Mas cabe aqui uma observação. Às vezes uma pessoa reconhece que a situação é formal, dispõe-se a monitorar-se, mas lhe faltam recursos comunicativos próprios da fala monitorada. É por isso que a escola precisa empenhar-se na ampliação dos recursos comunicativos dos alunos. Dispondo de uma gama mais ampla de recursos comunicativos, os alunos, sempre que precisarem, saberão monitorar sua fala, ajustando-se às expectativas de seus interlocutores e às normas sociais que determinam como as pessoas devem comportar-se em cada situação. Ao fazer isso estão seguindo normas sociais e serão bem recebidos pelos seus interlocutores.        Temos ainda de nos lembrar  de que as normas sociais que definem um comportamento linguístico adequado podem ser implícitas, isto é, fazem parte das crenças e dos valores que as pessoas têm. Mas podem ser explícitas também. É o caso das normas gramaticais. Convém ainda ponderar que as gramáticas normativas não admitem flexibilidade. Não levam em conta a noção de adequação. São prescritivas: abonam uma forma considerada correta e rejeitam as que são consideradas erro. Neste texto não estamos trabalhando com essa postura prescritivista. Vemos os usos da língua sempre em função de sua adequação à situação de fala.

 

 

 Tendo esclarecido por que qualquer falante precisa dispor de amplos recursos comunicativos, vamos refletir sobre a fala dos alunos que comentaram a peça “Pluft o fantasminha”. Começamos com a fala de Daniel: “É pra mim começar a falar, professora?”. Você sabe que essa estrutura sintática, muito usada pelas crianças, é considerada errada pela gramática normativa e não é bem recebida em situações que exigem uma fala monitorada. Argumenta a gramática que o pronomemim”, por ser um pronome pessoal oblíquo, não pode exercer a função de sujeito e recomenda que nessas construções seja usado um pronome reto: “É para eu começar a falar, professora?”. Depois da preposiçãopara”, ou qualquer outra preposição, usamos os chamados pronomes oblíquos: “para mim”; “sem mim”; “por mim”; “para ti”; “sem ti” etc. No entanto, os gramáticos normativos rejeitam o emprego desses pronomes oblíquos quando eles são seguidos de um verbo no infinitivo, alegando que, naquela posição, tem de ocorrer o pronome reto, que exerce a função de sujeito.[1] A escola e a sociedade brasileira acataram muito fielmente o que os gramáticos disseram a esse respeito. Por isso é comum ouvirmos diálogos como este entre mãe e filho pequeno, por exemplo:  

 

  FilhoMamãe, é pra mim dormir cedo?

  MãeMim não dorme, você tem de falar: É pra eu dormir cedo?  E é pra você dormir cedo, sim. Amanhã tem aula.

 

 Crianças pequenas ainda não se familiarizaram com essa exigência gramatical, por isso usam enunciados como o que Daniel usou com a professora. Sempre que os professores ouvirem enunciados como esse, devem sugerir ao seu aluno que troque o pronomemimpelo pronomeeu”, mas essa substituição deverá ser feita quando ao pronome se seguir um verbo no infinitivo. Veja mais um exemplo nestes versos da música. “Meninacantada por Netinho.

   Te carreguei no colo, menina

     Cantei pra ti dormir.”

Onde o autor da canção usou o pronome “ti”, a gramática normativa recomenda que fosse usado o pronome do caso reto: “Cantei para tu dormires”.

       Continuemos a refletir sobre as características na fala das crianças conversando com a professora. Vejamos esta fala do André (A3):

Eu gostei muito quando os amigos da menina começou a procurar ela. Um tava carreganu uma vela, otro tava com uma garrafa e o otro com um mapa.”

       Veja “que André falou: “.os amigos da menina começou a procurar ela.” Essa construção é muito comum no português do Brasil. Mas, se for empregada em uma situação em que os participantes têm a expectativa de ouvir uma linguagem monitorada, seria mal recebida. Por quê? Porque existe uma regra gramatical que nos mandaconcordar” o predicado com o sujeito. Se o sujeito está no plural, o predicado que está relacionado com ele também tem de vir no plural. Como “os amigos da menina” é o sujeito e está no plural, o verbo do predicado também tem de estar no plural: “Eu gostei muito quando os amigos da menina começaram a procurar ela”.Na nossa linguagem não-monitorada tendemos muito a não fazer essa concordância, especialmente quando o verbo está longe do sujeito ou o sujeito vem depois do verbo.  Assim: “Chegou uns pacotes pra você”.

