Artigos

Criador de Charlie Brown teve uma vida de melancolia

REUTERS ; JB online

SÃO PAULO - Descanse em paz, Charles Schulz. O criador da tirinha de Charlie Brown e Snoopy era um homem tímido e solitário que usou seus desenhos de traços infantis para descrever uma vida de profunda melancolia, de acordo com uma nova e controversa biografia.

O livro é baseado em seis anos de pesquisa, acesso ilimitado a documentos da família, mais de 200 entrevistas e uma leitura detalhada das 17.897 tirinhas que Schulz criou. A biografia mostra Schulz como um homem que se sentiu invisível e mal-amado, mesmo que seus leitores somassem centenas de milhões de pessoas.

O biógrafo David Michaelis, autor de Schulz & Peanuts, disse que o cartunista também era um homem que não esquecia nem perdoava nenhuma bobagem ou momento solitário.

Por nenhum momento ele acreditou que a felicidade é um cachorrinho caloroso —ele não deve ter acreditado em felicidade em geral.

- Ele acreditava que era impossível criar uma tira de história em quadrinhos alegre e gostava de dizer que a felicidade é uma canção triste - disse Michaelis em recente entrevista.

A família do cartunista disse que está muito triste com a biografia de 655 páginas de Schulz, que morreu em 2000, aos 77 anos, e disse que não reconhece o homem retratado no livro.

Seu filho Monte Schulz disse à revista Newsweek: - Por que todos nós (os filhos) nos reuniríamos ao pé de sua cama por três meses se não sentíssemos um afeto imenso por ele?

- Se soubéssemos que era esse o livro que Davis ia escrever, não teríamos falado com ele.

Mas eles falaram com Michaelis e o escritor defende sua pesquisa.

- Charles Schulz era um homem engraçado, caloroso e charmoso, com um grande senso de calma e decência. Mas ele também se sentiu solitário, mal-compreendido e infeliz por toda a vida - disse.

 

Categoria pai: Seção - Notícias

José Carlos de Almeida Azevedo
PhD em física pelo MIT, foi reitor da UnB

Correio Braziliense

O Senado Federal instituiu cotas para negros e pardos nos concursos públicos, nas universidades e nos contratos de financiamento estudantil; 20 anos antes, surgiram nos EUA as “ações afirmativas” que autorizaram intervenções governamentais para garantir os direitos de vítimas do preconceito racial.

A figura importante do movimento pela igualdade racial nos EUA foi Martin Luther King, Prêmio Nobel da Paz de 1964 e assassinado em 1968. Mas o marco principal foi a matrícula dos estudantes negros Vivian Malone e James Hood na ebúrnea Universidade do Alabama, quando a discriminação era generalizada nos EUA e obrigava os negros a se acomodarem na parte de trás de veículos de transporte coletivo e a cederem lugar aos brancos quando não houvesse outros vazios.

As matrículas foram negadas pelo então racista George Wallace, governador do Alabama. Ao saber disso, o presidente Kennedy determinou ao seu irmão Robert, procurador-geral, que ordenasse a aceitação. Kennedy enviou o seu subprocurador Nicholas Katzenbach para o Alabama no mesmo dia 11 de junho de 1963, onde foi recebido por uma multidão de racistas e red necks que formaram um corredor humano para impedir o seu acesso à entrada da universidade, onde se postou o governador, protegido pela polícia estadual.

Sob vaias e gritarias, Katzenbach, os dois alunos e procuradores federais passaram pelo longo corredor e chegaram ao governador, que recusou as matrículas alegando que a Constituição Federal lhe dava direito a decidir tudo o que envolvesse as escolas e universidades de seu estado. Imediatamente, o presidente Kennedy federalizou a Guarda Nacional do Alabama e as matrículas foram feitas. Wallace foi reeleito governador cinco vezes e candidato a presidente dos EUA outras quatro. Sofreu um atentado a bala, ficou paraplégico, faleceu em 1998 e, bem antes de morrer, renunciou publicamente ao racismo e pediu desculpas aos líderes negros do movimento por direitos civis.

