Alfabetização e vida social: uma perspectiva sociolingüística
                                                         Catarina de Sena Sirqueira M. da Costa (UFPI)

Resumo

A partir de uma abordagem sociolingüística que trata  da fala  como parte integrante da cultura,  discute-se  a alfabetização de jovens e adultos  como um processo sociocultural   que envolve atividades de linguagem e por isso se volta para os participantes desse processo e para sua vivência comunicativa de usuários de língua ou de fala, em um dado contexto sociocultural.

Palavras chave:  Linguagem, cultura e alfabetização.


Introdução

O objetivo geral deste trabalho  é discutir a alfabetização de jovens e adultos como   um processo sociocultural que envolve atividades de linguagem e, como tal, deve voltar-se  para os participantes desse processo e para sua vivência comunicativa de usuários de língua ou de fala, em um dado contexto sociocultural. Consideramos aqui a alfabetização de jovens e adultos como um processo sociocultural distinto da alfabetização de crianças, na perspectiva escolar formal. A distinção básica é que a alfabetização de crianças ocorre em um processo de escolarização, concomitante com o processo global de socialização e inclusão da criança na cultura geral da sociedade de que faz parte, ao passo que a alfabetização de jovens e adultos diz respeito a sujeitos já excluídos da escolarização,  mas de forma espontânea já socializados e já incluídos na cultura geral, a despeito de muitas vezes se considerar   inferiorizada essa forma de socialização e de inclusão.
Discutir a alfabetização de jovens e adultos enquanto um processo sociocultural implica a consideração dos aspectos lingüísticos e sociais intervenientes nesse processo. Uma das abordagens que consideramos eficazes no tratamento dessa questão é a da Sociolingüística, que trata das relações entre língua e sociedade, e dentre suas diversas abordagens, invocamos aqui especialmente a  Etnografia  da Comunicação, conforme Hymes e Gumperz(Hymes  e Gumperz, 1972 ) e, ainda, a  Sociolingüística Interacionista  proposta por Gumperz ( Gumperz, 1984 ),  segundo as quais a fala é parte integrante da cultura. Nestas abordagens, é fundamental  o conhecimento das práticas comunicativas dos grupos sociais, para a compreensão da função da fala na vida social e, por conseguinte, na alfabetização, uma vez que aqui também se considera alfabetização um processo sociocultural permeado por relações comunicativas. E, para a própria alfabetização essa compreensão é básica,  no sentido  de  orientar as práticas ou vivências dos participantes desse processo. 
Este trabalho está  dividido em duas partes:
1. Na primeira parte, discutiremos a função da fala ou linguagem na vida social e, particularmente, na alfabetização de jovens e adultos;
2. Na segunda parte, trataremos da fundamentação sociolingüística da alfabetização de jovens e adultos enquanto um processo sociocultural.

 

 

 


