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O preconceito contra o analfabeto


Por Maria Clara Di Pierro (USP) e Ana Maria Galvão (UFMG)*

 

Iniciamos o livro O preconceito contra o analfabeto narrando um episódio: em um momento de formação de alfabetizadores de jovens e adultos, foi solicitado que as pessoas explicitassem a primeira idéia que vem à mente quando ouvem a palavra analfabeto. Uma análise dos significados das expressões mencionadas permite discernir um primeiro grupo de respostas que caracterizam o sujeito pelos atributos que lhe faltam: o analfabeto é alguém que não sabe ler e escrever, é alguém que não é capaz, não é preparado, não é informado, não é humanizado, não tem conhecimentos. As expressões que se referem às características que o sujeito tem são menos freqüentes e carregadas de sentido negativo: ignorantes, dependentes, cegos, sofredores, coitados e alienados. Menções a expressões positivas e valorizadas como cidadão, sabedoria e curioso configuram exceções a esse quadro mais geral. Um outro grupo de expressões citadas procura explicar os motivos que levam à existência de pessoas analfabetas na sociedade brasileira, vinculando o analfabetismo à exclusão social, à pobreza e à fome, à dominação de classe e à ausência de direitos. Um terceiro grupo de expressões relaciona o analfabetismo ao preconceito e à discriminação. Esse rápido exercício permite constatar que a palavra analfabeto é carregada de significados negativos, pré-julgamentos e estigmas que permeiam as relações das pessoas com os que se encontram nessa condição.

 

Na sociedade da informação e do conhecimento pode parecer natural a existência de preconceito contra aqueles que não sabem ler nem escrever. É difícil desvencilhar-se das armadilhas do preconceito quando ele se refere a uma condição social que não se deseja afirmar, como é o caso do analfabetismo nos contextos culturais permeados pela escrita. Nesse território pleno de ambigüidades, um passo necessário para produzir contra-discursos que contribuam para romper estereótipos e estigmas é a busca de uma compreensão mais aprofundada do processo de construção e legitimação dos preconceitos.

 

Disseminado diariamente na mídia e manifesto nas mais diversas situações de interação, o preconceito é introjetado por aquele que não sabe ler nem escrever: vê-se como cego, como ignorante, como aquele a quem falta algo para corresponder às expectativas sociais. Por outro lado, na análise dos seus discursos percebe-se, também, em uma aparente contradição, expressões de resistência à desvalorização sociocultural e a força das táticas utilizadas cotidianamente para driblar as dificuldades advindas de sua inserção em uma sociedade grafocêntrica.

 

A construção social dessa visão negativa das pessoas analfabetas é resultante de um processo histórico, e sua análise nos ajuda a mostrar que o letramento não é um bem universal, intrinsecamente positivo, na medida em que está sempre referido a contextos específicos, que atribuem a ele um maior ou menor valor.

 

No Brasil, durante o Período Colonial e mesmo durante o Império, enquanto a sociedade predominantemente agrária estava imersa na oralidade, a condição de analfabeto era compartilhada por escravos e senhores, elites e grupos populares, e não era vista como um atributo negativo. Quando ao final do século XIX um mínimo de escolarização passou a distinguir as elites nacionais e as práticas sociais mediadas pela leitura e pela escrita começaram a se disseminar no meio urbano, o analfabetismo passou a ser associado aos grupos situados na base da pirâmide social e a adquirir, nos discursos das classes dominantes, conotações negativas. Continuamente marginalizadas das oportunidades de acesso à educação, as camadas populares viram, ao longo do século XX, o analfabetismo ser convertido, no discurso das elites, em causa do atraso econômico e das mazelas sociais do país, de que é, na verdade, apenas uma das conseqüências. Só recentemente, em 1988, os analfabetos conquistaram os direitos à educação elementar pública e gratuita e voltaram a poder votar. Fruto desse processo, o país apresenta ainda hoje grandes números de analfabetos absolutos e funcionais, que a sociedade desqualifica, mas pouco age para, resgatando a sua auto-estima, garantir-lhes o pleno exercício da cidadania. A distribuição sócio-espacial do analfabetismo alcança de modo mais agudo os pobres dos grupos de idade mais elevada, os negros e as pessoas que vivem nas zonas rurais e no Nordeste.