Nos EUA, as ações afirmativas reavivaram os preconceitos raciais e criaram dificuldades de emprego para os beneficiados pelo sistema de cotas porque não comprovaram capacidade para competir. Em 1978, a Corte Suprema dos EUA declarou a inconstitucionalidade desse sistema porque feria o princípio da igualdade; atualmente, a sociedade norte-americana busca eliminar todos os conceitos de raça e criar diversas associações para esse fim. (Ver www.multiracial.comaboltionist)

Os dicionários etimológicos da língua portuguesa não revelam a origem da palavra raça e o Oxford English Dictionary diz que ela é desconhecida. Não há critério científico para separar a humanidade em raças. Sob a ótica da biologia, dois integrantes de um mesmo grupo étnico podem ser mais diferentes entre eles que qualquer um deles em relação ao de outro grupo. A espécie humana tem origem comum, o Homo sapiens que saiu da África há centenas de milhares de anos, e parece certo dizer que todos os vertebrados descendem do minúsculo Pikaia gracilens, que existiu há uns 500 milhões de anos.

Com fina ironia, o sr. Carlos Moura, presidente da Fundação Palmares, deu um critério para identificar quem é ou não negro: “Em caso de dúvida, é só chamar a polícia que ela sempre sabe”. Fez melhor que o antigo secretário nacional de Direitos Humanos de Fernando Henrique Cardoso, P.S. Pinheiro, entusiasta do sistema de cotas: “Não dá para exigir teste de sangue e exame cromático da epiderme, quando a preocupação é reparar injustiças seculares”. Para ele, talvez, os negros não têm glóbulos vermelhos, têm cubos pretos. E bem melhor que Darcy Ribeiro que, em seu livro O mulo, diz que “negro tem que saber seu lugar” e “raça de preto é como raça de jegue”.

O preconceito racial é fruto da ignorância porque a espécie humana é uma só. O conceito de raça surgiu apenas no século 19, com J.A. de Gobineau, e seu desastrado livro Essai sur l´inegalité des races humaines serviu a fins políticos e econômicos baseados no racismo. A frase “política é biologia experimental” foi sempre repetida por Hitler e o levou a massacrar judeus na Europa com a brutal “limpeza étnica” e motivou os recentes e abomináveis extermínios de muçulmanos na Bósnia e de negros em Ruanda.

Em seu brilhante livro The great human diasporas. The history of diversity and evolution, o competente geneticista L. L.Cavalli-Sforza disse que “a idéia de raça na espécie humana não serve a nenhum propósito. A estrutura das populações humanas é extremamente complexa e muda de área para área; há sempre nuanças derivadas da migração contínua, dentro e fora de cada nação, o que torna impossíveis quaisquer distinções”. À falta do que fazer, políticos e burocratas criaram por lei o preconceito racial no Brasil.

 

Categoria pai: Seção - Notícias
Confira a introdução do Folha Explica Chico Buarque:

Não é preciso insistir na importância de Chico Buarque para a cultura brasileira. Ninguém duvida dela. Sua atividade como artista, que se estende por quatro décadas e segue muito afiada, já legou ao país uma obra muito extensa e diversificada, mas ao mesmo tempo muito coesa e coerente. As dificuldades de quem pretende se aproximar dela começam por aí: como puxar o fio que a atravessa do início ao fim sem desdenhar suas complexidades, suas modulações, suas sutilezas, suas variações no tempo?

De nenhum outro compositor ou escritor contemporâneo talvez se possa dizer que a história do Brasil, de 1964 até hoje, passa por dentro de sua obra. É exatamente essa a sensação que nos transmite o contato com a criação de Chico. Ela não apenas registra a nossa história, como freqüentemente a revela para nós sob ângulos insuspeitados, amarrando e comunicando a experiência coletiva aos segredos e abismos da subjetividade de cada um. É o inconsciente do país que parece falar na rede simbólica que Chico nos estendeu ao longo dos anos.