1. A função da fala ou linguagem na vida social e, particularmente, na alfabetização de jovens e adultos
 

O termo “linguagem” será utilizado aqui como um pressuposto do que significa fala, mais especificamente fala humana, isto é, na concepção de que, como afirma Hjelmslev,  é “...inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos (Hjelmslev, 1975, p.1).
Atualmente  parece não restar dúvida de que  a linguagem mais presente na vida do homem é a oral. Isto porque a fala oral é, pelo menos por enquanto, a manifestação mais natural da linguagem. É, por exemplo, aquela que  todos os homens adquirem naturalmente. É, pois, a linguagem universal dos homens.
Como se sabe, as manifestações de linguagem  assumem formas variadas, cujo valor de cada uma  é uma atribuição do grupo que as desenvolve. Desse modo, o leque de manifestações de linguagem é muito amplo, abrangendo desde a fala oral, gestual, corporal, a escrita e outros sinais sensorialmente perceptíveis, da mesma forma que são variáveis as atribuições de valor a cada uma delas. Essas variadas formas de linguagem  não apenas comunicam mas, dependendo da cultura ou de situações especiais dentro de uma dada cultura, constituem também formas significativas de expressão cultural, de interação social e até de fortes mecanismos de resistência cultural, inclusive,  étnica, através do simples fato de apenas serem utilizadas. É preciso, pois, considerar esses diversos usos e sua  variabilidade no ambiente social em que ocorrem, para se poder  construir uma re(a)presentação de linguagem, condizente com a realidade re(a)presentada  por ela.
Todas essas formas de linguagem têm como uma de suas funções a comunicação, ainda que não seja esta ou nem sempre esta, a mais fundamental. Mas o que mais ressalta da observação da realidade das relações sociais concretas é esse caráter de comunicabilidade; comunicabilidade que tem como marca principal a significação da ação; “...significação concebida como uma propriedade das expressões (apreensíveis pela enumeração de características sintáticas e morfológicas) mas como um ato,  um ato intencional, motivado, resultante, de um lado, dos interlocutores e de outro, dos elementos convencionais utilizados na interlocução”, conforme Franchi (Franchi, 1992, p.12). Essa significação é resultante ainda da atualização da ação no seu  processo interacional, razão por que a significação de que se constitui a linguagem é de natureza cultural à medida que diz respeito aos interlocutores da comunicação enquanto sujeitos determinados social e historicamente. Essas ações concretas observáveis nos grupos humanos podem até ser consideradas educacionais ou pedagógicas  à medida que, por um processo de continuidade, reproduzem-se historicamente entre grupos e de  geração para geração ( Cf. Costa, 1996).
Ora, se as manifestações de linguagem são culturais, fica difícil fazer aferições valorativas intergrupais, visto que cada cultura basta-se a si mesma, assim como, do mesmo modo, uma língua, qualquer língua, sempre atende às necessidades dos seus falantes, portanto bastando-se a si mesma. Por isso é que se diz que a língua, e em acréscimo, qualquer forma de linguagem não possui em si valor algum, pois que o valor de uma língua, de uma linguagem somente pode ser atributo de  e  relacionada  aos seus usuários. Portanto, explicar a linguagem de uma sociedade ou de um grupo social implica antes investigar a produção de suas variadas formas em cada contexto em que é expressão, e meio de comunicação no processo de interação social. É, pois, preciso, nesse caso,  investigar os processos comunicativos .
Enquanto parte de processos socioculturais mais amplos, os processos comunicativos permeiam todos os demais processos, ora produzindo-os, ora apenas possibilitando-os, ora facilitando-os, ora impedindo-os, ora deles resultando, enfim, evidenciando o caráter imbricado das relações sociais e processos comunicativos, fazendo ressaltar a unidade indissociável existente entre eles. Os processos comunicativos são, portanto, processos sociais da mesma natureza das relações sociais, sejam  simples processos interacionais (trocas de mensagens), sejam complexas redes de relações econômicas (produção, circulação e consumo de bens e serviços) ou de alianças políticas (casamento, compadrio, organização em partidos políticos, luta pelo poder etc.).
Nesta perspectiva, só podemos conceber a alfabetização como um processo social de comunicação, de interação  que permeia a vivência de indivíduos e de  grupos de um dado contexto sociocultural,  através do estabelecimento eou de ampliação de suas  possibilidades comunicativas e interativas, por conseguinte, de  suas relações sociais.
