“Frente à linguagem direta, em relação dialógica
 com ela, está a linguagem indireta, figurada,
 a linguagem paródica, irônica, a que se utiliza
 de uma máscara, sabendo-se que é uma
 máscara.”Larrosa (2000:153)”.
                                                    
                                                  
     Ao falarmos em intertextualidade, temos, primeiramente, que fazer algumas considerações sobre o pós-modernismo. Com o pós-modernismo, começamos a enfrentar e somos desafiados por uma arte que se revigora pela necessidade de repensar e problematizar tudo, até mesmo sua própria identidade. O pós-modernismo dá lugar ao conceito de diferenças, a uma descentralização e a uma ruptura com a ideologia do passado.
      Tal perspectiva entende que se deve reconhecer a provisoriedade das múltiplas posições em que somos colocados, em função das constantes mudanças discursivas que nos constituem. Pensadores pós-estruturalistas e pós-modernos problematizam a tradição moderna fundada no Iluminismo, com suas idéias de razão, progresso e ciência, legitimadas pelas grandes narrativas totalizantes filosóficas eou científicas.  Daí porque o discurso pós-moderno privilegia o potencial subversivo da ironia, da paródia e do humor como contestação das pretensões universalizantes da arte ‘séria’. O pós-modernismo oferece, segundo Habermas (1985b: 202, In Hutcheon, 1991), “uma constelação modificada da arte, do mundo e da vida”. O pós-modernismo é, em última instância, um discurso da intertextualidade, ou mais especificamente, um discurso parodístico. De acordo com Silva (1999:114): “o pós-modernismo privilegia o pastiche, a colagem, a paródia, a ironia (...), a mistura, o hibridismo e a mestiçagem - de culturas, de estilos e de modos de vida”.
      Assim, a incorporação de pesquisas lingüísticas, inclusive aquelas sobre metodologia da leitura, que buscam a descoberta das inúmeras possibilidades de se ler um texto, alicerça-se em uma perspectiva pós-moderna de se fazer releituras que desvelem os discursos iluministas herdados do passado. O pós-modernismo questiona, permanentemente, o sujeito racional, centrado e soberano da modernidade e seu discurso sacralizado e solidificado.   
   A partir da inserção dos estudos da análise do discurso na lingüística, principalmente com Bakhtin (1986) e os teóricos de linha francesa, pôde-se entender melhor o caráter ideológico do discurso. A palavra deixa de ser vista, como pretendiam os estruturalistas, como um elemento isolado do social, porque o discurso, nesta nova concepção, pressupõe que não existe um só sentido, mas diversos sentidos, dependendo do local em que você se encontra no contexto social e cultural. O texto passou a ser entendido como a concretização do discurso, considerado hoje tanto como objeto de significação quanto objeto de uma cultura, cujo sentido depende de um contexto sócio-histórico. Bakhtin (1986), ao ressaltar o caráter ideológico do signo, concebeu o dialogismo como princípio constitutivo da linguagem e condição do sentido do discurso. Como a linguagem é discursivamente produzida, as diferenças não são absolutas, mas diferem-se relativamente a algum outro discurso, tornando o signo subjetivo, contraditório e ideológico.
     Assim, uma determinada visão de mundo apresenta-se em um discurso próprio. Como não existem idéias fora da linguagem, cada visão de mundo está diretamente vinculada à linguagem e, por isso, corresponde a uma visão ideológica. Dessa forma, assim como cada formação ideológica determina o que pensar, cada formação discursiva determina o que dizer. Para a visão pós-estruturalista, portanto, a diferença entre as culturas não pode ser concebida fora dos processos lingüísticos de significação, a diferença não é uma característica natural, ela é discursivamente produzida. São as relações de poder que fazem com que exista o diferente e que este seja avaliado negativamente em relação à cultura dominante. Os estudos lingüísticos, pós-estruturalistas, passam, assim, a conceber a linguagem a partir de uma concepção discursiva, cujas análises ressaltam os diversos  discursos que estão inseridos na sociedade e que dão corpo às formações ideológicas.