Estas páginas não pretendem ser uma biografia, embora contenham elementos da vida do autor e se fixem em algumas passagens marcantes de sua trajetória. Não são, tampouco, uma análise de viés acadêmico. É curioso, aliás, notar como a universidade, no caso de Chico, tende a mimetizar as clivagens do mercado e a tratar sua obra de forma fragmentada - ou, melhor, fatiada. Fala-se muito em Chico e a política, Chico e o feminino, Chico e a malandragem.

Este livro foi pensado desde o início como um ensaio, uma tentativa parcial de interpretação do autor e de sua obra, sustentada por uma idéia que de alguma maneira organiza as demais. Seus termos estão elucidados já no primeiro capítulo: De Oscar a Sérgio: Utopia no Ar. Parte do país da bossa-nova e da construção de Brasília e volta à obra de Sérgio Buarque, pai do compositor, para definir os horizontes em que Chico se move. Ele surge para o país no momento seguinte ao golpe de 64, justamente quando desmorona a fantasia de uma civilização brasileira, tal como vinha sendo gestada e era visível no final dos anos 50. Na figura de Chico, a utopia do período anterior de alguma forma se mantém e se renova. Sua obra será ao mesmo tempo uma espécie de sismógrafo do seu desmoronamento.

O segundo capítulo, De Tom a Noel: Ilusões Perdidas, trata do início da carreira de Chico à luz do revés que representou 64. O autor da marchinha A Banda, a despeito da mitologia que se criou em torno de seu nome, mantinha uma relação complexa e desconfiada com a cultura de esquerda que prevaleceu no país até 68, quando foi solapada pelo AI-5.

Nem Toda Loucura É Genial dedica-se às relações conflituosas entre Chico e o tropicalismo, tema central dos embates culturais dos anos 60, sobre o qual pouco se discutiu para além do clima de Fla x Flu. O capítulo avança no tempo para mostrar como Chico e Caetano respondem de formas distintas aos mesmos problemas, desde então até hoje. Pode-se dizer que são duas visões do Brasil.

O capítulo 4, Generais, Malandros, Anti-Heróis, ocupa-se dos anos 70, quando o enfrentamento com o regime militar fixa uma imagem de Chico que de certa forma ecoa até hoje, mas que já naquela época era insuficiente para dar conta do que ele fazia.

Bye Bye, Brasil, na seqüência, procura revelar como Chico irá traduzir, ao longo dos anos 80, o sentimento de impotência e de desajuste diante do desmanche de um projeto histórico nacional e popular, o mesmo que o golpe havia abortado e que não pode ser mais retomado quando as forças que haviam sido derrotadas reaparecem em cena. A música que dá título ao capítulo, uma obra-prima, não deixa de ser também o avesso da profecia tropicalista. A expansão do lirismo, que assume nova dicção, e o distanciamento em relação à referência política são traços que distinguem a obra do compositor a partir dessa época.

Hora do Recreio é um respiro e uma homenagem ao futebol, ou, antes, à importância fundamental do futebol na vida de Chico. A canção que ele dedicou ao tema fala por si.

O último capítulo, Cidades Impossíveis, parte dos anos 90, quando os romances vêm introduzir uma grande novidade no conjunto de sua obra e já não se pode mais falar dele apenas como compositor. O contraponto entre as canções dos últimos discos e a literatura, ambas de um rigor formal incomum, cria uma tensão muito particular entre a imagem de um país inviável e a preservação da utopia pela mesma voz que canta o seu desaparecimento.

Não deixa de ser curioso que alguém tão consagrado esteja tão decididamente na contramão da cultura dominante e tão pouco à vontade com os ares do mundo.