E nesse sentido é muito oportuno interrogar-se sobre como  estamos  vendo a alfabetização. Então vejamos.
As concepções mais gerais do senso comum e, também, as mais difundidas sobre alfabetização relacionam ou vinculam o significado desse termo a processos formais de ensino, a situações de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, conforme desenvolvidos pela escola  e na escola. Etimologicamente,  alfabetização vem de alfabetar e significa ensinar o alfabeto. Num sentido dicionarizado, o termo alfabetização significa processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita (embora a escrita seja omitida nas definições contidas em alguns dicionários, por exemplo, no Novo Dicionário Aurélio). Essas concepções apontam, pois, para aspectos pedagógicos, relativos mais ao ensino do que à educação.
Em muitas circunstâncias,  a alfabetização de jovens e adultos é vista como uma questão educacional que tem no efeito de sua ausência, o analfabetismo, um problema social. Ela é vista como uma questão social,  toda vez que se tem constatado que a instrução básica da população não atende a certas necessidades do Estado. Uma dessas necessidades, de ordem política, é a promoção de integração de parcela significativamente ampla da população, incluídos aí os analfabetos, a uma imaginária  identidade nacional. Como qualquer identidade social ou étnica constitui processo de identificação, portanto, comunicativo, tal inclusão não ocorre se a comunicação ou interação não se instaura. E a comunicação não se instaura porque tal identidade era e ainda é traduzida em um conceito excessivamente abstrato de cidadania, quase sempre dissociado da vivência e dos interesses específicos dessa parcela da população, com respeito à cultura e a outros importantes componentes sociais.
Outra necessidade de ordem econômica,  diz respeito à formação e re-orientação de mão-de-obra, em função de exigências crescentes de competitividade ditadas pela economia mundial, para o que se torna imperioso reverter situações educacionais adversas à proporção  que a Educação tem sido colocada como o requisito indispensável e básico ao desenvolvimento sócio-econômico  desses países. E atualmente, o processo de globalização   da economia mundial tem imposto, como um dos parâmetros de desenvolvimento ou de predisposição para alcançá-lo, certos padrões educacionais que ostentam taxas próximas de zero ou insignificantes de analfabetismo. E no Brasil, onde, nessa ótica, o índice de analfabetismo ultrapassa os limites da tolerância desenvolvimentista  tem-se debatido com muita insistência  essa questão,   priorizando-se ações  que  visam, de forma imediata, mais o combate ao analfabetismo do que a promoção da alfabetização e da escolarização efetivas. A ótica dominante na alfabetização de jovens e adultos tem sido a de suprir deficiências que dificultam ou impedem a absorção de tecnologia, de especialização profissional e, consequentemente,  de inserção no mercado.
Nessa perspectiva têm sido definidas inúmeras campanhas, programas e projetos de alfabetização de jovens e adultos apoiados em políticas educacionais e propostas teórico-metodológicas de alfabetização. A maioria dessas propostas pedagógicas tem sido no sentido de desenvolver  habilidades fundadas em práticas, saberes, atitudes e valores definidos fora, acima e independentes das esferas  socioculturais dos sujeitos reais e concretos envolvidos no processo, sejam aqueles sujeitos que orientam e conduzem a tarefa de alfabetizar, professores-alfabetizadores - sejam aqueles que a ela se submetem enquanto supostos beneficiários - os jovens e adultos analfabetos.
Mesmo por trás dos esforços mais bem intencionados e das propostas mais preocupadas com fundamentação consistente, têm estado ausente maiores considerações acerca da natureza e do funcionamento de um dos aspectos centrais e fundamentais da alfabetização: a língua, a fala, ou melhor, a linguagem (e os processos comunicativos e interacionais), especialmente enquanto componente fundamental do conjunto dos fatos sociais. A despeito desses esforços e mesmo considerando-se seu caráter predominantemente instrumental de alfabetizar, muitos brasileiros que não tiveram a oportunidade de acesso à educação escolar, também não conseguiram penetrar no mundo da língua escrita, apesar de estarem circundados por ele, tendo assim cerceada a oportunidade de ampliação de suas relações sociais.