     Os pesquisadores que vêm estudando a concordância verbal como uma regra variável nos mostram que a concordância do verbo com o sujeito plural na terceira pessoa é mais frequente quando o sujeito é animado eou humano, vem imediatamente antes do verbo e quando a forma do verbo na terceira pessoa do singular e do plural são bem diferentes. Por exemplo: “ele dá; eles dão”, “ele é; eles são”[2].

 

                               É importante que os professores, à medida que se tornam pesquisadores de sua própria prática, comecem a prestar atenção no modo como eles próprios, seus colegas, amigos, familiares e alunos usam a concordância do verbo com o sujeito na terceira pessoa do plural, falando ou escrevendo. (Cf. Bortoni-Riardo, 2008)

 

 

Voltemos nossa atenção à fala da menina Tatiana:

 

A2-  Era João, Julião e Sebastião. E ele olhô na garrafa pensanu que era uma luneta e ele falô: tô venu uma casa perdida na areia branca. o otro falô que eles precisavu encontrar ela. E eles começaru a cantar. Ele falô: pobre Maribel. E o otro falô:a gente precisamu salvar a neta do grande capitão Bonança.

 

Há muito o que comentar nessa fala, mas por enquanto vamos nos deter no trechinho:

 

“a gente precisamu salvar a neta do grande capitão Bonança.”

 

       Muito frequentemente as crianças usam o pronome “a gente” acompanhado de um verbo flexionado na primeira pessoa do plural como a Tatiana usou. Esse pronome “a gente” é muito comum no português brasileiro contemporâneo  e substitui, às vezes, o pronome “eu” e às vezes o pronome “nós”. (Omena, 1996) Mas, equivalendo à primeira pessoa do singular – “eu”, ou à primeira pessoa do plural “nós”, a forma “ a gente” concorda, segundo a gramática normativa,   com o verbo na terceira pessoa do singular: “a gente faz e acontece”. Os professores têm de ficar alerta para o emprego da forma “a gente” pelos seus alunos, observando como fazem a concordância, especialmente na educação infantil e no primeiro ciclo do ensino fundamental.

       Vamos voltar agora à fala de André: “Eu gostei muito quando os amigos da menina começou a procurá ela.”

     Além da concordância verbal que acabamos de mencionar, há mais uma característica nesse enunciado que o tornaria mal recebido numa situação em que os participantes têm expectativa de que seja usada uma linguagem muito monitorada. Trata-se do emprego do pronomeelacomo objeto direto (“procurá ela”). Na nossa linguagem não-monitorada tendemos a usar os pronomes “ele-ela; eles-elas”, que geralmente funcionam como pronomes sujeito, na função de objeto direto, em lugar dos pronomes oblíquos átonos “o”, “a”, “os”, “as” (“procurá-la”). Esses pronomes oblíquos átonos de terceira pessoa, quando não são pronunciados agregados a um l, como em “procurá-la” ou a um n, como em “ouviram-na” são pouco perceptíveis. Observe-se que em: “Ele machucou-a assim” o pronome “a” fica pouco perceptível. Por isso tendemos no português brasileiro a empregar os pronomes “ele”, “ela” em qualquer função: “Ele machucou ela assim”. Estamos vendo que essas duas frases são variantes da regra de variação do pronome pessoal de terceira pessoa. Embora seja muito empregado o chamado pronome sujeito com função de objeto direto, essa variante não é bem recebida quando estamos escrevendo ou monitorando nossa fala. Vamos refletir um pouco mais sobre isso.

       Vemos a seguir alguns diálogos em que aparecem variantes da regra variável de emprego dos pronomes de terceira pessoa. Algumas dessas variantes parecem mais aceitáveis numa interação formal do que outras.

 

1) Diálogo entre uma senhora e o vendedor na farmácia:

Senhora - O senhor tem aspirina?

Vendedor - Temos de marca e genérico. A senhora vai levá-la?

SenhoraNão. Não vou comprar agora não. Levo depois.

