Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB)

Não é uma tarefa muito fácil operacionalizar o conceito de Relativismo Cultural, fundamental no desenvolvimento da Lingüística contemporânea, a partir do século XX, aplicando-o à análise  da situação sociolingüística brasileira,  com vistas a esclarecer, em salas de aula do Ensino Fundamental, por que certas variedades do nosso português têm aceitação mais ampla que outras. É o caso, por exemplo, de se explicar a alunos de séries iniciais por que a fala de personagens de ficção, nascidos e criados no campo, em particular a do Chico Bento com a qual eles estão familiarizados, é recebida com reservas nas comunidades urbanas ou até mesmo com franco preconceito. Sabemos que é difícil fazer a transposição didática de pressupostos da ciência lingüística, como o Relativismo Cultural, que se contrapõem aos preconceitos em relação a línguas ou variedades de língua e seus falantes, se temos compromisso com a clareza, mas queremos evitar o tratamento trivializado desses conceitos.
Neste artigo examino os esforços de uma professora para levar seus pequenos alunos a receberem com naturalidade as diferenças lingüísticas com que a equipe de Maurício de Sousa marca o repertório de fala do personagem Chico Bento, seus familiares e amigos.   O seguinte episódio de sala de aula ocorreu numa 1ª série em uma escola pública na cidade de Taguatinga-DF em 2003. 
Trata-se de uma conversa entre a professora e alunos depois que eles assistiram a um vídeo do personagem Chico Bento de Maurício de Sousa.  A professora, Sônia Maria Oliveira, é uma alfabetizadora muito competente. É formada em Pedagogia e nunca teve muita oportunidade de estudar Sociolingüística sistematicamente, mas, durante o trabalho de campo da mestranda Maria Alice Fernandes de Sousa , leu e discutiu com ela textos sobre variação lingüística. A fala de cada aluno está identificada com um “A” seguido de um número. A fala da professora está identificada com um “P”.

A1 – Eu quase num consegui entendê o que o Chico Bento falô, ele fala muito enrolado. Fala muito errado. Parece que ele ainda tá aprendeno a falá. Acho que tá sem dente.
A2 – Ele fala tudo errado mermo. Quando foi dizer “olha”, “falô”  “oia”.
A3 – Eu acho que ele ainda é muito pequeno, tá aprendeno a falá agora.
A4 – É porque ele ainda não estuda. Quando ele for pa escola, ele vai aprendê a falá bem direitim.
P– Vocês observaram onde o Chico mora?
A5 – Acho que ele mora numa chácara, porque tem uma floresta.
A6 – Ele usa ropa de festa junina, então ele é caipira, deve morá na roça.
A7– É se ele morasse na cidade ingual nós, ele usava ropa normal, ingual a nossa.
A8 – É ele usa chapéu de paia deve de morá em fazenda. O pai dele deve sê casero.
A9 – Agora entendi, ele fala assim, porque ele mora na roça. Eu tenho um tio que tem um amigo que mora na roça e ele fala parecido o Chico.
P – Então vocês acham que a forma de falar de quem mora na roça é diferente da forma de quem mora na cidade?
A10 – Claro, na roça, fala diferente da cidade, eles não têm escola.
P – Mas vocês conseguiram entender a conversa do Chico com o Zé Lelé no filme? Conseguiram entender a história?
A11 – Sim, até posso contá.
P – Então o que há de diferente entre a fala do Chico e a fala de vocês?
A12 – Agora eu tô pensando, a diferença é porque ele mora na roça, fala igual as pessoa de lá e nós moramo aqui na cidade, falamo igual as pessoa da cidade.
A13 – Cada pessoa fala de um jeito, se mora na cidade fala do jeito do povo da cidade, se mora na roça fala do jeito do povo da roça.

 

P– As pessoas da cidade conseguem entender o que as pessoas da roça querem dizer ao falarem? E as pessoas da roça conseguem entender as pessoas da cidade?
A14 – Consegue, na minha família tem pessoa que mora em chácara e a gente consegue entender o que eles falam e eles também consegue entender o que nós fala.
P – Então existe jeito “certo” ou “errado” de falar?
A1 - Não. Cada pessoa fala do seu jeito. 