O que muitas vezes se tem deixado de considerar é que  a leitura, a escrita  constituem atividades de linguagem,  e como toda linguagem  são processos construtivos de representação desenvolvidos por sujeitos reais, concretos. Leitura e escrita são meios de representações que os sujeitos fazem de si e de suas realidades concretas e ideais, ao tempo em que são, elas próprias, também representações. São processos comunicativos e interativos que, por conseguinte, produzem, reproduzem e ampliam relações sociais.
Como processo de construção, a linguagem (a escrita ou a leitura) é capaz de recuperar significações que a despeito de suas manifestações mais evidentes, ou assim consideradas, remetem ou revelam aspectos  mais  incisivos de seus usuários, de sua vida social, e de sua  realidade, naquilo que lhe é mais significativo do ponto de vista social e cultural. Enquanto representação, leitura e escrita são uma re-apresentação ativa do que se apresenta seja aos sentidos, seja à imaginação, sejam objetos e ocorrências concretas, sejam objetos imaginários ou ocorrências simbólicas. A leitura e a escrita, portanto, representam essas realidades e possibilitam reflexões capazes de compreendê-la e avaliá-la nos seus aspectos mais significativos. A compreensão dessas realidades sempre  concretas  na sua origem,  promove   uma  re-elaboração num nível teórico com o objetivo de explicá-las ou justificá-las (Cf. Costa, 1996). E nesse sentido os  usuários reais ou potenciais da leitura e da escrita têm que se reconhecer nela, já que ela os representam. Trata-se, pois,  de um processo de conscientização de si e do mundo, que constituem os  grandes desafios da leitura e da escrita  e que têm na alfabetização o seu processo desencadeador.
É somente mediante o uso adequado da linguagem ou das linguagens, da fala ou das falas na alfabetização enquanto um processo sociocultural que os indivíduos serão capazes de tomar  parte das relações sociais mais amplas no nível do grupo social em que convivem ou para além dele, seja no sentido de possibilitar, facilitar, impedir ou construir  novas relações sociais.Ler e escrever são também processos de construção e organização da experiência dos sujeitos. Através da leitura e da escrita os alfabetizandos, sujeitos destas atividades, constróem toda sua realidade no sentido de dela tornar-se consciente, mas também constroem novos sentidos e significados produzindo novas experiências, através da recriação  da sua realidade,    em razão do que se consideram produtores dessa nova realidade, e o que os estimula a novas perspectivas socioculturais.
Desse modo fica sem sentido tratar leitura e escrita como processos ou atividades abstratas, descontextualizadas, fragmentadas,  impositivas, alheias a vida dos grupos,  fora de seus usos comunicativos e lingüísticos, de seu  contexto  sociocultural,  porque leitura e  escrita  são  atividades comunicativas sociais, interativas e reflexivas; logo, precisam resultar necessariamente de representação e construção de seus leitores e escritores e daqueles que mesmo não podendo ainda utilizá-las plenamente, fazem parte do grupo social do qual ela é própria e, portanto, também a representam.
 Leitura e escrita, assim concebida, sempre resultará de sua vivência por seus usuários, enquanto membro e representante de uma categoria ou organização social mais ampla. Dessa maneira,  uma pessoa será considerada alfabetizada quando for capaz de ler,  escrever  e  entender,  por exemplo, uma mensagem escrita por mais simples que seja, desde construída por ela, segundo sua vivência social.   E esse desempenho será possível, desde que tal processo represente algo para ela, porque  resulta de sua elaboração, enquanto conseqüência  de suas relações com o mundo e com sua experiência particular de mundo, inclusive da própria escrita, uma vez que  o entendimento que terá,  será fruto de sua construção pessoal, de sua autoria. Leitura autoral, escrita autoral em que alguém, no caso, o alfabetizado, possa responder pelas diferentes ocorrências ali representadas, pelos diferentes enunciados ali manifestados porque derivam de mecanismos de linguagem que dominam e que o identificam como autor de leituras e de escritas  construídas por quem leu ou  escreveu.
Disso conclui-se que alfabetização deve ser um processo social, comunicativo e interativo, da mesma natureza que os demais processos sociais, comunicativos e interacionais. Destes diverge não como distinto,  mas apenas no grau de complexidade de sua operacionalização  relativamente aos demais processos.
 