• Os Discursos Educacionais

     No que concerne à presença das relações de poder na instituição escolar, tais estudos partem das idéias de Michel Foucault (apresentadas no conjunto da sua obra), para quem a existência do poder não ocorre apenas na dinâmica das instituições, mas também se constitui nas permanentes relações que se dão entre as pessoas, sendo exercido nas ações que têm como suporte o discurso.  Para Foucault (1985, p.133), toda relação é, por conseguinte, uma relação de força e de poder e, por esta razão, não se estabelece apenas de cima para baixo, mas é onipresente, vindo de todos os lados e induzindo continuamente relações de poder localizadas e instáveis.  Trata-se de um poder exercido não só pela lei, mas também pela técnica e pela padronização, não só pelo castigo, mas também pelo controle.
      Segundo Larossa (2000) , a verdadeira missão de um educador consiste em educar um ser que não se deixe enganar, não só pela mídia, mas, e principalmente, por aparatos educativos e culturais que, pretendendo imunizá-lo contra a mentira da mídia, inculcam, talvez, outras formas de mentira, disfarçadas, desta vez, como um manto de realidade. Segundo o teórico, é crucial entender que não há uma única verdade, mas múltiplas verdades e, portanto, as metanarrativas, herdadas da visão iluminista, cedem espaço às diversas interpretações da realidade.
Larossa, (2000), define a linguagem irônica como uma característica do pós-modernismo, e diz que essa provoca o riso e cria o momento da autocrítica da palavra e uma fina consciência da relatividade da situação comunicativa, pois é capaz de mostrar a realidade a partir de outro prisma. Essa seria, segundo ele, a função do desmascaramento do convencionalismo existente em todas as relações humanas.” O autor esclarece que:

“ o riso destrói as certezas. E especialmente aquela certeza que constitui a consciência enclausurada; a certeza de si. Mas só na perda de certeza, no permanente questionamento da certeza, na distância irônica da certeza, está a possibilidade do devir.”(...) “A história deve tentar, em primeiro lugar, salvar o esquecido e o reprimido na história monumental do reconhecimento, na história dos vencedores, e construir-se num tipo de contra-memória.Para que essa experiência do passado seja possível, o sujeito da  experiência – o historiador ou o leitor – deve ser um sujeito  desconforme e inquieto.  “ Larossa (2000: 136)”.


     Teóricos como Foucault e Larossa têm-se preocupado em denunciar os aspectos ideológicos que subjazem às correntes investigativas e a forma como os paradigmas educacionais vêm perpetuando visões que reforçam explicações universalizantes e metanarrativas, o que demonstra sua inoperância na tentativa de explicar os multifacetados e complexos processos sociais e políticos do mundo e da sociedade.
      Para os profissionais da educação, pesquisadores e estudiosos, a lição que fica  é a necessidade de estarmos atentos, quando, na prática profissional, induzimos, incitamos, desviamos, tornamos mais fácil ou mais difícil, produzimos, ampliamos ou limitamos o currículo, os conhecimentos e as práticas educacionais. Nessas atividades, exercita-se o poder, modelando corpos e mentes. É nessas relações de poder que se estabelecem “verdades” e se constituem os sujeitos – crianças, adolescentes, homens, mulheres, professores e pesquisadores.
         Nessa nova perspectiva, é crucial que, nós professores, entendamos que língua não é apenas aquele sistema abstrato que reflete nossos pensamentos de uma forma neutra e imune às condições socioculturais, mas sim algo muito mais complexo, um jogo de poder, uma arena de conflitos, e é, por isso, que precisamos compreender bem suas diversas faces Nesse sentido, a linguagem que usamos para ler o mundo determina, em grande medida, a forma como pensamos e agimos no e sobre o mundo, uma vez que não existe uma realidade fora da linguagem e dos signos. Tais significados são sempre, portanto, construídos e produzidos, de forma contextual, no interior de práticas determinadas.
        A linha de pesquisa que parte de uma perspectiva culturalista e interacional não acredita na existência de um sujeito soberano e de uma verdade a ser alcançada e entende que a escola deve enfatizar o caráter transgressivo e subversivo do pós-estruturalismo, que reconhece a provisoriedade das posições em que somos colocados em função das múltiplas mudanças discursivas que nos constituem. Nesse sentido o trabalho do educador e do pesquisador é questionar e interrogar as grandes narrativas filosóficas e científicas, visando desestabilizá-las de sua posição única, que sabemos, é ilusória. Assim, é vital que a escola, hoje, reconheça a necessidade de se formar um aluno que saiba questionar e interrogar permanentemente o mundo em que vive.

