu fervor religioso, que cultivo até hoje, e tem seu espaço numa dimensão mais afetiva que racional.
Quanto à Mata Atlântica, que encantou Darwin, ainda se podem encontrar alguns resquícios na região de Salvador. Mas no sul da Bahia, em Ihéus e Itacaré, existem áreas extensas cobertas pela floresta. É lá que vivem os micos leões dourados que, certamente, passaram por muitas adaptações para sobreviver à fúria devastadora do bicho homem. Aprenderam recentemente a atravessar a BR 101 por cima das redes que foram postas de lado a lado da estrada, a uma altura de cerca de dez metros, para ajudar na preservação desses nossos parentes primatas de cara cor de ouro.
Salvador, 8 de fevereiro de 2009
A minissérie “Maysa, Quando fala o coração “de Manoel Carlos tem sido para muitos um suave mergulho no passado. A música de Maysa é o próprio som da década de sessenta. No início dos anos 1960 eu era uma adolescente recém-chegada ao Rio de Janeiro e Maysa já era uma unanimidade nacional.
Muitas das cenas do seriado me evocam mais lembranças vicárias que propriamente vividas. O Rio de Janeiro de Maysa_ primeiro Monjardim, depois Matarazzo e em seguida novamente Monjardim _ é o Rio berço da bossa nova, das boates de Copacabana, dos passeios à Barra da Tijuca, que para mim eram lugares oníricos, pois eu era confinada ao Flamengo, onde morava e frequentava o Colégio Bennett, a Aliança Francesa e o IBEU.
Cruzar o túnel era uma aventura duplamente inacessível, pela rigidez com que meu pai criava as filhas e pela minha insegurança naquele espaço ecológico desconhecido. Eu era de fato uma caipirinha, vestida como tal, saída há pouco do internato no interior de Minas Gerais. Até mesmo atravessar uma rua de tráfego intenso representava uma aventura. Para ter coragem de fixar o rosto dos rapazes que falavam comigo eu tinha de respirar fundo. Mas nessa área meu aprendizado foi rápido.
Mesmo longe dos points onde estava nascendo um Brasil urbano e cosmopolita, ao som das batidas de João Gilberto e da genialidade musical de Tom Jobim, eu tinha uma intensa vida cultural ao meu modo, lendo tudo o que me caía às mãos. Meu passeio favorito era o Jardim Botânico, um refúgio como os bosques dos contos de fada, aonde aprendi a ir de lotação. Em segundo lugar vinham o Museu de Belas Artes e a Biblioteca Nacional, na Cinelândia. Também ao Petit Trianon, prédio antigo da Academia Brasileira de Letras, fui algumas vezes para consultar livros na biblioteca. Numa ocasião, conversei com Jorge Amado; em outra, Austregésilo de Athayde me ajudou a encontrar livros nas estantes.
Cinema e teatro eram liberados, desde que acompanhada de minha mãe ou outro adulto. Lembro-me de ter visto, por essa época, no Cine Payssandu, Hiroshima mon amour, cuja trama eu pouco entendi. Também vi “O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro” de Glauber, e fiquei tonta em mais de uma sequência, em que a câmera se move freneticamente, focalizando uma trilha ascendente.
Até à temporada de ópera no Teatro Municipal eu assistia, pois eu era designada na família para acompanhar a minha avó, que vinha de Minas especialmente para comparecer àqueles espetáculos. Encantavam-me mais as escadarias do hall do teatro que propriamente as óperas.
No rádio, e na televisão, que era uma novidade, acompanhava os cantores que faziam sucesso, e Maysa era uma rainha. Um parente meu conhecia o Jayme Monjardim, o que me dava um grande orgulho e certa sensação de pertencimento a um mundo do qual eu só ouvia falar, embora eu nunca tenha visto o jovem Monjardim mesmo de longe.
Assim eu ia vivendo, à margem do verdadeiro Rio, que começava em Copacabana e se estendia até o fim do Leblon. Mas no meu universo interior, alimentado pelos cronistas como Stanislaw Ponte Preta ou Rubem Braga, pela poesia de Cecília Meireles, pelas músicas da Rádio Tamoyo ou Jornal do Brasil, pelos musicais como My Fair Lady, pelos filmes românticos juvenis como Spendor in the Grass, ou pelo “Fantasminha Pluft” de Maria Clara Machado, eu ia construindo o meu próprio Rio de Janeiro. Fernando Sabino uma vez fez uma palestra em meu colégio e todas as alunas se apaixonaram por ele.
Aos poucos minhas experiências iam-se expandindo. Na primeira vez em que fui ao parque aquático do Clube Fluminense em Laranjeiras tive a sensação de que eu havia sido transportada num passe de mágica para o interior de um filme de Hollywood. Sem falar na apoteose que foi brincar o carnaval numa matinê no Copacabana Palace.
São essas lembranças que a minissérie Maysa evoca em meu coração, embaladas pelo barquinho que eu via deslizando ao longe e pelas luzes de gás néon que me conduziam a outras galáxias.
Brasília, 2009
A flanelinha
_ É cuma eu tava dizendo pra senhora. Esta filha minha parece que não tem sorte.
Converso com a mulher que olha os carros estacionados no Comércio Local. Sempre que vou àquela entrequadra, ela corre pra me arrumar uma vaga e depois fica olhando o carro para mim. Na saída, se ela não estiver muito ocupada, correndo de um lado para outro , abanando a flanelinha batemos um papo. É uma mulher de no máximo quarenta anos. De longe parece ter uns sessenta. É baixinha e está muito gorda, mas seu rosto e sua agilidade fazem jus à sua pouca idade. Pergunto-lhe pelo marido. É gari do serviço de limpeza urbana e não faz muito tempo sofreu um acidente. Uma caçamba de lixo caiu sobre sua perna. Ele teve de amputá-la na altura do joelho. Agora está encostado no INSS. Não vai poder trabalhar mais.