Categoria pai: Seção - Notícias

Coube-me o honroso privilégio de saudar o eminente professor Cassiano Nunes nesta cerimônia em que a Universidade de Brasília lhe está outorgando o título de Doutor Honoris Causa. Começando por um chavão quase obrigatório em momentos como este, mas que, no meu caso, é absolutamente sincero, eu direi que não me considero a melhor pessoa para fazer tal saudação. Acredito que um colega ou uma autoridade mais ilustre poderia saudá-lo bem melhor do que eu. Falta-me o dom da oratória, qualidade tão importante em ocasiões solenes como esta. Contudo, que o destino me trouxe até aqui, e me pôs diante de vós, me resta dizer algumas palavras que estejam minimamente à altura do insígne homenageado.

            Cerimônias como esta, de outorga de título de Doutor Honoris Causa, trazem-me à mente uma frase do comediógrafo francês Molière. Em sua farsa As preciosas ridículas, ele pôs nos lábios de uma de suas personagens a seguinte deixa: “Les gens de qualité savent tout sans avoir jamais rien appris”,[i] que, em português, poderia ser traduzida por “As pessoas de qualidade sabem tudo sem jamais ter aprendido nada”. Trata-se, é óbvio, de um absurdo, mas de grande efeito cômico, que, se tomado ao da letra, propõe ser o saber algo ingênito, inato a alguns indivíduos especiais. Ocorrem-me, também, outras palavras. Desta feita, as do compositor da música popular brasileira, Noel Rosa. Em sua famosa cançãoFeitio de Oração”, feita de parceria com Vadico, declara ele queBatuque é um privilégio Ninguém aprende samba no colégio”, versos que sugerem a possibilidade de se adquirir o saber longe dos bancos escolares; no caso, o saber de compor sambas.

            Desse modo, e não obstante a deferência e a reverência contidas no título de Doutor Honoris Causa, ora concedido, estaríamos aqui reunidos apenas para reconhecer de direito ao professor Cassiano Nunes aquilo que ele, de fato, possui: o saber. Um saber que, se ele não o trouxe ingenitamente do berço, conquistou-o ao longo de seus 81 anos de idade na escola da vida.

Hiperbolicamente, dizia o ator e diretor de teatro Miroel Silveira ser Cassiano um desses indivíduos que dão a impressão de haver lido tudo, afirmação que nos remete de volta ao absurdo da deixa de Molière, porquanto, nem se Cassiano fosse imortal (O que ele de certo modo é, pois é membro da Academia Brasiliense de Letras, onde ocupa, desde 1981, a Cadeira Nº 30, cujo patrono é Monteiro Lobato),... repito: nem se Cassiano fosse imortal, ele conseguiria dar conta de ler todos os livros até hoje publicados. Mas se ele não leu todos os livros do mundo, certamente leu um grande número deles. Em verdade, Cassiano fez dos livros a sua razão de viver, e foi nos livros que encontrou o saber que hoje a Universidade de Brasília lhe reconhece. Em um pequeno aforismo de Grafitos nas nuvens, ele afirmou: “Leio; logo, aprendo.”[ii] E se Antônio Feliciano de Castilho achou, no século XIX, a felicidade pela agricultura, e se cada um de nós a procura no amor, na família, na vida profissional e até mesmo nos objetos materiais, Cassiano encontrou-a nos livros, motivo pelo qual deu a uma de suas coletâneas de ensaios o curioso título de A felicidade pela literatura. Essa paixão pelos livros levou-o a formar uma invejável biblioteca que, ionescamente, , ao longo dos anos, tomou conta dos principais cômodos de sua singela casa na Asa Sul. Em uma de suas conferências, Cassiano declarou:

 

Minha ligação com a Literatura, mais do que monogamia, constitui monomania. Vivo a Literatura em tempo integral: de manhã, de tarde, de noite. Na mocidade, naturalmente, tinha sonhos eróticos. Hoje, velho, vivo uma obsessão: todos os meus sonhos tratam exclusivamente de Literatura! Sonho que estou escrevendo, que estou publicando, que estou fazendo conferências... É claro que amo o Teatro, a Pintura, o Cinema e a própria vida, mas, no fim, tudo isto resulta ainda em matéria para a Literatura. Talvez eu não aceitasse nada disto, se não o convertesse em Literatura.[iii]