 

Esse diálogo seria perfeitamente adequado numa interação formal. O vendedor usou a variante de prestígio da regra variável, que é o pronome objeto (“vai levá-la”). Na última fala da compradora ela omitiu o objeto direto. Não usou nem o pronome sujeitoelanem o pronome objeto “a” ou “la”. Poderia ter dito: “Não vou comprá-la agora nãoou entãoNão vou comprar ela agora não”. Também poderia ter usado um pronome em “Levo depois”. Assim: “Levo ela depoisou “Levo-a depois”. Ao optar por omitir o pronome, evitou usar “Levo ela depois”, que poderia ser mal recebido, dependendo das expectativas de seu interlocutor e “Levo-a depois”, que não é uma construção muito comum no português oral do Brasil. Muitas vezes nós preferimos omitir o pronome objeto para não ter de produzir um enunciado que pode não ser muito bem recebido. Quando optamos por omitir o pronome, os especialistas dizem que estamos usando a variante do objeto nulo dessa regra variável ( Tarallo, F. e Duarte, M.E, 1988). Observe que a omissão do pronome não cria dificuldade na comunicação porque o nosso interlocutor sabe pelo contexto a que estamos nos referindo.

 

2) Diálogo entre dois palhaços no circo:

Palhaço 1 – Você viu o macaco?

Palhaço 2 – Eu vi ele subindo no trapézio.

 

Nesse diálogo o Palhaço 2 usou o pronome sujeitoeleem função de objeto direto. Poderia também ter dito: “Eu o vi subindo no trapézio”, mas preferiu usar o pronomeelepara tornar seu enunciado mais compreensível. Veja que emEu vi ele subindo no trapézio” o pronomeele” está exercendo a função de objeto direto do verbover” e de sujeito do verbosubir”. Por isso construções como essas são mais bem recebidas do que construções em que os pronomeseleouelasomente estão exercendo função de objeto, como emEu vi ele”.

 

3) Diálogo entre uma cliente e um caixa de banco:

Cliente – Quero fazer um depósito em cheque.

CaixaMe ele aqui para eu ver se é desta praça.

Cliente – Acho que deixei ele na bolsa dentro do carro.

Caixa – A senhora pode ir buscar ela que eu espero.

 

Nesse exemplo temos três empregos do pronome sujeito em função de objeto direto. Nenhum desses enunciados é adequado para uso na linguagem formal escrita ou na linguagem oral monitorada.

       Vejamos agora outros exemplos da variação do pronome de terceira pessoa em poemas escritos para crianças.

 

Nos seguintes versos[3] de poemas de Vinícius de Moraes os nomes ou pronomes sublinhados estão exercendo função de objeto direto. Os professores podem levar  poemas como esses a sua sala de aula e mostrar a seus alunos como os objetos diretos podem ser preenchidos com substantivos precedidos ou não de artigo ou com pronomes de terceira pessoa, na variante de pronome sujeito ou de pronome objeto. Essa será uma boa oportunidade para que os alunos avaliem quais variantes serão mais bem recebidas na escrita e na fala monitorada e quais são mais adequadas para uma fala coloquial.

          

                  

                   O pato pateta

       Pintou o caneco

             Surrou a galinha

             Bateu no marreco.

 

             

            Quer ver a foca

            Fazer uma briga?

            É espetar ela bem na barriga.       

 

      

       Quem matou o pintainho?

            Eu, disse o pato.

            Quem viu ele morto?

       Eu, disse o mocho

            Com meu olho torto

            Eu vi ele morto.

 

      

Vamos agora retomar nossa conversa sobre a fala dos alunos Daniel, Tatiana e André com a Professora.       Veja essa resposta que Tatiana deu à Professora.

       P-  Muito bem, André! Quem se lembra dos nomes deles?

A2-  Era João, Julião e Sebastião. E ele olhô na garrafa pensanu que era uma luneta e ele falô: tô venu uma casa perdida na areia branca. o otro falô que eles precisavu encontrar ela. E eles começaru a cantar. Ele falô: pobre Maribel. E o otro falô: a gente precisamu salvar a neta do grande capitão Bonança.

 

 

       Observem que a aluna se referiu aos nomes dos três marinheiros e em seguida empregou o pronomeele” duas vezes e o pronomeoutrotambém duas vezes. Quando usamos os pronomes pessoais de terceira pessoa (ele-ela, eles-elas) ou os pronomes demonstrativos “ o outro”, “ a outra”, “um”, etc

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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