     A leitura, nessa perspectiva, passa a ter, portanto, uma função primordial na formação de nossos educandos. Ela precisa ser vista como um processo no qual o leitor realiza um trabalho de construção do significado do texto, a partir do conhecimento de mundo, conhecimentos lingüísticos, intencionalidade do autor, entre outros... Assim, o texto não pode ser mais considerado como algo pronto e acabado, mas, como um conjunto de pressupostos, intenções, implícitos, que, somados aos fatores contextuais e intertextuais que ele evoca, criam um universo de leitura a ser desvendado pelo leitor.
   As práticas atuais de leitura nas escolas brasileiras, entretanto,  ainda não estão voltadas para a concretização de um pressuposto geral básico que é o da articulação entre função social da leitura e o papel da escola na formação do leitor. É preciso ousar, criar, inventar, renovar, desafiar, romper com o tradicional e vivenciar outras formas de se trabalhar a leitura. A voz do professor tem, infelizmente, perpetuado, na escola, a tradição acadêmica, compelindo o aluno a escutar, copiar e reproduzir, não se dando espaço para a vivência da cidadania inovadora. Se quisermos alunos pensantes e arrojados, temos que dar a eles discursos que os levem a refletir, a testar, a contestar e criar e inovar.

• O Discurso Parodístico

      Como vimos acima, a intertextualidade ganha status de discurso pós-moderno ao desvelar um discurso anterior e ao dar a esse discurso uma nova roupagem ideológica. Assim, o passado, como referente, não é enquadrado nem apagado, ele é incorporado e modificado, recebendo vida e  sentido novos e diferentes.
  A presença de texto original no discurso intertextual revela-se de duas maneiras: pela paráfrase, quando há uma retomada da mesma ideologia do texto anterior e pela paródia, ao subverter essa ideologia. Essa subversão faz da Paródia o discurso modelar do pós-modernismo. Segundo Hutcheon (1988):

“o pós-modernismo é um empreendimento fundamentalmente contraditório: ao mesmo tempo, suas formas de arte (e sua teoria) usam e abusam, estabelecem e depois desestabilizam a convenção de maneira paródica, apontando(...) para sua re-interpretação crítica ou irônica, em relação à arte do passado”.

    Do ponto de vista estritamente lingüístico, a intertextualidade parodística caracteriza-se por ser um discurso de descentramento, pois opera uma inversão e um deslocamento ao representar uma relação assimétrica entre o signo e a coisa significada. O discurso deixa de ser centrado no código, retoma a tradição escrita, mas dela se afasta procurando uma nova sintaxe. Assim, ao contrário da “mimesis”, que é a linguagem do “mesmo”, porque reproduz a realidade de maneira simétrica, a paródia é a linguagem do “outro”, pois transforma o real e assume um caráter de inversão. A linguagem parodística é uma tomada de consciência crítica que busca criar uma nova e diferente maneira de ler o convencional. Essa apropriação está na própria origem etimológica de paródia; do grego “para - ode”, que significa uma ode que perverte o sentido da outra; era um contracanto de poemas cantados.
     A linguagem parodística é, em última análise, um discurso da libertação; é uma tomada de consciência crítica que busca criar uma nova e diferente maneira de ler o convencional. A paródia torna-se, portanto, a arquitetura discursiva do pós-modernismo, pois se caracteriza pela subversão, ruptura, insubordinação, ambigüidade, ironia, desconstrução, transgressão, descentramento e revelação. A paródia estabelece, assim, uma relação dialógica entre a identificação e a distância, pois é capaz de desvelar a ideologia e subvertê-la.
     Outro fator importante na conceituação de paródia é a questão da apropriação. Segundo Romano de Sant’Anna (1988), o que caracteriza a apropriação é a dessacralização da obra anterior, que será agora transformada em simples material para ser reproduzida de forma satírica.
 Bakhtin (1970), ao analisar a Poética de Dostoievski, mostra a semelhança dos diversos rituais carnavalescos com a paródia. Segundo ele, estes rituais comungam de certas características que estão presentes na paródia, como a linguagem simbólica e o caráter de ritual entre outros. Mas a particularidade mais evidente entre os rituais carnavalescos e a paródia é a que Bakhtin denomina de “vie à l’envers”, “un monde à l envers”. Todas as posições hierárquicas são invertidas, assim como ocorre uma inversão de toda ordem social: as distâncias sociais são abolidas em favor de uma atitude carnavalesca de contatos sociais livres e familiares. Rompem-se as barreiras do código de valores institucionalizados e instala-se uma nova ordem, as “mésalliances”, que são um tipo especial de alianças carnavalescas que aproximam o sagrado e o profano, o sublime e o insignificante, o rico e o pobre, a linguagem culta e a vulgar, etc... Outro aspecto importante na carnavalização presente na paródia é a “in-détronisation” ou seja: a ambivalência do ritual onde ocorre, ao mesmo tempo, uma destruição do símbolo e uma regeneração deste mesmo símbolo sob uma nova perspectiva.É um renascimento do símbolo às avessas. A natureza carnavalesca da paródia remonta à antigüidade clássica, mas é na Idade Média que a paródia se instala, as festas religiosas ganham um caráter carnavalesco ao serem levadas para a praça pública. Essa visão dupla do homem medieval em relação à religião permanece até nossos dias e o folclore e o carnaval no Brasil retratam muito bem essa postura.