 

 

Não se deve pensar, entretanto, que Cassiano seja ou tenha sido avesso aos estudos acadêmicos. Pelo contrário: ele formou-se em Contabilidade no Ginásio Santista, dos Irmãos Maristas, e é Bacharel e Licenciado em Letras Anglo-Germânicas pela Universidade de São Paulo, estes últimos títulos obtidos em 1954 e 1955, respectivamente. E mais: não se dando por satisfeito, ele prosseguiu seu aprendizado, agora de pós-graduação (em um época em que tais estudos eram quase inexistentes entre nós), primeiro, nos Estados Unidos, na Miami University, onde se especializou em Literatura Norte-Americana, e, a seguir, na Alemanha, na Universidade de Heidelberg, onde se aperfeiçoou em Literatura Alemã.

Nos anos oitenta, Cassiano esteve para defender, uma tese de doutorado sobre a obra de Monteiro Lobato. Sou testemunha ocular de que, para isso, ele muito pesquisou e trabalhou. Apesar de ser uma pessoa de parcas ambições materiais, ele aspirava a escrever uma obra madura sobre a correspondência do criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Acredito que, ao começar essa empreitada, Cassiano não se tenha dado conta das dificuldades de trabalhar com material epistolar em um país onde as cartas estão perdidas no fundo das gavetas e dos baús, e, quando encontradas, nem sempre estão disponíveis aos estudiosos pelos mais diversos, e às vezes mesquinhos, motivos. Cassiano não conseguiu concluir sua tese antes que o prazo estipulado para a defesa expirasse. Mas essa tese existe de fato. Considerando-se tudo que publicou, nos últimos anos, acerca do escritor de Taubaté, bastar-lhe-ia reunir em um único volume todo esse material para que uma tese de doutorado se configurasse. Talvez tenha faltado a Cassiano um pouco mais de espírito prático. Talvez... Mas Cassiano é assim: meio desligado da vida prática. Ele nunca cobiçou mercenariamente o certificado, o diploma. Os que conquistou foram apenas o coroamento natural de um trabalho desinteressado. O que sempre buscou foi o conhecimento, o saber. Essa atitude fica evidente em um poema intitulado “Outro aniversário”, onde se lêem estes versos reveladores: “Após tantos estudos, aprendo a velhice. Curso difícil. Exercícios constantes de despojamento. [...] Curso sibilino, contudo aguardo prova e a-provação. (Dispensável o diploma.).”[iv]       

Pode parecer incongruente e dísparatado haver começado esta saudação citando e cotejando Molière e Noel Rosa, isto é, o que há de mais clássico no teatro francês e o que há de mais popular na música brasileira: o samba. Tal incongruência e disparate, em se tratando de Cassiano, não existem. Como Molière, ele é autor de quatro peças teatrais (Nada mudou, Sempre haverá anjos, As luvas de Ema e Plipaimundo no circo) e certamente teria feito uma vitoriosa carreira de dramaturgo se houvesse ficado em São Paulo, ao invés de transferir-se para Brasília; do mesmo modo, seguindo os passos de Noel, é autor de pelo menos dois sambas:  “Vem se queres” e “A ingrata Madalena”.

De fato, Cassiano Nunes sempre circulou nestes dois planos, opostos mas complementares: o erudito e o popular. Quem observar a sua produção literária, tanto a de ensaísta quanto a de poeta, constatará que os seus temas oscilam entre esses dois pólos. Cassiano interessa-se por refinados assuntos estéticos e literários com a mesma atenção que dedica aos pequenos ou grandes dramas da vida cotidiana. Os títulos dos seusopúsculos¾ a maneira que encontrou para divulgar rapidamente as suas idéias ¾, impressionam pela variedade e ecletismo. Com a mesma facilidade com que discorre sobre Machado de Assis, Cruz e Sousa, Lêdo Ivo, João Antônio, Cora Coralina, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Carlos Lacerda e muitos outros, Cassiano transcreve e comenta as Cartas do povo brasileiro ao Presidente, assim como, nos seus poemas, fala da bicicleta que não pode ter; de um hotel encardido de uma estrela, onde se hospedava quando ia a São Paulo; do jardim da humilde casa de Guimarães Rosa, em Cordisburgo; ou de um velho cão que encontrou, um dia, perto do Palácio do Planalto, quando trabalhava. Em seu poemaHistória”, ele revela:

 

Nunca amei a Beleza

por humildade.