O marido ia bem, quer dizer, estava se recuperando, ela me disse. A filha é que estava com o nenezinho no hospital.
_ Essa menina, nada dá certo pra ela. Eu escolhi pra ela o nome de Luzia, que é uma santa poderosa, mas num adiantou. Acho que a santa anda muito ocupada com tanta gente precisano, e num dá conta de olhá por todos _ ela fala e ri.
_ Mas o que aconteceu com a Luzia? Ela tá nesse hospital? _ perguntei dirigindo meu olhar para o prédio alto do hospital na rua perpendicular à entrequadra.
_ Tá cum filhinho lá, de treis meis. Ele tá com pneumonia.
_ É a secura. Com este tempo seco, as criança adoece muito. Mas ele vai ficar bem. Logo ele vai ter alta.
_ Que Deus ajude. A minha menina chora sem pará.
Olhou em volta, nenhum carro pra sair nem pra entrar. Descansou o braço na janela do carro, preparando-se pra prosear um pouco.
_ Mas é cuma eu disse pra senhora. A vida dela tem sido custosa. Ela tava trabalhano num supermercado, carteira assinada e tudo. Era caixa. Tinha até plano de saúde. Aí conheceu um menino que foi trabalhá lá, mas num era fichado não. Fazia bico. Levava as compra do pessoal pros carro. Menino novo, mais novo que ela quais dois ano. Pegaro a namorá. Eu falei pra ela. “Esse menino é novo, num tem emprego, num dá futuro. Mais ó, que que adiantô. Moça quando qué descabeceá, ninguém segura.
_ É, ninguém segura.
_ Eis começô a namorá e logo ela veio pra mim: “Mãe, eu mais o Geninho vamu morá junto. A gente se gosta muito.” Mas ela já tava era de barriga, mais num me falô nada. Falei pra ela: “Espera pelo menos seu pai melhorá da perna.” Mais eis num esperô não. Alugaro um barraco lá perto de nóis. Eu tava veno que o Geninho andava arisco, quase num parava em casa, com desculpa de ir estudá, de visitá a mãe dele na Samambaia. E ela lá, suzinha. No dia que foi pr’ela ganhá nenê, ela tava suzinha. Quando as dor apertô, ela mandô a menininha da vizinha me chamá. Eu pedi ajuda pro homi da venda. Ele vende gás, tem uma camionete, o Seu Antônio. Pedi pra ele levá ela pro hospital. Foi esse hospital mesmo, esse aqui, o HRAN. Eu vim cum ela e ela sofreu muito. Num tinha dilatação. Chegô era umas deiz da manhã, só foro operá ela lá pelas oito da noite. E ela chorava e perguntava: “E o Geninho, mãe, será que dero recado pra ele? Se ele ficá sabenu, ele vem me vê, claro que vem”.
Na hora que o nenê nasceu, liguei pra minha vizinha, do orelhão. Mais ninguém tinha visto o Geninho. Ninguém sabia dele. Passô dois dia e ela voltô pra casa, mas eu num quis dexá ela lá no barraquinho dela suzinha. Levei ela e o nenezinho para ficá lá mais nóis. Lá é pequeno, mas a senhora sabe cumé. A gente num pode faltá numa hora dessa com um filho da gente, a gente tem de ajudá.
_ É, você tá certa. A gente tem de ajudá os filho.
_ Pois deusde esse dia que ela tá lá cum nóis. Ela e o menino, e nada do Geninho. Todo dia ela tem esperança dele voltá. Já viro ele lá na rua,
Parece que já tá com outra mulher. A minha filha ficô de licença, mas quando terminô a licença, o supermercado demitiu ela. Por enquanto ela ainda tem o dinheirinho da indenização. E ela tá danu de mamá pro menino. Num pode arrumá outro emprego porque eu fico aqui na rua e num tem quem tome conta da criança. Agora ele pegô pneumonia e deusde sexta-feira que ela tá aí cum ele. Coitada, chora o tempo todo. O nenê tá tomano soro com agulha na cabecinha. Ele nasceu cabeludo, mas rasparo a cabecinha dele em dois lugá, pra pegá a veinha dele. Pegou a veia dele na cabecinha.
_ Diga pra Luzia que o nenê dela vai ficar bom. Ele deve estar tomando antibiótico junto com o soro. Logo ele tá bom.
_ Deus ajude.
_ E como é o nome do menino?
_ Ainda num foi registrado, não senhora. Mas era pra chamá Ogenu, que nem o pai. Agora eu num sei se vai mudá o nome.
Procurei uns trocados na bolsa.
_ Tá na minha hora, Maria. Ainda tenho de dar aula hoje à noite. Fique com Deus, Vou rezar pra Luzia e o bebê.
_ A senhora pode sair de ré, num vem carro não. Ela rodeou o carro e me fez sinal para mover o carro de ré.
Fiquei bem umas três semanas sem passar pela entrequadra onde Maria trabalha. Ontem passei por lá. Ela veio célere na minha direção. Parecia mais alegre.
_ E aí, Maria? Como vai o netinho?
_ O Cauã? Ele tá bonzinho e já foi até registrado. O nome dele é Cauã.
_ Bonito nome, Maria.
Brasília, 24 de janeiro de 2009