 

O preconceito em relação ao analfabeto não é só um fenômeno brasileiro, e sua vigência tem sido legitimada pela difusão de teorias científicas que estabelecem nexos mecânicos entre alfabetização e desenvolvimento social e cognitivo, dicotomizam as relações entre oralidade e escrita e referendam hierarquias entre letrados e iletrados. Outras teorias, porém, interpretam o analfabetismo como fenômeno histórico-cultural, e questionam essas dicotomias, relações mecânicas e hierarquias, reconhecendo nos analfabetos produtores de cultura e verificando a complexidade do modo de pensamento oral. O analfabeto tem, assim, modos de pensamento diferentes, e não mais “primitivos”, daqueles que estão imersos na cultura escrita.

 

Embora não tenha um valor em si mesmo, o domínio da leitura e da escrita constitui, na sociedade brasileira contemporânea, principalmente nos núcleos urbanos, um instrumento de cidadania e, por esse motivo, tem sido pauta de políticas públicas, dos movimentos sociais e de projetos educacionais. Como, então, elaborar práticas educativas que contribuam para aproximar, sem reforçar estigmas, o analfabeto e o mundo do escrito?

 

Embora tenham modos de organização distintos, culturas orais e culturas escritas não podem ser vistas como pólos dicotômicos. Indivíduos não alfabetizados que têm uma atuação em instâncias que exigem uma organização mais elaborada da oralidade, como artistas populares, lideranças políticas ou religiosas, se inserem com mais facilidade na cultura escrita. Na mesma direção, práticas educativas que têm como um de seus modos de organização a leitura em voz alta de textos escritos contribuem para uma aproximação menos tensa dos indivíduos não alfabetizados nas lógicas da escrita. Assim, situações em que o oral e o escrito estão presentes sem hierarquizações evidentes contribuem para uma aproximação entre as duas formas de expressão, o que deve ser considerado nas estratégias e metodologias de alfabetização.

 

O jovem ou adulto que não sabe ler nem escrever não é incapaz, não é “puro” ou ingênuo, nem é uma criança crescida. O analfabeto é produtor cotidiano de riqueza material e cultural e não ignorante de saber. Nesse sentido, embora pareça chavão, é preciso conhecer mais profundamente o que sabem, o que pensam e como aprendem os jovens e adultos em processo de alfabetização. Nas sociedades urbanas, mesmo o indivíduo que não sabe ler, tem um nível de inserção na cultura escrita – e elabora hipóteses a respeito desse sistema – que deve ser considerado. Também por isso o educador não deve se considerar alguém com a missão de tirá-lo das “trevas” ou da “escravidão”. O analfabetismo não é uma doença, não é uma chaga, não pode ser responsabilizado pelo atraso ou pelo desenvolvimento de uma sociedade. Não se deve, desse modo, como fazem muitos programas e educadores, realizar falsas promessas aos educandos, atribuindo à alfabetização – pura e simplesmente – a “luz no fim do túnel”, a melhoria automática de suas condições de vida.

 

A crítica à concepção que atribui à alfabetização poderes de transformação pessoal e social que de fato não possui não deve, entretanto, ser interpretada como tolerância perante políticas educacionais omissas que violam os direitos que jovens e adultos têm de fruir plenamente os bens culturais de nossa sociedade, dentre os quais a alfabetização, uma das muitas portas que abrem horizontes de aprendizagem ao longo da vida.

 

 

* Maria Clara Di Pierro (USP) e Ana Maria Galvão (UFMG) são autoras de Preconceito contra o analfabeto, publicado pela editora Cortez em 2007, na Coleção Preconceitos, de que este artigo é um breve excerto.


 

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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