Não a mereço, pensava.

Procurei, pois, o feio

em bairros encardidos.

Por sorte,

a poesia surgiu

e transfigurou tudo.

Silhuetas baças

toucaram-se de madrepérola.[v]

 

Com a mesma boa vontade, humildade e eloqüência com que falou para estudantes e doutores em universidades norte-americanas, alemãs, equatorianas, cubanas, cabo-verdianas, Cassiano Nunes fez palestras para alunos e professores das modestas escolas das cidades satélites do Distrito Federal. Não é pois retórica a afirmação que, de vez em quando, escapa de seus lábios: “Como Oswald de Andrade, já ‘falei na Sorbonne e no Sindicato dos Padeiros.’”[vi]

Cassiano chegou a Brasília, em 1966, para integrar o quadro docente da UnB, da qual se aposentou em 1991, ao completar 70 anos. Ele dedicou, por conseguinte, 25 anos de sua vida a esta Casa. Inquirido a respeito de sua carreira de magistério, Cassiano admite não ter um sido “um professor universitário representativo”.[vii] Ele se considera mais um intelectual, um escritor, que atuava ocasionalmente como professor. Ao iniciar o Curso de Letras, aos trinta anos de idade, Cassiano já tinha uma carreira de escritor de 14 anos, porquanto começou a publicar em 1937. Ele afirma haver se tornado professor para poder dedicar-se inteiramente à Literatura, transformando, assim, a sua já aqui aludida “monomania” pela Literatura em profissão. Esse autojulgamento de Cassiano sobre a sua vocação para o magistério é demasiado severo. Pelo contrário, eu diria ser ele um professor em tempo integral de 24 horas, um mestre no sentido que os orientais dão a esse termo, um mestre sempre disposto a compartilhar generosamente os seus conhecimentos. Quem tem o privilégio de com ele conversar, por mais informal de seja esse diálogo, sempre aprende alguma coisa. Ouvi-lo discorrer acerca das pessoas que conheceu e dos acontecimentos de que participou é sempre uma lição de vida, uma lição que prescinde da escola e pode ser ministrada e aprendida em qualquer lugar em que ele esteja, desde os corredores do Minhocão ao Bar Beiture, que ele costumava freqüentar.

A outorga do título de Doutor Honoris Causa pressupõe que o seu receptor tenha lutado em prol de alguma causa digna de admiração e encômios, tenha, de algum modo, contribuído para o bem-estar, o progresso e o aperfeiçoamento do ser humano. Qual teria sido, então, a causa defendida por Cassiano? A causa por ele defendida foi a sua razão de viver: a causa da Literatura. Ao longo de sua existência, ele não só estudou Literatura e produziu a sua própria obra literária, mas, enquanto professor, ensaísta, dramaturgo, jornalista, crítico de arte e poeta, divulgou a obra de vários escritores. Alguns nomes hoje consagrados foram por ele lançados no tempo em que selecionava textos para serem publicados pela Editora Saraiva. Desse modo, usando a arma da palavra, Cassiano muito contribuiu para a divulgação da literatura e da cultura nacionais no Brasil e no Exterior.