Vamos refletir sobre a interação que acabamos de ler. Ela é muito reveladora da competência comunicativa dos alunos e de suas habilidades de tecer comentários pertinentes sobre o filme a que assistiram e de dar respostas adequadas à professora. Observe-se que essas crianças de primeira série, cuja idade varia entre 7 e 8 anos, já são capazes de discorrer sobre as peculiaridades da vida no campo e da vida na cidade. Para interpretar as características sociodemográficas do personagem Chico Bento, que representa a cultura rural, eles as associam a experiências com chácaras, caseiros e festas juninas, pois não têm uma experiência efetiva com a vida rural. Também já são capazes de perceber que há diferenças nos modos de falar no campo e na cidade. Os estudos de atitudes lingüísticas desenvolvidos por Lambert e seus associados na Universidade de McGill mostraram que crianças de 10 anos ainda não haviam desenvolvido uma postura negativa ou preconceituosa em relação a grupos minoritários (Anisfeld e Lambert, 1964). Por volta dos 12 anos, esse sentimento negativo começa a aparecer e tende a manter-se durante toda a adolescência (Lambert, Frankel e Tucker, 1966). Esses psicólogos sociais apontam que o período crucial no desenvolvimento de atitudes lingüísticas que refletem preconceitos étnicos é a pré-adolescência.
Há que se notar que os alunos do nosso episódio criam várias hipóteses sobre a fala de Chico Bento.  Comentam que o Chico fala “muito enrolado e que parece que ele está aprendendo a falar”; “que ele não estuda” e “quando for para a escola vai aprender a falar bem direitim”. Todos esses enunciados revelam uma atitude negativa em relação à fala do personagem. A Professora vai acatando as hipóteses e apresentando perguntas que os levam a evoluir o raciocínio. Aos poucos, as crianças substituem os primeiros enunciados em que se pode perceber certa desqualificação da fala de Chico Bento por outros que já se alinham com uma visão mais relativista.
No fascículo destinado à formação de professores, depois de reproduzir esse episódio, apresentei a seguinte definição de Relativismo Cultural:

“O Relativismo cultural é uma postura adotada nas Ciências Sociais, inclusive na Lingüística, segundo a qual uma manifestação de cultura prestigiada na sociedade não é intrinsecamente superior a outras. Quando consideramos que as variedades da língua portuguesa empregadas na escrita ou usadas por pessoas letradas quando estão prestando atenção à fala não são intrinsecamente superiores às variedades  usadas por pessoas com pouca escolarização, estamos adotando uma posição culturalmente relativa e combatendo o preconceito  baseado em  mitos que perduram há muito tempo em nossa sociedade.”

De fato a professora não chegou a discutir os princípios basilares do Relativismo Cultural, certamente porque é difícil tratar deles de forma acessível à compreensão das crianças. Optou por enfatizar o fato de que as diferenças entre os modos de falar no campo e na cidade não são um impeditivo para a compreensão entre os falantes dos dois grupos sociais. Partindo dessa premissa propõe a questão condutora da conclusão final: “_ Então existe jeito certo ou errado de falar?” “_ Não, cada pessoa fala do seu jeito”. Mas conseguiu passar a mensagem de que se deve evitar o preconceito lingüístico. Por vias transversas chegou à própria base filosófica do Relativismo Cultural.
Há duas interpretações mais comuns desse conceito. A primeira é mais radical; a segunda, mais realista.
Um pressuposto na concepção culturalmente relativista dos lingüistas e antropólogos no começo do século XX é que não existem línguas primitivas no sentido de terem de recorrer a gestos ou outros expedientes para que a comunicação se efetive. Outro é o da equivalência funcional. Segundo interpretações que se tornaram bastante populares a partir de meados do século XX, a equivalência funcional entre línguas ou variedades significa que essas se equivalem tanto em sua estrutura quanto em seu uso, ou seja, todas as línguas têm igual complexidade. Sendo assim, afirmavam os primeiros pesquisadores que se dedicaram ao estudo de línguas ameríndias, não há fundamento científico para que um código lingüístico seja mais valorizado que outros. Essa postura cumpriu um papel importante na luta contra o preconceito lingüístico cujas vítimas são os usuários da língua ou variedade de pouco prestígio social. Como bem observou Bourdieu (1974), o pouco prestígio de um grupo social acaba por transferir-se às suas formas de falar.
 Consideremos que essa é uma interpretação mais forte, ou mais radical, do princípio da equivalência funcional. Embora tenha tido um importante papel de natureza sociopolítica, como observamos, essa interpretação é de difícil comprovação empírica, considerando principalmente as diferenças no universo vocabular entre as línguas.  Segundo Dell Hymes (1974) é a confiança ideológica e não o conhecimento empírico que leva os lingüistas a afirmarem tais coisas (cf. Bortoni-Ricardo, 2005 p.111).
O Círculo Lingüístico de Praga postulava uma escala de três níveis quanto à “intelectualização” e complexidade nas línguas, a saber: dialeto de conversação; técnico rotineiro e científico funcional (Garvin e Mathiot, 1974). Na mesma linha de raciocínio, o conceito de diglossia proposto por Charles Ferguson  (19591972) leva em consideração, além das diferenças estruturais entre línguas e variantes de uma língua, também as diferenças funcionais. Segundo esse pioneiro das ciências lingüísticas, um importante traço da diglossia é a especialização de função dos códigos coexistentes no repertório de uma comunidade, isto é, cada um deles assumindo um papel definido. A proposta de Ferguson milita também em favor da interpretação mais realista do Relativismo Cultural, cujas raízes vamos encontrar no trabalho de Franz Boas (19111974). Quando Boas e seus contemporâneos travaram contato com as línguas indígenas na América do Norte, a seguinte e crucial questão se lhes deparou: considerando as especificidades dessas línguas e as diferenças entre elas e as línguas européias, seria adequado considerar que as línguas ameríndias estavam em um estágio “primitivo”, inferior às línguas indo-européias?.Vejamos o que diz o próprio Boas (1974 p.23-4):

“Tem sido dito que a concisão e a clareza de pensamento de um povo dependem em grande escala de sua língua. A facilidade com a qual em nossas modernas línguas européias expressamos idéias abstratas por meio de um único termo e a facilidade com que amplas generalizações são lançadas nos limites de uma única sentença têm sido consideradas uma das condições fundamentais da clareza de nossos conceitos, da força lógica de nosso pensamento e da precisão com que eliminamos em nossos pensamentos detalhes irrelevantes.  ... Quando comparamos o inglês moderno com algumas dessas línguas indígenas, que são mais concretas em sua expressão formativa, o contraste é gritante.” ( Tradução nossa)

Para ilustrar sua assertiva fornece vários exemplos. Em certas línguas indígenas não se pode dizer: “O olho é o órgão da visão”, tomando-se a palavra olho genericamente. Só se pode referir-se a olho nessas línguas atribuindo-o a alguém que o possua. No entanto, prossegue o lingüista afirmando que seria perfeitamente razoável prever que um ameríndio que recebesse treinamento em filosofia passaria a usar formas nominais subjacentes dissociadas do elemento possuidor, alcançando formas abstratas, comuns nas línguas européias. Boas confirmou essa hipótese com um experimento com um grupo étnico falante da língua Kwakiutl na Ilha de Vancouver. Seus membros foram capazes de usar palavras como “amor” e “piedade” dissociados do elemento possessivo. Outro exemplo da mesma língua que o autor fornece refere-se à idéia de “estar sentado” (to be seated), que os usuários da língua empregavam sempre com um sufixo expressando o lugar onde a pessoa estava sentada. Quando foi necessário, por alguma razão, exprimir a idéia do estado de “estar sentado” foi proposta uma perífrase na língua, equivalente a: “estar numa postura sentada” (being in a sitting posture), mas a oportunidade de empregar essa perífrase raramente ou nunca se apresentou. O autor conclui então que, quando formas genéricas de expressão não são empregadas em uma determinada língua, isso não prova a incapacidade daquela língua de formá-las; prova simplesmente que o modo de vida da comunidade não requer o uso dessas formas genéricas. Elas podem ser desenvolvidas a qualquer momento em que se tornarem necessárias.
 Um outro exemplo bastante revelador, também fornecido por Boas, refere-se à capacidade de contar em uma língua usando os números cardinais. Algumas línguas, como o Esquimó, dispõem de numerais até 10 (dez). É sabido também que no antigo Guarani não se contava além de 3 (três). No entanto se a comunidade for posta em contato com outras em que a quantificação é indispensável, facilmente desenvolve recursos lexicais, pela via do empréstimo ou da criação morfológica, para suprir as necessidades. Em resumo, segundo Boas, a língua usada por qualquer comunidade tem o potencial de ampliar seu vocabulário ou modificar seus modos de falar de maneira a adaptar-se a necessidades supervenientes naquela comunidade. Dell Hymes (1974, p.76) ecoa a concepção de equivalência funcional entre línguas, avançada por Boas, quando afirma: “Uma relação social implica a seleção ou a criação de meios comunicativos considerados apropriados ou talvez específicos a ela”. Podemos então concluir que uma interpretação mais realista e menos radical do conceito de equivalência funcional, por sua vez implícito na noção de Relativismo Cultural, é que as línguas se equivalem funcionalmente na medida em que atendem sempre de forma satisfatória às necessidades comunicativas das comunidades que as usam. São equivalentes porque nenhuma delas é mais funcional que as outras para a comunicação nas comunidades em que são usadas. Mas a bem da verdade, antes de aderirmos a essa conclusão é preciso tecer algumas considerações.
Se um indivíduo falante de determinada língua migrar para outra sociedade tecnologicamente mais avançada onde se falam outras línguas ou se toda uma comunidade, por questões políticas, passar a conviver com outros grupos sociais, como é o caso de línguas postas em contato, a língua original do indivíduo ou da comunidade pode necessitar de ajustes e adaptações para se manter funcional. Na Europa Central, cujo mapa político já passou por inúmeras alterações, conhecemos o caso de comunidades falantes do húngaro e do esloveno que, postas em contato com a língua alemã, tornaram-se bilíngües. Nesse processo, passaram a incluir em seus repertórios estratégias de mudança de código (code-switching) que lhes permitissem expressar-se, usando um léxico que, apesar de estrangeiro, era mais específico, ou adequado, quando a situação comunicativa assim o exigia (cf. Gal, 1979). Outros recursos de que se socorreram foram os empréstimos para suprir lacunas lexicais .
Pode-se reiterar então que uma variedade empregada por um grupo social em uma comunidade de fala atende a todas às necessidades comunicativas daquele grupo e daquela comunidade. Mas há que se considerar também que as necessidades comunicativas podem variar muito de uma comunidade para outra. Essa variação é diretamente condicionada pela complexidade das práticas sociais vigentes, levando-se em conta um contínuo de oralidade-letramento (cf. Bortoni-Ricardo, 2005, para a situação brasileira). É aconselhável tratar essa questão, levando em conta  práticas sociais letradas e  práticas sociais de oralidade, bem como o conceito de alfabetismo funcional ( ver: www.acaoeducativa.org.br ou  www.ipm.org.br )
 Sabemos, naturalmente, que as comunidades brasileiras do campo, que Chico Bento representa, e mesmo as comunidades rurbanas praticam uma cultura predominantemente oral e têm pouco acesso a práticas sociais letradas. As taxas de analfabetismo nas áreas rural e urbana no Brasil são de, respectivamente 28,7% e 9,5 % (disponíveis em
www.inep.br). A variação lingüística que se observa entre os falares rurais e os urbanos é condicionada basicamente pelas diferenças de acesso a certos bens culturais entre os quais tem maior relevância a cultura de letramento. Neste caso quem mais se aproximou de uma análise sociolingüística precisa no episódio da sala de aula que lemos foi o aluno A4 quando diz: “É porque ele ainda não estuda, quando ele for pa escola vai aprendê a falá direitim”.
Aos exemplos que Franz Boas fornece sobre línguas ameríndias, para sustentar a concepção de equivalência funcional, podemos aduzir este mais próximo da nossa vivência. Na cultura rural brasileira o cálculo da produção de cereais, especialmente do milho, é feito tradicionalmente com categorias próprias.   Um “carro” de milho equivale a 40 “balaios”; um “balaio” equivale a 30 “atios” (atilhos); um “atio” equivale a 4 “espigas de milho”. Depois da colheita, o milho ou feijão são depositados em montes, espalhados pela roça, denominados “bandeiras”. Todas essas categorias são bastante funcionais para o produtor rural. No entanto, se ele precisar interagir com indivíduos de antecedentes urbanos, como por exemplo, o gerente do banco aonde vai buscar financiamento, poderá facilmente ajustar-se ao sistema métrico de cálculo, adotando palavras e medidas como quilograma, tonelada etc. No seu habitat as categorias de que o dialeto dispõe são perfeitamente funcionais. Fora dali, se for necessário, o falante do dialeto caipira pode ampliar o seu repertório. O mesmo vale para toda uma comunidade rural. Com a introdução de tecnologia agropecuária no campo, a variedade usada pela comunidade vai incorporar por empréstimo novos itens lexicais ou até mesmo desenvolver os termos necessários valendo-se da morfologia derivacional do dialeto. Nesse sentido o falar rural é funcionalmente equivalente às variedades urbanas da língua.
Na sociedade brasileira a cultura urbana é historicamente mais prestigiada que a cultura rural. Essa não é a situação em todos os países. Na Inglaterra, por exemplo, dialetos de certas áreas rurais muito aprazíveis são mais prestigiados que dialetos de áreas urbanas degradadas pela industrialização.
Não se pode esquecer também que a toda diferença corresponde uma desigualdade. No caso brasileiro as desigualdades têm início com a própria formação deste país. A clivagem entre os brasileiros alfabetizados e os que não sabem ler e escrever começou nas primeiras décadas da colonização.
Sabemos que até meados do século passado o Brasil era um país essencialmente rural. Segundo Buarque de Holanda (1997), no Brasil-Colônia assim como em outros países de história colonial recente, mal existiam tipos de estabelecimento humano intermediários entre os meios urbanos e as propriedades rurais; os primeiros, restritos, neste país, à faixa litorânea, e as últimas espalhando-se pelas regiões interioranas, à medida que as terras eram desbravadas e se sucediam os ciclos na produção agropecuária. Nessas grandes extensões interioranas as condições sociolingüísticas nos primeiros séculos de colonização, a saber: o contato de línguas _ as várias línguas dos grupos étnicos, a língua geral e as interlínguas dos indígenas no seu esforço para se comunicar com o colonizador e, posteriormente, as línguas africanas_ ; a ausência de um sistema educacional e a ínfima circulação de textos escritos em português, já que até 1809 era proibida na Colônia qualquer atividade de imprensa, contribuíram para formar uma variedade dialetal de português oral, muito distinta da língua falada e escrita em centros urbanos em Portugal e, posteriormente, no Brasil. Essa variedade dialetal permaneceu infensa à influência das agências letradoras próprias da cultura urbana. Essa é a origem da língua e da cultura caipira, que veio a receber uma primeira descrição em 1920 com O dialeto caipira de Amadeu Amaral (1976).
A padronização do português brasileiro correu paralela ao processo de urbanização, intermitente e caótico. É bem verdade que, já em 1770, o primeiro-ministro português, Marquês de Pombal, impôs uma gramática normativa única a todas as escolas de Portugal e de além-mar. Mas essa providência teve pouco efeito já que, como observei,  a massa populacional brasileira não tinha acesso a escola nem a práticas letradas, restritas ao clero e à elite que representava o estado português na colônia.
Na Europa a industrialização precedeu a urbanização e há entre os dois processos uma relação de causa e conseqüência. No Brasil, como de resto nos países do terceiro mundo, a urbanização não foi conseqüência da industrialização e se explica por circunstâncias históricas e pressões econômicas que delas decorrem.
 Podem-se identificar dois períodos na urbanização brasileira (Pereira de Queiroz, 1978). O primeiro tem início com a colonização, quando se criam os núcleos urbanos litorâneos do Brasil-Colônia. Salvador foi construída a partir de 1549, para abrigar a administração colonial; a fundação de Recife e Olinda está associada às invasões holandesas ainda no início do século XVI e a do Rio de Janeiro, às invasões francesas em 1565. Mas a população carioca só começa a adotar hábitos de sociedade burguesa quando a cidade se torna sede do reino português, em final de 1808, após a vinda da corte, que fugia ao ímpeto conquistador de Napoleão Bonaparte. Cerca de 30 anos mais tarde o modo burguês de vida chegaria a São Paulo que, no século seguinte, consolida-se como uma grande metrópole graças à cultura cafeeira. As primeiras cidades de Minas Gerais surgem com a exploração aurífera no início de século XVIII. O ouro e os diamantes financiaram suas igrejas, casario e toda a sua estrutura urbana.
À medida que o modo de vida burguês ganhava prestígio, aprofundava-se uma clivagem entre a cultura urbana e a cultura tradicional interiorana. As cidades se tornaram por excelência o locus da cultura de letramento, enquanto no interior se perpetuava uma cultura predominantemente oral.
O processo de industrialização só começou no Brasil no final dos anos 40 do século XX. Inicia-se aí uma segunda fase de urbanização. Mas a ausência de uma sólida base industrial nos séculos XIX e começo do século XX determinou que apenas algumas poucas cidades desenvolvessem um sistema social estratificado. Nas cidades menores e em regiões mais pobres foram mantidas a uniformidade e a tradição do modo rural de vida.
A difusão dos hábitos citadinos teve como conseqüência o aprofundamento da clivagem entre a cultura urbana, diretamente influenciada pelos modelos europeus, e a cultura rural, e levou as cidades a assumirem uma posição de superioridade em relação à vida interiorana. No século XX a urbanização brasileira acelerou-se, implementada pela introdução de tecnologia no campo, pelo massivo êxodo rural e melhorias nos sistemas de comunicação e de transporte. Contudo a população rural que se deslocou para as cidades recriou, no novo habitat, espaços culturais rurbanos (Bortoni-Ricardo, 1985). Sua efetiva integração ao modo urbano de vida é lenta e depende muito das oportunidades de acesso à escola e a práticas letradas. 
A avaliação negativa que os pequenos estudantes fizeram da fala de Chico Bento e conseqüentemente da cultura rural, embora eles próprios tenham em seu repertório traços dessa fala (por exemplo, “nós fala” e “ingual”) reflete o estereótipo negativo associado a essa cultura  que se foi formando na sociedade brasileira desde seus primeiros séculos de história.
Para justificar a equivalência funcional entre os falares rural e urbano, a professora valeu-se do argumento da inteligibilidade mútua entre esses falares.
P – Mas vocês conseguiram entender a conversa do Chico com o Zé Lelé no filme? Conseguiram entender a história?
A11 – Sim, até posso contá.
P – Então o que há de diferente entre a fala do Chico e a fala de vocês?
A12 – Agora eu tô pensando, a diferença é porque ele mora na roça, fala igual as pessoa de lá e nós moramo aqui na cidade, falamo igual as pessoa da cidade.
A13 – Cada pessoa fala de um jeito, se mora na cidade fala do jeito do povo da cidade, se mora na roça fala do jeito do povo da roça.
P– As pessoas da cidade conseguem entender o que as pessoas da roça querem dizer ao falarem? E as pessoas da roça conseguem entender as pessoas da cidade?
A14 – Consegue, na minha família tem pessoa que mora em chácara e a gente consegue entender o que eles falam e eles também consegue entender o que nós fala.

Entretanto a questão dessa inteligibilidade é complexa. Os brasileiros que têm pouca escolarização e conseqüentemente pouco contato com a cultura de letramento podem ter muita dificuldade para entender o discurso de um evento de letramento, como o de um jornal televisivo, ou uma entrevista de um político ou e um cientista no rádio ou na televisão (Bortoni-Ricardo, 1984). Dificuldades de entendimento como essas têm de ser levadas em consideração porque representam um forte entrave para a inclusão social da população iletrada em nosso país. Contribuem também para criar nessa população um sentimento de insegurança lingüística. Quando a professora e os alunos argumentam que não há dificuldades de entendimento entre falantes de variedades rurais e falantes de variedades urbanas, têm em mente que não existe uma total falta de inteligibilidade, como existe entre os falantes de dialetos em países da Europa, Ásia ou África.
Voltando, então, à interação da Professora Sônia com seus aluninhos, visando a  desenvolver neles uma atitude culturalmente relativista em relação às diferenças sociolingüísticas no Português do Brasil, vemos que o tratamento da questão do dialeto caipira pode-se beneficiar de reflexões sobre o Relativismo cultural.  A professora poderia ater-se a alguns pontos:
1. Há muitas diferenças entre os modos de falar nas cidades e os modos de falar de pessoas, como o Chico Bento, que nasceram e vivem no campo.
2. Muitas das diferenças entre os modos de falar na cidade e no campo se relacionam ao vocabulário empregado em cada uma dessas áreas. No campo, por exemplo, os falantes dispõem de vocabulário mais específico relacionado às plantas medicinais, às árvores, à criação de animais; à alimentação, etc. Nas cidades os falantes dispõem de vocabulários específicos relacionados às atividades urbanas, em especial às atividades tecnológicas e científicas, como a informática, as artes plásticas, a medicina, a ecologia; a engenharia e tantas outras.
3. As pessoas que vivem em áreas rurais têm mais oportunidade de envolver-se em práticas sociais de oralidade; os residentes em áreas urbanas, por sua vez, têm mais oportunidade de participar de práticas sociais mediadas pela língua escrita, ou seja, práticas sociais letradas.
4. A participação efetiva em práticas sociais letradas está diretamente relacionada ao grau de alfabetismo funcional do indivíduo.
5.  Essas diferenças não impedem que pessoas da cidade e de áreas rurais possam conversar entre si, sem problemas. Por isso é que vemos o Chico conversando com seu primo que vive na cidade. Há países em que as diferenças nos modos de falar de uma região para outra são tão grandes que às vezes impedem ou dificultam a comunicação.
6. Não podemos nos esquecer, porém, de que as diferenças nos modos de falar entre as comunidades do campo e as da cidade podem criar problemas de compreensão para os habitantes das áreas rurais, que muitas vezes não conseguem compreender bem um jornal televisivo ou uma entrevista na televisão ou no rádio, por exemplo.
7. É freqüente ouvirmos pessoas nas cidades criticando os modos de falar e os modos de viver das populações rurais. Essa é uma postura que se implantou no Brasil, desde o começo de sua história, à medida que as cidades passaram a ter mais prestígio que as áreas rurais.
8. A atitude negativa em relação à cultura e aos modos de falar de Chico Bento e sua família  reflete um preconceito, que devemos aprender a evitar ( cf. Bagno, 1999).
9. Como qualquer preconceito, o estigma relacionado à cultura rural no Brasil não se apóia em evidências científicas.
10. Podemos dizer que a variedade lingüística empregada nas áreas rurais ou semi-rurais (‘rurbanas’) no Brasil é funcionalmente equivalente às variedades empregadas nas cidades, pelas pessoas escolarizadas, porque a variedade usada na roça pelos grupos sociais, como a comunidade em que vive o Chico Bento, é perfeitamente adequada para que as pessoas que lá vivem se comuniquem,  realizando todas as tarefas comunicativas que têm de realizar. Usando essa variedade interagem na família, no trabalho, rezam, engajam-se em uma rica cultura musical, etc. Da mesma forma, a variedade usada nas áreas urbanas é adequada a todas as necessidades comunicativas de seus usuários.
11. Se o próprio Chico Bento decidir vir morar numa cidade, freqüentar escola, fazer vestibular e  seguir uma carreira, seus modos de falar vão-se ajustar às novas necessidades. Ele vai aprender palavras novas e vai modificar em alguns pontos a sua pronúncia.. Vai também acostumar-se a participar de práticas sociais letradas na cultura urbana.
12. Da mesma forma, se um indivíduo nascido e criado na cidade for viver numa comunidade rural ou rurbana, terá de aprender palavras específicas da fala rural e a participar de práticas sociais próprias da cultura onde passou a conviver. ( cf. Bortoni-Ricardo, 1985).
13.  Tanto em um caso como em outro vai ocorrer um processo de acomodação,  por meio do qual os falantes tendem a alterar sua fala e suas práticas interacionais, tomando como modelo as  pessoas que os cercam e com as quais convivem ou,  em algum momento de suas vidas, passaram a conviver.

Brasília, DF, 29 de setembro de 2006

 

 

 

 

 


Referências Bibliográficas

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BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

BORTONI-RICARDO, S.M..  The urbanization of rural dialect speakers: a sociolinguistic study in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
________________  Problemas de comunicação interdialetal. Revista Tempo Brasileiro 789. 1984, p.9-32, reproduzido em Bortoni-Ricardo, 2005.
______________   Nós cheguemos na escola, e agora? Sociolingüística & Educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

BUARQUE DE HOLANDA, S..  Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,1997.

FERGUSON, C.A.. Diglossia.  Word, vol. 15, 1959, p.325-40.

GAL, Susan.  Language Shift: social determinants of linguistic change in bilingual Austria.  Nova York: Academic Press, 1979.

GARVIN, P. L.  e  MATHIOT, M.  A urbanização da língua guarani. In: Fonseca, M.S. e Neves M. F. (orgs.)  Sociolingüística.  Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. p.119-130.

HYMES, Dell. Foundations in sociolinguistics: na ethnographic approach. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1974, p. 76.

LAMBERT, W.E., FRANKEL, H. e TUCKER, G. R. Judging personality through speech: a French-Canadian example. Journal of Communication, 16, p.305-321, 1966

PEREIRA DE QUEIROZ, M.I. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil.  Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos e São Paulo: EDUSP, 1978.

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