• A leitura dos Textos Parodísticos

     Na leitura e análise dos textos parodísticos, há a retomada das idéias de um texto anterior, com o objetivo de subvertê-las. Rompe-se com a ideologia presente no texto original, por meio de recursos como o humor, a ironia, a crítica e o deboche. O discurso da paródia visa à possibilidade de se construir uma leitura crítica de uma idéia ou fato tradicionalmente aceitos, daí ser esta linguagem um discurso da libertação; é uma leitura ‘às avessas’ do texto anterior que lhe serviu de inspiração, buscando, assim, criar uma nova e diferente maneira de ler o convencional.
     É importante que o professor ressalte o aspecto intertextual do texto e construa perguntas que salientem as diferentes perspectivas dos textos originais e das paródias. É fundamental que a metodologia proposta para suas aulas se organize em torno dessa desconstrução, pois, além de desenvolver uma atitude crítica em relação a comportamentos já cristalizados, o professor terá a oportunidade de construir, com os alunos, inúmeros diálogos entre os diversos textos, como veremos a seguir.

1- O Pecado - Bíblia Sagrada - Círculo do livro
A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. Ela disse à mulher: é verdade que Deus vos disse: “não comais de nenhuma fruta das árvores do jardim”. E a mulher respondeu à serpente. Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus nos disse: “não comais dele nem sequer o toqueis, do contrário morrereis”. A serpente replicou à mulher: “de modo algum morrereis. É que Deus sabe no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”.

Paródia- Adama e Evo- Millôr Fernandes - Isto É 100589
“Quando viu que Adama e Evo tinham comido a expressamente proibida maçã da árvore da Ciência do Bem e do Mal, foi assim que o Senhor falou: “Pois de agora em diante ireis ganhar o pão com o suor do vosso rosto e tereis de sair aí da zona sul e ir morar a leste do Éden, sem parques floridos, nem reservas florestais, sem cascatas no pátio, nem borboletas no closet. E vossa habitação será limitada ao uso que, fareis dela, praticamente senzala de vossos corpos. Mas esse não é o castigo. O castigo é que vossos corpos se reproduzirão automaticamente, ao menor contato, tereis filhos, esses filhos botarão os pés cheios de lama no sofá de vinil, comprado em dez prestações, rasgarão as cortinas, riscarão as paredes como aprenderam a fazer na escola permissiva, quebrarão as vidraças ensaiando futuros protestos estudantis, entupirão os ralos da pias, berrarão dia e noite azucrinando a vossa paciência, e nunca puxarão a descarga depois de fazerem cocô na privada.”

Análise:
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    O segundo texto parodia o primeiro trazendo uma visão mais relativizada e menos dogmática do que seja o pecado original. De forma bem humorada, o autor desloca o foco do problema (o pecado) para o contexto atual. A paródia usa de recursos estilísticos para intensificar seu caráter de transgressão e revelar sua natureza irônica. Nesse texto, o autor mistura o estilo formal e cerimonioso da Bíblia por meio do uso da 2º pessoa com uma linguagem informal do cotidiano: “Vos fareis” “botarão os pés”. É um processo de carnavalização, no qual o autor dá um caráter profano ao texto bíblico.

2- Gênesis- Cap. I vers. 28-Bíblia Sagrada.
  
      “E Deus criou o homem à sua imagem e semelhança”.
            

Paródia: Solidariedade – Murilo Mendes, Poesia completa e prosa. Rio, Nova Aguilar, 1994 p. 2056.

“Sou ligado pela herança do espírito e do sangue
ao mártir, ao assassino, ao anarquista,
Sou ligado
aos casais na terra e no mar,
ao vendeiro da esquina,
ao padre, ao mendigo, à mulher da vida,
ao mecânico, ao poeta, ao soldado,
ao santo e ao demônio,
Construídos a minha imagem e semelhança”

Análise:
Segundo o cap. I vers. 28 do Gênesis, Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, daí porque somos todos iguais e filhos de Deus. O texto bíblico é dessacralizado neste poema de Murilo Mendes. O poeta questiona, colocando como ‘eu lírico’ o próprio Deus que se questiona: será que todos são feitos à minha imagem e semelhança? Ou só os corretos, os puros e os tementes a Deus? Como ficariam os párias, os assassinos, os demoníacos, os prostituídos? Enfim, o poeta questiona o que diz a Bíblia, ao incluir os desajustados em seu texto: ou todos, sem exceção, são feitos à imagem e semelhança de Deus, ou o texto bíblico se contradiz.

 


3- Meus oito anos- Casimiro de Abreu

Ah que saudades que eu tenho
 da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais
Que amor, que sonho, que flores
Naquelas tardes fagueira

A sombras das bananeiras,
Debaixo dos laranjais.
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
Respira a alma a inocência
como perfumes a flor,
O mar é lago sereno,
O céu, um manto azulado,
O mundo,um sonho dourado,
A vida,um hino de amor!
(..........................)
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas.
Trepava a tirar mangas,
Brincava à beira do mar.
Rezava as Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!


 Doze anos

Chico Buarque


Ai, que saudades que eu tenho
Dos meus doze anos
Que saudade ingrata
Dar banda por aí
Fazendo grande  planos
E chutando lata.
Trocando figurinha
Matando passarinho
Colecionando minhoca
Jogando muito botão
Rodopiando pião
Fazendo troca-troca.
Ai que saudades que eu tenho
Duma travessura
O futebol de rua
Sair pulando o muro
Olhando fechadura
 E vendo mulher nua
Comendo fruta no pé
Chupando picolé
Pé-de-moleque, paçoca,
E, disputando troféu,
Guerra de pipa no céu
Concurso de piroca.

 


Análise:
    A temática dos dois textos é a mesma: a infância. No entanto, as figuras usadas para caracterizar essa infância são diametralmente opostas nos dois textos. Enquanto Casimiro constrói imagens de pureza e ingenuidade, Chico Buarque, ao contrário, desmistifica a infância pura e ingênua retratada por Casimiro, trazendo para seu texto aspectos da vida real de qualquer pré-adolescente. Em Casimiro, a infância é estática, e não um momento de descobertas. Já Chico Buarque, propositalmente, transfere os oito anos para 12 anos, para um momento de descobertas, principalmente da sexualidade. Aquela criança angelical descrita por Casimiro de Abreu transforma-se, no texto de Chico Buarque, em um pequeno diabinho travesso. Chico Buarque fez, portanto, uma paródia do texto ingênuo e romântico de Casimiro, mostrando seu avesso, uma criança real. Chico   critica e ironiza  a visão extremamente simplista construída pelo poeta.. É, novamente, o processo de carnavalização, que mostra seu avesso, uma releitura de desvendamento que a paródia propicia.


4-Terezinha de Jesus (cantiga de roda):
              
Terezinha de Jesus
De uma queda foi ao chão.
Acudiram três cavalheiros
Todos três chapéu na mão.
O primeiro foi seu pai
O segundo seu irmão
O terceiro foi aquele
Que Teresa deu a mão.
Quanta laranja madura
Quanta lima pelo chão
Quanto sangue derramado
Dentro do meu coração


Paródia-Terezinha - Chico Buarque

 O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio
Me chamava de rainha
Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava nada
E assustada eu disse não.
O Segundo me chegou
 como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
 
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida
Me encontrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada
E assustada eu disse não.
O Terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração


Análise:
O primeiro texto caracteriza-se pelo ocultamento do aspecto sexual da mulher e apresenta-se como uma canção infantil de roda. Os elementos sexuais aparecem camuflados na cantiga, como “o terceiro foi aquele que Teresa deu a mão” “quanto sangue derramado dentro do meu coração”.  Estes elementos implícitos são revelados na paródia de Chico Buarque de Holanda, que propõe o desvendamento do processo de amadurecimento sexual da mulher, caracterizados aí, primeiramente por sua relação edipiana com o pai e com o irmão, já o terceiro, que ela nem sequer conhece, estabelece com ela uma relação sexual madura e verdadeiramente erótica. O poeta vai criando pistas no decorrer da músicapoesia para o desvendamento da máscara social, da “persona”, e constrói, dessa forma, o caminho para o sujeito.  O primeiro foi seu pai: florista, bicho de pelúcia, broche de ametista. O segundo seu irmão: vasculhava sua gaveta, a chamava de perdida O terceiro seu amante: se deitou em minha cama, me chama de mulher. Completa aqui o círculo do amadurecimento afetivo e sexual da mulher.

 

• Considerações finais

     Sabemos que a leitura implica, ao mesmo tempo, a competência formal e a política e que, nesse quadro, também a escrita representa a realização da autonomia do sujeito que encontra na leitura não apenas a maneira  de ver ou de realizar o armazenamento passivo das informações, mas também a demonstração concreta de que é possível aprender a pensar para compreender melhor o mundo que o cerca. E para que a leitura  frutifique na devida competência e na devida cidadania, precisa da reflexão, da desconstrução, da  ironia, da consciência crítica e da ruptura com o convencional, pois são essas aberturas que levarão o aluno a desenvolver sua própria redação, sua criatividade, enfim, a produção de um outro texto: o texto do próprio leitor.
     É urgente, portanto, superar a passividade que domina a sala-de-aula e buscar na leitura o seu impacto, fazendo o aluno compreender o contexto sócio-histórico em que está inserido, para que, ao fazer parte da construção da leitura, faça parte da construção da sua própria identidade social. Só assim ele poderá apresentar-se com competência própria, realizando-se como sujeito ativo, crítico e participativo.
   Além disso, é necessário considerar que a escola, infelizmente, vem cumprindo com a tarefa de homogeneizar o aluno-leitor, neutralizando as contradições que emanam dos conflitos sociais e psicológicos. Nossa proposta é, justamente, de instaurar o “conflito” na aparente neutralidade, através de uma escola que se proponha transformadora e que possibilite ao educando refletir, sem mascaramentos, as profundas desigualdades e transformações sociais. Cremos que o real aprendizado da leitura depende, com certeza, da transformação dos paradigmas que vigoram  até hoje em muitas escolas brasileiras. Torna-se, assim, urgente colocar em prática metodologias que vejam a leitura como um processo de construção, reflexão e crítica, com vistas ao estabelecimento de uma política de educação em língua materna mais democrática e mais efetiva em nosso país.


• Referências bibliográficas

1992.
BORTONE, M.E. O discurso da insubordinação. In: ______(org.) Linguagens e educação. São Paulo, Universidade de Uberaba Cone Sul, 13-59, 2000.
CITELLI, Adilson.  Linguagem e Persuasão. S. Paulo: Ática, 1995.
FIORIN, J.L. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 1992.
__________.  Linguagem e ideologia. S. Paulo: Ática, 1990.
FOUCAULT, Michel.  A arqueologia do saber. São Paulo: Forense Universitária. 1995.
________________.  A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola. 1996.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana, Danças, Piruetas e mascaradas, Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes. 1993.
ORLANDI, Eni P. Discurso & Leitura. São Paulo: Cortez e Unicamp. 1988.
SANTANNA, Affonso R. de.  Paródia, paráfrase & Cia. São Paulo: Ática. 1991.
SILVA, Tomaz T. da.(org). Teoria educacional crítica em tempos pós-modernos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
VOGT, Carlos.  Linguagem, pragmática e ideologia. São Paulo: Hucitec. 1989.

 

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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