 

2. Fundamentação sociolingüística da alfabetização de jovens e adultos enquanto um processo social


Na perspectiva da Sociolingüística é a língua falada ou a fala, o fio condutor que permeia, permite, promove e reflete tanto a totalidade quanto a especificidade das relações sociais. A Sociolingüística de que se trata aqui se direciona para aspectos reais da vida do falante, considerando que a fala,  quaisquer que sejam suas atividades, níveis de descrição ou análise será sempre avaliada em função dos seus meios e fins sociais, segundo a organização social mais ampla  de que faz  parte e não simplesmente lingüística dos falantes (Cf. Hymes, 1974). Grupos sociais com organização social diferente podem possuir os mesmos meios lingüísticos com destinação social diferente, do mesmo modo que podem usar meios lingüísticos distintos para os mesmos fins sociais. O que importa é que meios lingüísticos definem-se pelo conhecimento de regras  subjacentes à conduta comunicativa, conforme as diversas situações de interação social. Cada situação de interação remete   à estrutura social dos participantes. Logo as situações de fala ou situações comunicativas  possuem um caráter mais social do que propriamente lingüístico.
E, sendo a fala  ou a comunicação da mesma natureza que os demais fatos sociais  e mantendo com eles uma unidade indissociável, resulta infrutífero e sem nexo considerá-la isoladamente. Nesse caso, é fundamental levar em conta toda a sua dinâmica enquanto atividade e as regras que governam seu uso, cujo conhecimento vai depender do comportamento do falante nas situações e eventos de fala, o que evidencia cada vez mais a importância da consideração das relações sociais. Isso porque cada participante numa situação social,  interativa, num evento de fala qualquer, manifesta sua escolha pessoal de convenções lingüísticas, culturais e interacionais, mas sempre em base a normas sociais partilhadas. Porque as escolhas dos que interagem têm um valor simbólico: tudo interage,  resultando em uma mensagem, verbal ou não, um sentido que depende de seus pressupostos socioculturais, de suas experiências, de seus valores.
Vários eventos de fala, ou seja, atividades governadas por regras ou normas sociais para o uso da fala, podem estar associadas à alfabetização;  seja uma conversa informal sobre leitura e escrita da qual participam analfabetos, seja uma conversa entre alfabetizandos sobre temas específicos desenvolvidos numa situação formal de ensino-aprendizagem da língua escrita, seja a leitura de um texto relacionado com temas de interesse do leitor, da comunidade ou daqueles para quem lê, seja a produção oral de um texto para ser escrito por alguém, seja a produção de textos narrativos, cartas, bilhetes, anúncios etc.. Cada  um desses eventos pode ser descrito em termos de quem participa do evento, para quem ou para que se orienta ou se destina o evento, que mensagens são veiculadas no evento, quais os propósitos ou funções do evento, qual a seqüência dos acontecimentos e as regras ou normas que orientam o uso dos meios lingüísticos. Ou seja, quem fala, escreve ou lê o quê, para quem ou para que se lê, quando e como etc.  .
A alfabetização para ser concebida e efetivada como uma situação sociocultural, suas atividades não podem restringir-se a monólogos, a receitas prontas, muitos  menos fantasiosas, portanto  não  podem ser de uma ordem diferente que não seja  relacionada com a ordem da comunidade à qual pertencem os seus participantes, sob pena de se constituir em uma situação alheia que nada tem a ver com os participantes, com sua realidade e, assim, sem a menor possibilidade de se constituir em um processo comunicativo e, por conseguinte,  um processo social real, concreto e efetivo.
Como muito bem coloca Gumperz  ( Gumperz,1984), na situação de comunicação cada um dos que interagem, possui os meios  discursivos  ou de fala que  dispõe para codificar suas mensagens e decodificar as dos outros. Estes meios seriam os índices que repousam sobre as convenções de contextualização,  mais sutis ainda do que as convenções lingüísticas e  sociais em geral. Como o emprego de uma  forma sintática ou lexical particular, de uma forma polida ou outra, de elementos prosódicos ou paralingüísticos como entoação, pausa, risos etc. ou de mecanismos conversacionais, em torno da fala, colocados a partir da língua, dialeto, ou de um estilo particular.
Esses “índices” são ocorrências que estão muito próximas, uma vez que  sempre há uma interpelação do receptor da mensagem que responde em função de sua própria identidade social e de suas relações com o emissor. Se eles não têm o mesmo código interacional, haverá risco de incompreensão. Este é, pois, a importância do papel simbólico da fala, porém não podemos nos esquecer que enquanto símbolos seu valor depende do seu contexto, da cultura em que está inserida. E é por tudo isso que uma proposta de alfabetização, seja de que natureza for,  reclama por  uma proposta mais concreta, porquanto se relacione com aspectos reais da vida do falante ou do alfabetizando.
Para melhor esclarecer ainda a importância  da comunicação contextualizada no processo educacional, especialmente na alfabetização, vejamos algumas explicações do processo comunicativo. Segundo Hymes (1972),  diferenças  nos modos de falar e de escutar entre redes de falas dos participantes de um evento social podem levar a sistemáticas e recorrentes falhas na comunicação. Isso é particularmente observado em sala de aula, na relação professor-aluno. Com base nesses fatos, enfatiza-se  que a descontinuidade entre normas culturais, características  dos ambientes domésticos e das redes sociais dos alunos e as da escola seriam responsáveis pelos desencontros entre professor e aluno e o conseqüente fracasso escolar. Fato comumente destacado nessas situações diz respeito às expectativas implícitas dos participantes  em relação ao comportamento interacional apropriado as quais são passíveis de serem interpretadas por quem participa  do processo.
Razão porque essa falta de  integração manifesta-se, pois,  com freqüência em situações de diversidade  cultural em que crenças e valores quase sempre se defrontam em oposição contraditória. Essas expectativas  derivam da experiência do falante na sua comunidade de fala ou o que mais recentemente se chama de redes de fala. As redes são conjuntos de pessoas que se associam estreitamente e que passam a partilhar suposições comuns sobre estilos e usos apropriados de comunicação(Erickson, 1987,  p.3)            
Como se sabe, tanto a língua quanto a cultura, de um modo geral, podem resistir aos contatos entre os grupos, mesmo havendo entre eles uma certa interdependência (Cf. Gumperz, 1984, Bortoni-Ricardo, 1985). Essa dificuldade é manifestada na dificuldade de organização social, de articulação conjunta dos indivíduos, revelada na dificuldade de integração e, sobretudo, na busca de soluções para seus problemas e necessidades comuns.
 Como essas considerações da relação pedagógica escolar indicam, as atividades da alfabetização de jovens e adultos, bem como a  situação em que acontecem só podem ser concebidas numa comunidade de fala, numa unidade social que permita situar cada um dos componentes de fala em inter-relação com os outros, de forma a permitir a sua ação dinâmica, sua função e significado sociais, enfim todos os demais fatores sociais implicados na atividade de fala tais como falante, remetente ou emissor, ouvinte, receptor ou destinatário, escritor, leitor etc. Todos esses componentes em articulação com os demais fatos sociais numa organização social constituem a  rede comunicativa daquela organização social.
Portanto, da perspectiva sociolingüística, a alfabetização deve caracterizar-se  por atividades de fala ou de linguagem, situadas socialmente, consideradas enquanto redes comunicativas, principalmente de oralidade, de  leitura e de escrita. Essas redes são desenvolvidas, construídas  enquanto atividades de interação  comunicativa,  tendo um caráter educacional e pedagógico apenas no sentido em que, como todo processo social, por um mecanismo de continuidade, como já vimos, reproduz-se, aperfeiçoa-se, e transmite-se
Ora, a condição mínima para a efetividade de um ato comunicativo é que falanteemissor e ouvintereceptor tenham motivo, necessidade ou manifeste o desejo de se comunicarem. Mais do que o uso de um mesmo código ou de  uma mesma fala, importam mais  as relações sociais  entre os interlocutores. Nesse caso,  na efetividade do processo comunicativo como de qualquer processo dessa natureza, as atitudes dos falantes são mais importantes.
Como já é consenso na Sociolingüística, aspectos políticos, históricos, afetivos, constituem critérios de definição de língua ou fala  mais do que propriamente aspectos estruturais da língua em si. O   grau de inteligibilidade do que se fala é menos afeto por tipos de códigos, vamos assim dizer,  do que propriamente por atitudes relativamente a esse código. Vale dizer, atitudes relativamente ao grupo social do qual o código é próprio ou que a ele de alguma forma se vincula. Assim, pois, o que conta mais num processo comunicativo, interacional, são mais os aspectos  psicossociais  e menos os estritamente  lingüísticos.
Embora  o discurso, a fala ou  a linguagem da tradicional alfabetização escolar considerada legítima seja da mesma natureza do discurso, da fala ou da linguagem  do alfabetizando, contudo o mundo a que se refere, a que remete é estranho, às vezes até mesmo absurdo para aqueles participantes desse processo. Só uma pessoa que por algum meio tenha tido algum contato eou desenvolvido algum sentimento positivo em relação ao discurso ou a essa fala da alfabetização escolar e,  por  conseguinte, o seu mundo,  conforme desenvolvido na escola em geral,  pode conseguir com muita dedicação e empenho superar  a  distância  estabelecida por este discurso e esse mundo ao qual se refere em relação ao seu destinatário e o presumido beneficiário do processo de alfabetização.
 Convém deixar claro que a posição que estamos assumindo nesta proposta, não  significa a defesa de uma   posição da  alfabetização escolar vir a ser realizada  na fala do alfabetizando, mas  que  sua fala,  suas experiências  anteriores à alfabetização possam no mínimo ser consideradas, até como forma  de estimular a fala da alfabetização escolar e, se quisermos de fato alfabetizar, sem dúvida, a fala deles constituirá o ponto de partida no processo de alfabetização,  independentemente do despenho do professoralfabetizador.
 Se a alfabetização escolar constitui uma situação nova cujo objetivo é  estimular a inclusão ou a interação entre os membros ou grupos da comunidade, fica muito difícil contar com essa interação se não se considerar as experiências da comunidade, tentando aproveitá-las e prosseguir com a alfabetização voltada mesmo para a realidade, inclusive lingüística do alfabetizando, e assim menos violenta do ponto de vista sociocultural.   
Enfim, o que se espera de uma alfabetização efetiva é que o alfabetizando adquira a competência comunicativa relacionada com a língua,  oralidade, leitura e escrita,  que seria uma certa capacidade de oralidade, de leitura e de escrita suficiente e adequada para o indivíduo  situar-se de forma ativa no mundo em que vive, quer se informando do que acontece no dia a dia, quer expressando seus sentimentos e opiniões, ou seja, lendo o mundo construído e já dado, e também, construindo e reconstruindo esse mundo.

Conclusão

Como conclusão desse olhar sociolingüístico sobre a alfabetização como ela é, formalmente escolar, diríamos que língua, fala ou linguagem, seja em que modalidade for,  não se ensina e não se aprende em si mesma, até porque em si mesma ela nem mesmo existe. O que  parece mais sensato em um trabalho de alfabetização efetiva, nessa perspectiva, é proporcionar a oportunidade, a vivência de uma nova situação, estimulando o ensinoaprendizado de  linguagem ou de novas formas de linguagens com falantes ou usuários dessa linguagem, juntamente com  toda a comunidade cujas relações sociais são mediadas e resultados dessa linguagem, para que juntos possam construir novos significados, novas realidades, novos mundos. É dessa vivência e só dessa vivência que poderá resultar usuários da linguagem da alfabetização através de atividades, da prática mesmo de oralidade, de leitura e de escrita em uma comunidade que se propõe a  uma nova realidade, uma nova história.
Rigorosamente, alfabetização efetiva não constitui um processo de ensinoaprendizagem de um objeto em si,  mas de um conjunto de atividades, situadas socialmente,  que tem reconhecidamente na oralidade, na escrita e na leitura o fio condutor de todas essas  atividades, desde que se relacione com todos os membros de um grupo social, de uma comunidade e como tal deve ser vivenciado por todos, compartilhado por todos e em todas as suas instâncias, porque diz respeito a todos que dela participam e, portanto, se dirige a toda a comunidade, a seus membros,  e  é  para  seus membros  que seus  resultados podem e devem beneficiar em qualquer  instância.

 


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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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