Cassiano é um idealista, um lutador e um grande defensor da cidade que o acolheu. Feito “cidadão honorário” de Brasília pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, em 1997, ele tem retribuindo essa acolhida, justificando a existência de Brasília e enfatizando o seu importante papel como ponte para o desenvolvimento da Região Centro-Oeste, em textos como Justificativa e defesa da cidade de Brasília e Impulso de Brasília à marcha para o Oeste. Digno de nota é também o fato de que, nos últimos anos, muitos de seus textos adquiriram um forte cunho social. Em diversos ensaios e poemas, Cassiano tem defendido, com veemência, o homem brasileiro da opressão e das injustiças contra ele praticadas. No eloqüente poema “Invasões”, ele escreveu estes versos angustiantes:

 

O país é tão vasto

mas o seu povo

não tem onde morar.

Sua gente se aterra

porque não tem terra!

Não há terra

onde essa planta

¾ o homem ¾

possa vicejar.

O Brasil

é um quase-continente

que cospe ou vomita

a sua gente.

[...]

Acaso chegou, pérfido,

o invasor estrangeiro?

Não. É um brasileiro

esmagando outro brasileiro.

Essa gente caída,

sofrida,

destemida,

não dá para ver?

Presta atenção

com emoção:

É o povo brasileiro

recusando-se a morrer...[viii]

           

O tempo que me foi concedido para esta saudação ao professor Cassiano Nunes já se esgota. Muita coisa ainda precisaria ser assinalada: por exemplo, que ele tem poemas traduzidos para outros idiomas, em particular o inglês; que algumas de suas poesias foram musicadas por compositores da envergadura de Emilio Terraza e Cláudio Santoro; que recebeu prêmios literários importantes, em particular os de Ensaio e Poesia da Academia Brasileira de Letras pelos livros Atualidade de Monteiro Lobato e Jornada, em 1883 e 1984, respectivamente. Tudo isso, e muito mais, ficará, entretanto, para outra oportunidade.

Nos últimos tempos, Cassiano Nunes tem andado um pouco abatido, resultado de problemas de saúde que bravamente vem enfrentando. Faço sinceros votos - e acredito estar falando por todos os seus amigos aqui presentes - de que ele se recupere logo e recobre a alegria de viver e a voz tonitruante que lhe são tão peculiares. Por ora, se olharmos no fundo dos seus olhos, ainda veremos o menino que, ávido de saber, nem o tempo, nem a vida, nem o próprio poeta conseguiram aniquilar. E assim, devolvendo-lhe, com as devidas alterações, os versos de “Assassinato do menino”, eu direi a Cassiano: “Para que o menino sobreviva e, resoluto possa dar nobre forma ao seu destino: é preciso preservar o homem”.[ix] E rebatendo as palavras da epígrafe desta saudação, eu também direi a Cassiano não ser verdade a afirmação de que tudo o que morrer com ele “em mais bela forma o mundo verá” e que tampouco lhe é necessário pedir que o perdoem “pela parcela mínima ¾ porém única! ¾ que não se repetirá.” E, finalmente, aproveitando um dito popular, eu ainda lhe direi: “Se você não existisse, querido amigo Cassiano, nós teríamos de inventar outro”.

Categoria pai: Seção - Notícias
Faleceu hoje, aos 85 anos, o grande ator brasileiro, Paulo Autran. Lembro-me de  como fiquei enlevada ao assistir com ele, na minha adolescência, dois grandes musicais: My Fair Lady e O homem de la Mancha
Categoria pai: Seção - Notícias

Pesquisar

PDF Banco de dados doutorado

Em 07 de Abril de 2025, chegamos a 2.719 downloads deste livro. 

:: Baixar PDF

A Odisseia Homero

Em 07 de Abril de 2025, chegamos a  8.585 downloads deste livro. 

:: Baixar PDF

:: Baixar o e-book para ler em seu Macintosh ou iPad

Uma palavra depois da outra


Crônicas para divulgação científica

Em 07 de abril de 2025, chegamos a 16.012 downloads deste livro.

:: Baixar PDF

:: Baixar o e-book para ler em seu Macintosh ou iPad

Novos Livros

 





Perfil

Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

Leia Mais

Publicações

Do Campo para a cidade

Acesse: