Adail, José Pacheco, colegas da CVL e a quem interessar possa
Não se trata de recuperar o método fônico tal como ele era utilizado no
passado ou, talvez, ainda seja usado alhures. Isso seria um absurdo.
Ninguém quer o Terteão sozinho de volta.
Mas também acreditar que só colocar a criança no meio dos livros, e esperar
que ela aprenda (construa) tudo sozinha; ficar conjecturando que ela está no
período pré-silábico, pós-silábico, sei lá, esperando que ela tome a
iniciativa, porque vê o pai ou a mãe lendo, que a criança refaça o
percurso que a humanidade fez para dominar a escrita, que o letramento
(seja lá o que se entenda por isso) leve a criança a adquirir o processo da
leitura e outras crenças esvaziadas que os devotos de Emilia Ferreiro têm
pregado há vinte neste país ... Tudo isso virou igualmente uma praga. E
muito difícil de combater porque o construtivismo ferreiriano está nos
documentos oficiais, nos PCNs da vida.
Outra coisa: demoniza-se a cartilha. Mesmo sabendo-se que muita gente, nós
mesmos, aprendemos a ler com ela. E quem foi que disse que precisa trazer
frases idiotas (A Naná dá na macaca). Lembro-me que minha filha foi
alfabetizada com uma cartilha bem interessante, que não trazia essas
baboseiras. Trazia frases perfeitamente plausíveis no discurso da criança. E
todo mundo sabia que aquilo era o início. A leitura mais significativa viria
depois, e de forma constante, todo dia, com textos diferentes. E não passar
duas semanas com uma quadrinha, como muita gente faz hoje em dia.
Acontece que esse tal de construtivismo mal digerido, distorcido, contribuiu
muito e ainda vem contribuindo para o chamado fracasso escolar. E não é só
na alfabetização não. O construtivismo como vem sendo entendido e posto em
prática nas nossas escolas, principalmente nas escolas públicas, está
destruindo o ensino. Está descaracterizando a escola, o trabalho do
professor, esvaziando os conteúdos, e outras mazelas mais, como essa coisa
que ninguém sabe o que é: o aprender a aprender. Muita gente acha que agora
quem ensina é o computador.
Claro que acredito no construtivismo como uma epistemologia. Pra mim, é
óbvio que o conhecimento é construído, e construído sociocognitivamente,
interativamente, discursivamente, etc., etc. Faz uns trinta anos que venho
lendo e estudando sobre o construtivismo, Mas daí a transformá-lo numa
teoria pedagógica única, num método de ensino, é um absurdo. Quem vive em
contato com escolas vê bem o caos em que se transformou o ensino.
Pois é. O fato é que os professores acham que não precisam mais ensinar
porque o menino constrói tudo sozinho. Não há mais planejamento de aula,
sistematização de conteúdos. Há uma crença de que a criança constrói o
conhecimento, assim, magicamente. Ninguém pergunta: constrói a partir de
quê, cara pálida? Sim, por que não há mais conteúdo previamente
estabelecido, tudo deve partir do que o aluno traz de casa. E se o
professor não souber problematizar o conhecimento comum e levar o aluno ao
interesse pela pesquisa, pela descoberta? Como é que fica? Não fica, não
fica nada. Nem o tradicional, nem o moderno.
Ainda em relação à alfabetização, agora a moda é o letramento. Cruel é saber
que boa parte das nossas professoras não são tão letradas, e nem sabem bem
o que é esse tal de letramento, que é, convenhamos, uma noção muito nebulosa
até pra quem tem pós-graduação.
Outra coisa: esqueceram que nossa língua é alfabética, é silábica.
Esqueceram que a decodificação é uma etapa necessária, e que, mesmo os
leitores experientes em certas ocasiões, apela para a decodificação. Quem
sabe alguma coisa a respeito do processamento cognitivo da leitura já está
careca de saber que uma das características do leitor proficiente é o uso
flexível, adequado dos processos ascendentes (bottom-up=decodificação) e
descendentes (top-down=predição) na compreensão de textos. Isso depende
também dos objetivos da leitura.
Mas no construtivismo, querem que as crianças aprendam a ler
ideograficamente logo no início, sem primeiro aprender a decodificar. Ora,
minha gente, a leitura ideográfica é para o leitor maduro, experiente, que
já automatizou o processo e assim mesmo isso só ocorre quando se tem um bom
conhecimento prévio do assunto, quando se está diante de um gênero textual
conhecido, enfim, quando se está lendo em condições. Aí, a gente lê
fluentemente, com uma compreensão garantida, fazendo sentido. Basta se ter
uma dor de cabeça, um barulho em volta, uma passagem mais difícil no texto
e a gente desautomatiza o processo e apela pra decodificação.
No último congresso da ABRALIN, em Belo Horizonte, em março último, alguém
apresentou uma pesquisa sobre compreensão de texto com professoras primárias
recém saídas do curso de magistério e verificaram que em certas passagens do
texto, elas preferiram adivinhar o que tinha na passagem, mesmo que isso
fosse uma inferência desautorizada. Moral da história: verificou-se que
elas não sabiam ou não queriam, ou achavamm que não se deve decodificar. Aí
convém lembrar do Sírio Possenti: a leitura errada existe. E confiar muito
na predição, da adivinhação (intelligent guessing, como diz Kenneth Goodman)
pode levar a uma leitura errada, e de consequências desastrosas.
É nisso que está dando essa abordagem de alfabetização baseada nesse mal
digerido construtivismo. Piaget deve estar se contorcendo na cova, coitado.
Emília Ferreira diz que a pesquisa dela não é método. Mas é tarde, virou
mesmo. E encalacrado. Telma Weiz diz que a culpa do fracasso escolar está
na miséria do povo. E Vygotsky e Bakhtin viraram remédio pra tudo. Daqui a
pouco vai aparecer um método bakhtiniano, mesmo sem o homem nunca ter falado
nisso.
Tá bom ou querem mais? Bom, ainda tem a questão da leitura em voz alta, que
também anda condenada. Mas nem vou entrar nesse assunto. Vou ficando por
aqui.
Maria Inez Matoso Silveira - (Centro de Educação - UFAL)
__._,_.___
A praga dos fónicos
Quando se deixar de ensinar a todos como se fossem um só, quase todas as
causas do insucesso estarão erradicadas
(José Pacheco - Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila
das Aves, Portugal)
Numa escola brasileira, vi uma primeira série repetir a ladainha: o Dadá
comeu xuxu e o vôvô viu a uva. Frases a roçar a imbecilidade desanimam o
mais animado dos alunos. Filhas dilectas do chamado método fónico,
condenam muitas crianças ao ódio por tudo o que seja livro. Como escapar à
praga do analfabetismo, se as escolas iniciam as crianças na aventura de
ler, forçando-as a um coro de melopeias sem sentido?
Desde há algum tempo, os prosélitos do método fónico tentam influenciar
uma opinião pública ansiosa por soluções mágicas. A argumentação é pobre e o
registro é o do senso comum pedagógico. Para afirmar o seu extremismo, um
fónico afirmou, num jornal, que os países desenvolvidos já perceberam que
o método fónico é mais eficiente do que todos os outros (...) Está provado
cientificamente. O articulista não informava quais eram as provas
científicas, mas rematava: os defensores do método fónico ganharam
visibilidade, após alguns países desenvolvidos terem revisto a ênfase dada
no passado ao método global, usado por muitos construtivistas.
Gostei do eufemismo ênfase... No passado, mas quando? A expressão
alguns países aporta alguma ambiguidade - quantos países? Gostaria de
conhecer o elenco desses países desenvolvidos, com a indicação das escolas
praticantes da linha construtivista, bem como dos países considerados não
desenvolvidos onde a dita linha tenha sido (efectivamente!) adoptada.
Porque, assim como há fiéis que assumem serem não-praticantes das suas
religiões, parece haver construtivistas não-praticantes, fundamentalistas
fónicos e, sobretudo, muita confusão. Conto dezenas de anos como professor
e posso afirmar que o método fónico foi hegemónico e bem visível nos países
ditos desenvolvidos e nos países ditos não desenvolvidos. E as consequências
desse método, infelizmente, também...
Os fónicos dizem que o Brasil está remando contra a maré dos países
desenvolvidos. Desenganem-se, porque a maré é a mesma. Não se trata de
introduzir novos métodos, ou de ressuscitar métodos velhos. O que está em
jogo é algo mais subtil.
Fui professor especialista em alfabetização (estarão os leitores a
cogitar: como pode um professor do fundamental ser especialista? Se muitas
escolas dispõem de especialistas em artes, ou na educação de crianças
especiais, muito mais se justifica a existência de um especialista num
domínio tão exigente como o da alfabetização e letramento. Por que razão se
insiste no disparate de considerar que o professor generalista é um
especialista em todas as áreas do currículo?)
Não estou fazendo o apelo a guetos disciplinares das séries iniciais. Estou
apelando a que se contemple o ritmo de cada criança, o estilo de
inteligência de cada criança, a sua cultura de origem, o repertório
linguístico de cada criança...
Aquilo que está em causa não é a adopção do método A, ou do método B - o que
está em causa é a necessidade de as escolas reconfigurarem as suas práticas
para atenderem à diversidade. É urgente reconfigurar o espaço e o tempo
escolar à medida de cada criança, para que não se imponha a todas e a cada
uma o mesmo modo de aprender.
Quando os professores deixarem de ensinar a todos como se fossem um só,
quase todas as causas de insucesso estarão erradicadas. Com fónico, ou sem
fónico...
Educação, n. 121, maio 2007.
[NA praga dos fónicos
Quando se deixar de ensinar a todos como se fossem um só, quase todas as
causas do insucesso estarão erradicadas
(José Pacheco - Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila
das Aves, Portugal)
Numa escola brasileira, vi uma primeira série repetir a ladainha: o Dadá
comeu xuxu e o vôvô viu a uva. Frases a roçar a imbecilidade desanimam o
mais animado dos alunos. Filhas dilectas do chamado método fónico,
condenam muitas crianças ao ódio por tudo o que seja livro. Como escapar à
praga do analfabetismo, se as escolas iniciam as crianças na aventura de
ler, forçando-as a um coro de melopeias sem sentido?
Desde há algum tempo, os prosélitos do método fónico tentam influenciar
uma opinião pública ansiosa por soluções mágicas. A argumentação é pobre e o
registro é o do senso comum pedagógico. Para afirmar o seu extremismo, um
fónico afirmou, num jornal, que os países desenvolvidos já perceberam que
o método fónico é mais eficiente do que todos os outros (...) Está provado
cientificamente. O articulista não informava quais eram as provas
científicas, mas rematava: os defensores do método fónico ganharam
visibilidade, após alguns países desenvolvidos terem revisto a ênfase dada
no passado ao método global, usado por muitos construtivistas.
Gostei do eufemismo ênfase... No passado, mas quando? A expressão
alguns países aporta alguma ambiguidade - quantos países? Gostaria de
conhecer o elenco desses países desenvolvidos, com a indicação das escolas
praticantes da linha construtivista, bem como dos países considerados não
desenvolvidos onde a dita linha tenha sido (efectivamente!) adoptada.
Porque, assim como há fiéis que assumem serem não-praticantes das suas
religiões, parece haver construtivistas não-praticantes, fundamentalistas
fónicos e, sobretudo, muita confusão. Conto dezenas de anos como professor
e posso afirmar que o método fónico foi hegemónico e bem visível nos países
ditos desenvolvidos e nos países ditos não desenvolvidos. E as consequências
desse método, infelizmente, também...
Os fónicos dizem que o Brasil está remando contra a maré dos países
desenvolvidos. Desenganem-se, porque a maré é a mesma. Não se trata de
introduzir novos métodos, ou de ressuscitar métodos velhos. O que está em
jogo é algo mais subtil.
Fui professor especialista em alfabetização (estarão os leitores a
cogitar: como pode um professor do fundamental ser especialista? Se muitas
escolas dispõem de especialistas em artes, ou na educação de crianças
especiais, muito mais se justifica a existência de um especialista num
domínio tão exigente como o da alfabetização e letramento. Por que razão se
insiste no disparate de considerar que o professor generalista é um
especialista em todas as áreas do currículo?)
Não estou fazendo o apelo a guetos disciplinares das séries iniciais. Estou
apelando a que se contemple o ritmo de cada criança, o estilo de
inteligência de cada criança, a sua cultura de origem, o repertório
linguístico de cada criança...
Aquilo que está em causa não é a adopção do método A, ou do método B - o que
está em causa é a necessidade de as escolas reconfigurarem as suas práticas
para atenderem à diversidade. É urgente reconfigurar o espaço e o tempo
escolar à medida de cada criança, para que não se imponha a todas e a cada
uma o mesmo modo de aprender.
Quando os professores deixarem de ensinar a todos como se fossem um só,
quase todas as causas de insucesso estarão erradicadas. Com fónico, ou sem
fónico...
Educação, n. 121, maio 2007.
[
O que as escolas precisam aprender
O mundo mudou. Os currículos ficaram obsoletos. Quais habilidades os alunos devem desenvolver para enfrentar os novos tempos
Ana Aranha com Paloma Cotes e Beatriz Monteiro
Imagine que um cidadão tivesse dormido um século e acordasse agora. O
mundo seria uma grande surpresa para ele. Aviões. Celulares. Arranha-céus.
Ao entrar numa casa, ele não conseguiria entender o que é uma televisão. Ou
um computador. Poderia se maravilhar com uma barra de chocolate.
Escandalizar-se com os biquínis das moças. Perder-se num shopping center.
Mas, quando ele deparasse com uma escola, finalmente teria uma sensação de
tranqüilidade. Ah, isso eu conheço!, pensaria, ao ver um professor com um
giz na mão à frente de vários alunos de cadernos abertos. É igualzinho à
escola que eu freqüentei.
Essa parábola é quase tão velha quanto o personagem que dormiu cem anos. É
contada em inúmeras palestras e cursos de reciclagem de professores. Ilustra
como a escola se mantém fossilizada, num mundo que não pára de mudar. A
escola como a conhecemos hoje é fruto de uma sociedade forjada no século XVIII, quando a Revolução
Industrial e o fortalecimento dos Estados modernos criaram a necessidade de formar cidadãos qualificados para
um novo mercado de trabalho. A Revolução Francesa e a independência americana também inspiraram um
ideal igualitário, que disseminou a idéia da educação como um direito de todos. Era uma ruptura em relação à
escola antiga, voltada para a formação de uma elite - fosse a casta religiosa da Idade Média, os burocratas a
serviço dos reis ou os aristocratas da Grécia clássica. Com a inclusão das massas na escola, foi preciso criar
mecanismos de homogeneização. Vieram daí a divisão dos alunos em séries, a especialização dos professores
em disciplinas e a sistematização de um ensino básico a ser transmitido para todos.
Há setores que pedem pessoas capazes de transitar entre áreas profissionais.
Esses trabalhadores precisam da capacidade de aprender sozinhos
Jaime Cordeiro, ESPECIALISTA EM DIDÁTICA DA USP
Essa escola, tão bem organizada ao longo de mais de dois séculos, já não responde às necessidades do mundo.
A Revolução Industrial foi ultrapassada pela era da informação. A maior parte do trabalho para o qual a escola
nos preparava é hoje feita por máquinas. Na década de 70, eram necessários 108 homens, durante cinco dias,
para descarregar um navio no porto de Londres. Hoje, com os contêineres e os guindastes modernos, esse
trabalho é feito por oito homens, em um dia. Na década de 80, a indústria automobilística brasileira empregava
140 mil operários para produzir 1,5 milhão de carros por ano. Hoje, pode produzir o dobro, com apenas 90 mil
empregados. Há uma década, a força de trabalho era chamada de mão-de-obra. Na virada do século, essa
expressão já tinha caído em desuso. Não é mais a mão, e sim a cabeça dos funcionários que interessa. Por isso,
o trabalhador não pode ser mais aquele que entende as ordens e consegue cumpri-las. Tem de ser alguém que
saiba refletir sobre o processo produtivo. E que esteja preparado para mudanças. Isso é ainda mais verdadeiro
para os empreendedores. Com a diminuição de oportunidades nas grandes empresas, as escolas têm de formar
gente que saiba inventar o próprio negócio.
A falta de estabilidade do mundo moderno tem outra implicação: o ensino não pode mais ser um conjunto de
conhecimentos que serve para a vida inteira. As pessoas vão precisar de algo diferente: habilidade de adquirir
conhecimentos novos o tempo todo. Aprender a aprender. Há setores que pedem pessoas capazes de transitar
mais entre áreas profissionais. Esses trabalhadores precisam da capacidade de aprender sozinhos, afirma Jaime
Cordeiro, especialista em didática da Universidade de São Paulo (USP).
Nossa vida como consumidores também mudou. Um supermercado tem, hoje, cerca de 30 mil itens. Milhares
de produtos - nos Estados Unidos, 20 mil - são lançados por ano, quase todos destinados ao fracasso. A internet
já tem mais de 100 milhões de sites. Vivemos afogados em informações. A escola ensina a degluti-las. Se nossos filhos seguirem esses ensinamentos, vão se empanturrar de mensagens repetitivas, inócuas,
contraditórias. Ela tem de ensinar a filtrá-las e encontrar o que interessa. Ensinar a escolher.
Também já não é possível formar cidadãos com uma base comum de conhecimentos. A própria evolução do
saber humano torna defasada essa idéia. O mundo de ontem era repleto de fronteiras, estático, separado por
áreas. O atual é globalizado, dinâmico e conectado. Isso faz com que seja praticamente impossível prever quais
conhecimentos garantirão uma existência tranqüila. É uma época de extrema liberdade - e insegurança. Por isso,
os educadores de vanguarda, aqui e no mundo, apontam não para o ensino de um conteúdo salvador, e sim para
a ênfase no ensino de um conjunto de habilidades. Muito mais que preparar alguém para um vestibular, essas
habilidades formariam uma espécie de caixa de ferramentas básicas para enfrentar o século XXI. Parte do
caminho para esse novo ensino tem sido trilhado por algumas escolas, a maioria particular. Nas páginas a
seguir, há exemplos de como elas fazem isso.
A nova escola vem de um movimento
que marcou o século XX: a idéia de que
nossa história é de nossa responsabilidade
Luciano Mendes, da UFMG
A nova escola vem de um movimento que marcou o século XX: a idéia de que nossa história é de nossa
responsabilidade. Que só é possível construir uma sociedade igualitária se o sujeito tiver autonomia, afirma
Luciano Mendes, do Grupo de Estudos e Pesquisa em História da Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais.
O Brasil teve avanços recentes na educação, com a universalização do ensino básico. Ainda falta estabelecer
níveis mínimos de qualidade na rede pública. Isso para chegar ao padrão aceitável do século XIX. Para
modernizá-la de verdade, é preciso uma revolução. Um dos responsáveis por pensar essa mudança é o
sociólogo espanhol Miguel Arroyo, doutor em educação pela Universidade Stanford e ex-secretário de
Educação de Belo Horizonte. Ele coordena o grupo de trabalho montado pelo Ministério da Educação que
busca uma revisão nacional da estrutura curricular. A idéia é acabar com a divisão por disciplinas na formação
do professor e criar cursos em grandes áreas do conhecimento, diz Arroyo. Assim, os professores sairiam da
faculdade formados em Ciências, e não em Física ou Química, como acontece hoje.
O que as escolas precisam aprender
O mundo mudou. Os currículos ficaram obsoletos. Quais habilidades os alunos devem desenvolver para
enfrentar os novos tempos
Essa reforma seria mais que uma mudança de currículo. Já está se formando um consenso de que a educação
terá de abrir mão do excesso de conteúdo das matérias lecionadas. Embora as escolas não sejam obrigadas a
seguir uma cartilha, o vestibular determina uma carga para todas as disciplinas. A escola absorveu uma
quantidade enorme de conhecimento. Apesar de ter muito conteúdo, ela ensina pouco, diz Mendes. Ele afirma
que, quando a lição não faz sentido para a vida do aluno, ele não a absorve. Assim que entra na faculdade, boa
parte dos formandos esquece lições como equações de movimento, divisão celular ou círculo trigonométrico.
Para adaptar o ensino ao mundo de hoje, precisamos de uma formação mais crítica e cultural, que envolva o
cinema, o teatro e a vida urbana.
Uma das premissas dessa nova escola é a intimidade com a tecnologia. Saber usar computadores, lousas
eletrônicas e programas educativos é, hoje, como conhecer o alfabeto. Mas isso não basta. A tecnologia é uma
ferramenta inicial, serve para o aluno pesquisar, entrar em contato com aquilo de que precisa. Depois entram o
professor e o trabalho em grupo para ajudá-lo a entender, afirma Vani Kenski, especialista em tecnologia
educacional da USP.
A idéia é acabar com a divisão por disciplinas na formação
do professor
Miguel Arroyo, DOUTOR EM EDUCAÇÃO PELA UNIVERSIDADE STANFORD
As nações desenvolvidas já acordaram para a necessidade de modernizar o ensino. O presidente dos Estados
Unidos, George W. Bush, implementou o programa No Child Left behind (Nenhuma criança deixada para trás),
que distribui bônus a escolas que alcançam metas no ensino de matemática e inglês. França, Alemanha e Reino
Unido fizeram revisões de currículo na década de 90. As principais mudanças foram: 1) dar autonomia às
escolas para adaptar os conteúdos das aulas à realidade dos alunos; 2) acabar com a repetência; e 3) investir na
formação de professores em áreas mais amplas. O caso de revolução de ensino mais aplicável no Brasil é o da
Espanha. Como nós, os espanhóis viveram sob um regime militar até os anos 70. Com a morte do general
Francisco Franco, em 1975, em meio a uma recessão, o novo governo e a sociedade civil estabeleceram acordos
conhecidos como Pactos de Moncloa. Em troca de restrições salariais, haveria investimentos em bem-estar
social. Nas décadas de 70 e 80, o país expandiu sua rede de escolas e universalizou o ensino. Na década de 90, a
Espanha inovou na educação.
A primeira medida foi o fim do ensino por séries. O aluno mal avaliado em alguma matéria na Espanha passa
de ano, mas tem de fazer aulas de reforço para acompanhar a turma. Foi criado um sistema de disciplinas
optativas e aulas profissionalizantes, para atender tanto os alunos que querem ir para a faculdade como os que
vão direto para o mercado de trabalho. E várias disciplinas foram unidas em grandes áreas do conhecimento.
Assim, é comum que um aluno assista a aulas de História, Espanhol e Filosofia com o mesmo professor. A
Espanha e a União Européia aumentaram as horas de aula não para dar mais conteúdo, e sim para levar a classe
a museus, viagens e debates, afirma Arroyo. É uma aposta que o Brasil deve fazer.
TER PENSAMENTO CRÍTICO
• POR QUE É IMPORTANTE: nunca houve tamanha produção e
facilidade de acesso a informações. Muitas são falsas ou imprecisas. Para
entender o mundo moderno, é preciso ter habilidade de filtrá-las e
interpretá-las.
• COMO ENSINAR: no colégio paulistano Móbile, os alunos já
receberam a reportagem com questionamentos. Mas o que você entende
por espírito crítico? Aqui tem várias aulas que trabalham isso, disse Eric
Curi Silveira, de 17 anos. A aula de ética relaciona as notícias com o que
estamos aprendendo e faz a gente ver que não são verdades absolutas. Eric
usou os ensinamentos na prática. No começo do ano, passou um abaixoassinado
entre os colegas pedindo mais horas dessa matéria por semana.
Conseguiu. Mas foi o último a ficar sabendo, porque não estava na aula em
que o anúncio foi feito. (O Móbile não obriga os alunos a entrar na sala.)
A atitude crítica é reflexo de uma série de atividades desenvolvidas pela escola. Uma delas acontece no curso de
História para o 2o ano do ensino médio. Os alunos recebem a tarefa de descobrir tudo sobre um documento antigo
que o professor entrega sem indicação de autor ou data. A pesquisa pode ser feita onde eles quiserem, e o professor
orienta a classe para sites e lugares, como as embaixadas dos países citados no documento. Eles têm de analisar
papéis, avaliar quão confiáveis são as informações que encontram, definir sua relevância para a pesquisa que estão
fazendo etc.
Ao final do exercício, cada aluno tem de elaborar um artigo de divulgação científica sobre seu documento. Não me
importa o que eles fazem para descobrir que documento é. Por mim, podem até buscar no Google, diz o professor
de História Roberson de Oliveira. O desafio começa quando eles têm de navegar pelo universo de informações e
montar o quebra-cabeça. Ligar o conteúdo do documento ao período histórico que ele representa.
Esse tipo de ensino é crucial. Só é preciso moderar a ênfase no incentivo à busca solitária de informações. Não
podemos confundir autonomia com individualismo, diz Luciano Mendes, educador da Universidade Federal de
Minas Gerais. Autonomia é para sujeitos conscientes e responsáveis.
DEBATES
Eric (de camiseta verde) e colegas
do Móbile: Sem verdades absolutas
O que as escolas precisam aprender
O mundo mudou. Os currículos ficaram obsoletos. Quais habilidades os alunos devem desenvolver para
enfrentar os novos tempos
Ana Aranha Com Paloma Cotes e Beatriz Monteiro
CONECTAR IDÉIAS
• POR QUE É IMPORTANTE: são cada vez mais raros os profissionais que
ficam fechados em uma área específica. A maioria trabalha com conhecimentos de
disciplinas diferentes das que teve na faculdade. O médico, por exemplo, usa
estatística para avaliar tratamentos. Advogados que praticam Direito Ambiental
fazem algo que nem existia quando estavam na escola. Em geral, é por meio de
associações de idéias de áreas distintas que surge o pensamento inovador.
• COMO ENSINAR: a escola estadual Lázaro Franco de Moraes fica em Torrinha
(a 240 quilômetros de São Paulo), numa paisagem típica do interior paulista. As
estradas ao redor da cidade são repletas de pequenas capelas. Em 2002, numa aula
sobre imagens barrocas, os alunos disseram que já tinham visto santos parecidos na
região. Então, a professora de Artes, Kátia Regina Buzato, decidiu propor à escola
que investigasse a arte local. A partir daí, formou-se uma equipe interdisciplinar
para o projeto. O professor de História ajudou os alunos a montar um questionário
com perguntas para os moradores antigos do entorno das capelas. Depois que todas as 54 capelas da região foram
catalogadas, a professora de Geografia, Alair Coleta, orientou a classe a localizá-las e registrá-las no mapa. A professora de
Português, Alda Lobo, revisou cada história coletada pelos alunos e editou um livro. Cinqüenta cópias foram patrocinadas
por um morador local. Elas circulam até hoje de mão em mão pela cidade.
Os alunos acharam relatos que enriqueceram a história de Torrinha. Uma delas foi a da capela construída em um antigo
cemitério, hoje abandonado, no qual apenas bebês mortos ao nascer eram enterrados. Outra história era a da capela erguida
como promessa para espantar uma praga de gafanhotos que invadiu as plantações de café da região. O projeto desperta a
atenção porque a gente chegava bem pertinho das histórias, diz a aluna Cíntia Serasuela, de 15 anos. E o nosso trabalho
acabava servindo de material para as aulas. O professor de História vivia citando as nossas descobertas.
SABER APRENDER SOZINHO
• POR QUE É IMPORTANTE: quem constrói seu conhecimento na
escola, em vez de apenas ouvir a lição do professor, tem mais chance de
continuar a evoluir e se atualizar na vida adulta. Isso é importante em um
mundo em que os profissionais precisam se reciclar constantemente. É
comum mudar de carreira ao longo da vida profissional.
• COMO ENSINAR: no colégio Sidarta, que fica em Cotia, Grande São
Paulo, as aulas são montadas a partir do interesse dos alunos. Eles
pesquisam para descobrir o conteúdo. Isso vai da pré-escola ao 3o ano do
ensino médio. Antes de falar dos bandeirantes, por exemplo, a professora
de 3a série leva as crianças para uma reserva ambiental. Depois que elas
sentiram as dificuldades de desbravar a mata fechada, ela diz: É isso o que
faziam os bandeirantes. O que vocês gostariam de saber sobre eles?. As
crianças lançam uma chuva de questões, a que elas mesmas terão de responder. A professora indica os livros,
museus, sites e vídeos onde as respostas podem ser encontradas. E vai usando as descobertas dos alunos para montar
o conteúdo da aula. Como os bandeirantes navegavam nesse rio sujo?, foi uma das perguntas de Carlos Pitteri, de
10 anos, quando viu de perto o Tietê. A classe teve de estudar como o rio era antes, limpo e com correnteza, para
achar a resposta. A turma de Carlos também fez duas maquetes do Pátio do Colégio, então uma escola de jesuítas.
Os alunos fazem ainda um balanço do próprio desempenho e estabelecem as metas para melhorar. No ano passado,
Carlos escreveu que precisava prestar mais atenção em atividades que não envolvessem biologia, a matéria de que
mais gosta.
CURIOSIDADE
Carlos e sua maquete do Pátio do
Colégio. Ele aprende a pesquisar
O que as escolas precisam aprender
O mundo mudou. Os currículos ficaram obsoletos. Quais habilidades os alunos devem desenvolver para
enfrentar os novos tempos
CONVIVER COM PESSOAS DIFERENTES
• POR QUE É IMPORTANTE: aproximar crianças e adolescentes de grupos de
diferentes classes sociais, etnias e opções sexuais é uma das maneiras de diminuir
preconceitos. A ação prepara as crianças para um mundo mais aberto, em que
entender diferenças facilita a comunicação e o trabalho em equipe.
• COMO ENSINAR: no colégio Santa Maria, em São Paulo, o contato com o mundo
fora do trajeto casa-escola começa na pré-escola. As professoras mostram às crianças
de 4 e 5 anos a diferença entre suas casas e as de quem mora na favela. São diversas
as atividades ao longo do ensino fundamental, incluindo viagens ao Vale do Ribeira.
No ensino médio, os alunos podem optar entre reforçar a equipe de uma creche e
animar crianças de um hospital, ambos de bairros pobres.
Aqui a educação vai além dos muros. Queremos que a realidade seja mostrada pela
experiência, diz o professor e coordenador do ensino médio Paulo Felipe. É o que experimentou Lia Spadini da Silva, do 2o
ano do ensino médio. Aos 14 anos, em vez de passar as tardes de sexta-feira no shopping com as amigas, ela entrava na favela
Americanópolis para ajudar a cuidar das 80 crianças da creche São Judas. Você entra em um lugar diferente daquele a que
está acostumada, afirma. A pintura simples e as paredes enfeitadas com desenhos chamaram a atenção de Lia, habituada às
paredes brancas de sua casa. A estudante diz que aprendeu a valorizar as coisas simples de seu cotidiano ao observar o cuidado
com que as crianças lidavam com seus brinquedos. A gente sabe que existe essa outra realidade, mas a sensação é diferente
quando você está olhando nos olhos da criança e ela diz que seu pai foi morto ou está preso, afirma. Aquelas crianças foram
os maiores professores que eu poderia ter.
VISÃO SOCIAL
Lia e crianças da creche onde
fez trabalho voluntário
ESTABELECER METAS E FAZER ESCOLHAS
• POR QUE É IMPORTANTE: ensinar os alunos a fazer escolhas e arcar com
a responsabilidade de suas decisões é uma das tarefas mais difíceis para as
escolas. É também uma das mais importantes para formar cidadãos
independentes e profissionais que não precisam de chefe.
• COMO ENSINAR: na escola Lumiar, em São Paulo, os alunos começam a
decidir sobre o próprio destino a partir dos 6 anos. Para isso, muitos dos
elementos que caracterizam uma escola tradicional foram eliminados. Ali não há
grade curricular dividida por disciplinas, divisão por séries ou por professor. Os
alunos montam sua grade horária. Para garantir que eles não deixem de aprender
o essencial, há um tutor designado para cada aluno. O modelo é baseado em
projetos. A cada bimestre, com a ajuda do tutor e dos pais, os estudantes
selecionam os projetos de seu interesse. Oferecemos um cardápio variado, e os
alunos constroem seu aprendizado, afirma o educador Fernando Almeida, da
Lumiar. Apesar da aparente bagunça, a democracia costuma resolver os
conflitos. Houve um caso em que os próprios alunos expulsaram um colega da
escola por ele ter rasgado o trabalho de outros. Ele só poderia voltar quando pedisse desculpas. Fez isso três dias depois.
Nosso currículo prima pela relação dos alunos com a aprendizagem do que é vida. As pessoas não são mais divididas
por idade e precisam tomar decisões sobre seu destino, diz Almeida. A Lumiar foi fundada pelo empresário Ricardo
Semler, hoje guru do mundo dos negócios. Em janeiro, foi premiada pela Microsoft como uma das escolas mais
inovadoras do mundo. Com a ajuda da empresa, a Lumiar quer divulgar essa pedagogia nas escolas públicas
DONOS DA AGENDA
Alunos na biblioteca da escola Lumiar.
Eles fazem os próprios horários
O que as escolas precisam aprender
O mundo mudou. Os currículos ficaram obsoletos. Quais habilidades os alunos devem desenvolver para
enfrentar os novos tempos
Ana Aranha Com Paloma Cotes e Beatriz Monteiro
TER VISÃO GLOBALIZADA
• POR QUE É IMPORTANTE:as fronteiras estão ficando mais fluidas em todo o mundo. Isso implica trabalhar ou
estudar fora, lidar com estrangeiros, ter de entender culturas diferentes e, claro, saber outros idiomas.
• COMO ENSINAR: na escola Suíço-Brasileira, em São Paulo, os alunos são poliglotas. As aulas de alemão começam
na pré-escola. Nas salas de ensino médio, os alunos discutem filosofia em francês. O inglês faz parte do cotidiano da
escola. Os alunos saem fluentes em quatro idiomas, incluindo o português, que não é a língua materna de muitos deles.
Ali convivem estudantes de 42 nacionalidades. Se não forem fluentes, não se dão mal só na aula de idiomas, mas em
outras matérias. Na 7a série, eles têm Matemática, Química e Física em alemão, afirma Heitor França, coordenador de
International Baccalaureate (IB), um diploma internacional que habilita os jovens a estudar em diversas universidades
estrangeiras. Para consegui-lo, o estudante passa por uma série de provas na língua materna, em inglês e em um terceiro
idioma.
CIDADÃOS DO MUNDO
Alunos de várias escolas participam da Míni-ONU,
na PUC de Minas Gerais (à esq). Rafael vai estudar na Suíça (à dir.)
O aluno Rafael Niggli, de 18 anos, prestou o IB no fim do ano passado. Do total de 42 pontos da prova, fez 35, três
pontos a mais que o exigido para estudar na Suíça, onde o ensino superior é gratuito. Em junho ele partirá para a
Universidade de Saint Gallen. Sei que não fico devendo nada a nenhum aluno europeu, diz. No Brasil, apenas dez
escolas estão aptas ao IB. Conheci escolas públicas na Argentina que oferecem o mesmo conteúdo. Isso faz com que os
argentinos disputem em pé de igualdade com os estudantes brasileiros da escola particular, diz França.
Aprender línguas não é a única forma de se preparar para a globalização. Aos 16 anos, Vinicius Melleu Cione se viu
representando Moçambique no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Pnud. Na pauta de discussão
com membros de outros países estavam a utilização do software livre e as alternativas mais baratas de acesso à
tecnologia. Vinicius não é diplomata. Pelo menos, não ainda. Ele estuda no colégio Ítaca, de São Paulo, um dos milhares
que participaram da Míni-ONU, uma simulação das reuniões das Nações Unidas.
Idealizada pelos alunos do curso de Relações Internacionais da PUC de Minas Gerais, a Míni-ONU reúne estudantes de
ensino médio de todo o país, de escolas públicas e particulares. As discussões vão desde tráfico de mulheres e refugiados
até meio ambiente. Todas se encaixam no trabalho de alguma agência da ONU. Mandamos aos colégios relatórios sobre
as questões e os países, diz o professor Marco Paulo Gomes, coordenador-geral. Mas ele é completamente imparcial.
Os alunos pesquisam qual a política externa do país sobre aquele assunto. Feito isso, a delegação está pronta para
participar do evento, em Belo Horizonte. A simulação é tão real que os alunos usam roupas típicas dos países. E as
discussões não ficam restritas às salas do congresso. No hotel, a gente tenta fazer aliados, diz Vinicius, hoje aluno de
Relações Internacionais da PUC e de História na USP. Quando participei, não sabia nada sobre Moçambique ou
software livre. A Míni-ONU fez com que eu me apaixonasse pela história da África, diz.
Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB)
Não é uma tarefa muito fácil operacionalizar o conceito de Relativismo Cultural, fundamental no desenvolvimento da Lingüística contemporânea, a partir do século XX, aplicando-o à análise da situação sociolingüística brasileira, com vistas a esclarecer, em salas de aula do Ensino Fundamental, por que certas variedades do nosso português têm aceitação mais ampla que outras. É o caso, por exemplo, de se explicar a alunos de séries iniciais por que a fala de personagens de ficção, nascidos e criados no campo, em particular a do Chico Bento com a qual eles estão familiarizados, é recebida com reservas nas comunidades urbanas ou até mesmo com franco preconceito. Sabemos que é difícil fazer a transposição didática de pressupostos da ciência lingüística, como o Relativismo Cultural, que se contrapõem aos preconceitos em relação a línguas ou variedades de língua e seus falantes, se temos compromisso com a clareza, mas queremos evitar o tratamento trivializado desses conceitos.
Neste artigo examino os esforços de uma professora para levar seus pequenos alunos a receberem com naturalidade as diferenças lingüísticas com que a equipe de Maurício de Sousa marca o repertório de fala do personagem Chico Bento, seus familiares e amigos. O seguinte episódio de sala de aula ocorreu numa 1ª série em uma escola pública na cidade de Taguatinga-DF em 2003.
Trata-se de uma conversa entre a professora e alunos depois que eles assistiram a um vídeo do personagem Chico Bento de Maurício de Sousa. A professora, Sônia Maria Oliveira, é uma alfabetizadora muito competente. É formada em Pedagogia e nunca teve muita oportunidade de estudar Sociolingüística sistematicamente, mas, durante o trabalho de campo da mestranda Maria Alice Fernandes de Sousa , leu e discutiu com ela textos sobre variação lingüística. A fala de cada aluno está identificada com um “A” seguido de um número. A fala da professora está identificada com um “P”.
A1 – Eu quase num consegui entendê o que o Chico Bento falô, ele fala muito enrolado. Fala muito errado. Parece que ele ainda tá aprendeno a falá. Acho que tá sem dente.
A2 – Ele fala tudo errado mermo. Quando foi dizer “olha”, “falô” “oia”.
A3 – Eu acho que ele ainda é muito pequeno, tá aprendeno a falá agora.
A4 – É porque ele ainda não estuda. Quando ele for pa escola, ele vai aprendê a falá bem direitim.
P– Vocês observaram onde o Chico mora?
A5 – Acho que ele mora numa chácara, porque tem uma floresta.
A6 – Ele usa ropa de festa junina, então ele é caipira, deve morá na roça.
A7– É se ele morasse na cidade ingual nós, ele usava ropa normal, ingual a nossa.
A8 – É ele usa chapéu de paia deve de morá em fazenda. O pai dele deve sê casero.
A9 – Agora entendi, ele fala assim, porque ele mora na roça. Eu tenho um tio que tem um amigo que mora na roça e ele fala parecido o Chico.
P – Então vocês acham que a forma de falar de quem mora na roça é diferente da forma de quem mora na cidade?
A10 – Claro, na roça, fala diferente da cidade, eles não têm escola.
P – Mas vocês conseguiram entender a conversa do Chico com o Zé Lelé no filme? Conseguiram entender a história?
A11 – Sim, até posso contá.
P – Então o que há de diferente entre a fala do Chico e a fala de vocês?
A12 – Agora eu tô pensando, a diferença é porque ele mora na roça, fala igual as pessoa de lá e nós moramo aqui na cidade, falamo igual as pessoa da cidade.
A13 – Cada pessoa fala de um jeito, se mora na cidade fala do jeito do povo da cidade, se mora na roça fala do jeito do povo da roça.
P– As pessoas da cidade conseguem entender o que as pessoas da roça querem dizer ao falarem? E as pessoas da roça conseguem entender as pessoas da cidade?
A14 – Consegue, na minha família tem pessoa que mora em chácara e a gente consegue entender o que eles falam e eles também consegue entender o que nós fala.
P – Então existe jeito “certo” ou “errado” de falar?
A1 - Não. Cada pessoa fala do seu jeito.
Vamos refletir sobre a interação que acabamos de ler. Ela é muito reveladora da competência comunicativa dos alunos e de suas habilidades de tecer comentários pertinentes sobre o filme a que assistiram e de dar respostas adequadas à professora. Observe-se que essas crianças de primeira série, cuja idade varia entre 7 e 8 anos, já são capazes de discorrer sobre as peculiaridades da vida no campo e da vida na cidade. Para interpretar as características sociodemográficas do personagem Chico Bento, que representa a cultura rural, eles as associam a experiências com chácaras, caseiros e festas juninas, pois não têm uma experiência efetiva com a vida rural. Também já são capazes de perceber que há diferenças nos modos de falar no campo e na cidade. Os estudos de atitudes lingüísticas desenvolvidos por Lambert e seus associados na Universidade de McGill mostraram que crianças de 10 anos ainda não haviam desenvolvido uma postura negativa ou preconceituosa em relação a grupos minoritários (Anisfeld e Lambert, 1964). Por volta dos 12 anos, esse sentimento negativo começa a aparecer e tende a manter-se durante toda a adolescência (Lambert, Frankel e Tucker, 1966). Esses psicólogos sociais apontam que o período crucial no desenvolvimento de atitudes lingüísticas que refletem preconceitos étnicos é a pré-adolescência.
Há que se notar que os alunos do nosso episódio criam várias hipóteses sobre a fala de Chico Bento. Comentam que o Chico fala “muito enrolado e que parece que ele está aprendendo a falar”; “que ele não estuda” e “quando for para a escola vai aprender a falar bem direitim”. Todos esses enunciados revelam uma atitude negativa em relação à fala do personagem. A Professora vai acatando as hipóteses e apresentando perguntas que os levam a evoluir o raciocínio. Aos poucos, as crianças substituem os primeiros enunciados em que se pode perceber certa desqualificação da fala de Chico Bento por outros que já se alinham com uma visão mais relativista.
No fascículo destinado à formação de professores, depois de reproduzir esse episódio, apresentei a seguinte definição de Relativismo Cultural:
“O Relativismo cultural é uma postura adotada nas Ciências Sociais, inclusive na Lingüística, segundo a qual uma manifestação de cultura prestigiada na sociedade não é intrinsecamente superior a outras. Quando consideramos que as variedades da língua portuguesa empregadas na escrita ou usadas por pessoas letradas quando estão prestando atenção à fala não são intrinsecamente superiores às variedades usadas por pessoas com pouca escolarização, estamos adotando uma posição culturalmente relativa e combatendo o preconceito baseado em mitos que perduram há muito tempo em nossa sociedade.”
De fato a professora não chegou a discutir os princípios basilares do Relativismo Cultural, certamente porque é difícil tratar deles de forma acessível à compreensão das crianças. Optou por enfatizar o fato de que as diferenças entre os modos de falar no campo e na cidade não são um impeditivo para a compreensão entre os falantes dos dois grupos sociais. Partindo dessa premissa propõe a questão condutora da conclusão final: “_ Então existe jeito certo ou errado de falar?” “_ Não, cada pessoa fala do seu jeito”. Mas conseguiu passar a mensagem de que se deve evitar o preconceito lingüístico. Por vias transversas chegou à própria base filosófica do Relativismo Cultural.
Há duas interpretações mais comuns desse conceito. A primeira é mais radical; a segunda, mais realista.
Um pressuposto na concepção culturalmente relativista dos lingüistas e antropólogos no começo do século XX é que não existem línguas primitivas no sentido de terem de recorrer a gestos ou outros expedientes para que a comunicação se efetive. Outro é o da equivalência funcional. Segundo interpretações que se tornaram bastante populares a partir de meados do século XX, a equivalência funcional entre línguas ou variedades significa que essas se equivalem tanto em sua estrutura quanto em seu uso, ou seja, todas as línguas têm igual complexidade. Sendo assim, afirmavam os primeiros pesquisadores que se dedicaram ao estudo de línguas ameríndias, não há fundamento científico para que um código lingüístico seja mais valorizado que outros. Essa postura cumpriu um papel importante na luta contra o preconceito lingüístico cujas vítimas são os usuários da língua ou variedade de pouco prestígio social. Como bem observou Bourdieu (1974), o pouco prestígio de um grupo social acaba por transferir-se às suas formas de falar.
Consideremos que essa é uma interpretação mais forte, ou mais radical, do princípio da equivalência funcional. Embora tenha tido um importante papel de natureza sociopolítica, como observamos, essa interpretação é de difícil comprovação empírica, considerando principalmente as diferenças no universo vocabular entre as línguas. Segundo Dell Hymes (1974) é a confiança ideológica e não o conhecimento empírico que leva os lingüistas a afirmarem tais coisas (cf. Bortoni-Ricardo, 2005 p.111).
O Círculo Lingüístico de Praga postulava uma escala de três níveis quanto à “intelectualização” e complexidade nas línguas, a saber: dialeto de conversação; técnico rotineiro e científico funcional (Garvin e Mathiot, 1974). Na mesma linha de raciocínio, o conceito de diglossia proposto por Charles Ferguson (19591972) leva em consideração, além das diferenças estruturais entre línguas e variantes de uma língua, também as diferenças funcionais. Segundo esse pioneiro das ciências lingüísticas, um importante traço da diglossia é a especialização de função dos códigos coexistentes no repertório de uma comunidade, isto é, cada um deles assumindo um papel definido. A proposta de Ferguson milita também em favor da interpretação mais realista do Relativismo Cultural, cujas raízes vamos encontrar no trabalho de Franz Boas (19111974). Quando Boas e seus contemporâneos travaram contato com as línguas indígenas na América do Norte, a seguinte e crucial questão se lhes deparou: considerando as especificidades dessas línguas e as diferenças entre elas e as línguas européias, seria adequado considerar que as línguas ameríndias estavam em um estágio “primitivo”, inferior às línguas indo-européias?.Vejamos o que diz o próprio Boas (1974 p.23-4):
“Tem sido dito que a concisão e a clareza de pensamento de um povo dependem em grande escala de sua língua. A facilidade com a qual em nossas modernas línguas européias expressamos idéias abstratas por meio de um único termo e a facilidade com que amplas generalizações são lançadas nos limites de uma única sentença têm sido consideradas uma das condições fundamentais da clareza de nossos conceitos, da força lógica de nosso pensamento e da precisão com que eliminamos em nossos pensamentos detalhes irrelevantes. ... Quando comparamos o inglês moderno com algumas dessas línguas indígenas, que são mais concretas em sua expressão formativa, o contraste é gritante.” ( Tradução nossa)
Para ilustrar sua assertiva fornece vários exemplos. Em certas línguas indígenas não se pode dizer: “O olho é o órgão da visão”, tomando-se a palavra olho genericamente. Só se pode referir-se a olho nessas línguas atribuindo-o a alguém que o possua. No entanto, prossegue o lingüista afirmando que seria perfeitamente razoável prever que um ameríndio que recebesse treinamento em filosofia passaria a usar formas nominais subjacentes dissociadas do elemento possuidor, alcançando formas abstratas, comuns nas línguas européias. Boas confirmou essa hipótese com um experimento com um grupo étnico falante da língua Kwakiutl na Ilha de Vancouver. Seus membros foram capazes de usar palavras como “amor” e “piedade” dissociados do elemento possessivo. Outro exemplo da mesma língua que o autor fornece refere-se à idéia de “estar sentado” (to be seated), que os usuários da língua empregavam sempre com um sufixo expressando o lugar onde a pessoa estava sentada. Quando foi necessário, por alguma razão, exprimir a idéia do estado de “estar sentado” foi proposta uma perífrase na língua, equivalente a: “estar numa postura sentada” (being in a sitting posture), mas a oportunidade de empregar essa perífrase raramente ou nunca se apresentou. O autor conclui então que, quando formas genéricas de expressão não são empregadas em uma determinada língua, isso não prova a incapacidade daquela língua de formá-las; prova simplesmente que o modo de vida da comunidade não requer o uso dessas formas genéricas. Elas podem ser desenvolvidas a qualquer momento em que se tornarem necessárias.
Entretanto a questão dessa inteligibilidade é complexa. Os brasileiros que têm pouca escolarização e conseqüentemente pouco contato com a cultura de letramento podem ter muita dificuldade para entender o discurso de um evento de letramento, como o de um jornal televisivo, ou uma entrevista de um político ou e um cientista no rádio ou na televisão (Bortoni-Ricardo, 1984). Dificuldades de entendimento como essas têm de ser levadas em consideração porque representam um forte entrave para a inclusão social da população iletrada em nosso país. Contribuem também para criar nessa população um sentimento de insegurança lingüística. Quando a professora e os alunos argumentam que não há dificuldades de entendimento entre falantes de variedades rurais e falantes de variedades urbanas, têm em mente que não existe uma total falta de inteligibilidade, como existe entre os falantes de dialetos em países da Europa, Ásia ou África.
Brasília, DF, 29 de setembro de 2006
AMARAL, A.. O dialeto caipira. São Paulo: HUCITEC, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.
ANISFELD, E. e LAMBERT, W.E. Evaluational reactions of bilingual and monolingual children to spoken languages. Journal of Abnormal and Social Psychology, 69 (1) p.. 89-97 , 1964
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BOAS, Franz. Introduction to the Handbook of American Indian Languages. In: Blount, Ben G. (org.). Language Culture and Society: a book of readings. Cambridge, Ms: Winthrop Publishers, 1974, p. 12 a 31 (1ª publicação em 1911).
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
BORTONI-RICARDO, S.M.. The urbanization of rural dialect speakers: a sociolinguistic study in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
BUARQUE DE HOLANDA, S.. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,1997.
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HYMES, Dell. Foundations in sociolinguistics: na ethnographic approach. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1974, p. 76.
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PEREIRA DE QUEIROZ, M.I. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos e São Paulo: EDUSP, 1978.
Um outro exemplo bastante revelador, também fornecido por Boas, refere-se à capacidade de contar em uma língua usando os números cardinais. Algumas línguas, como o Esquimó, dispõem de numerais até 10 (dez). É sabido também que no antigo Guarani não se contava além de 3 (três). No entanto se a comunidade for posta em contato com outras em que a quantificação é indispensável, facilmente desenvolve recursos lexicais, pela via do empréstimo ou da criação morfológica, para suprir as necessidades. Em resumo, segundo Boas, a língua usada por qualquer comunidade tem o potencial de ampliar seu vocabulário ou modificar seus modos de falar de maneira a adaptar-se a necessidades supervenientes naquela comunidade. Dell Hymes (1974, p.76) ecoa a concepção de equivalência funcional entre línguas, avançada por Boas, quando afirma: “Uma relação social implica a seleção ou a criação de meios comunicativos considerados apropriados ou talvez específicos a ela”. Podemos então concluir que uma interpretação mais realista e menos radical do conceito de equivalência funcional, por sua vez implícito na noção de Relativismo Cultural, é que as línguas se equivalem funcionalmente na medida em que atendem sempre de forma satisfatória às necessidades comunicativas das comunidades que as usam. São equivalentes porque nenhuma delas é mais funcional que as outras para a comunicação nas comunidades em que são usadas. Mas a bem da verdade, antes de aderirmos a essa conclusão é preciso tecer algumas considerações.
Se um indivíduo falante de determinada língua migrar para outra sociedade tecnologicamente mais avançada onde se falam outras línguas ou se toda uma comunidade, por questões políticas, passar a conviver com outros grupos sociais, como é o caso de línguas postas em contato, a língua original do indivíduo ou da comunidade pode necessitar de ajustes e adaptações para se manter funcional. Na Europa Central, cujo mapa político já passou por inúmeras alterações, conhecemos o caso de comunidades falantes do húngaro e do esloveno que, postas em contato com a língua alemã, tornaram-se bilíngües. Nesse processo, passaram a incluir em seus repertórios estratégias de mudança de código (code-switching) que lhes permitissem expressar-se, usando um léxico que, apesar de estrangeiro, era mais específico, ou adequado, quando a situação comunicativa assim o exigia (cf. Gal, 1979). Outros recursos de que se socorreram foram os empréstimos para suprir lacunas lexicais .
Pode-se reiterar então que uma variedade empregada por um grupo social em uma comunidade de fala atende a todas às necessidades comunicativas daquele grupo e daquela comunidade. Mas há que se considerar também que as necessidades comunicativas podem variar muito de uma comunidade para outra. Essa variação é diretamente condicionada pela complexidade das práticas sociais vigentes, levando-se em conta um contínuo de oralidade-letramento (cf. Bortoni-Ricardo, 2005, para a situação brasileira). É aconselhável tratar essa questão, levando em conta práticas sociais letradas e práticas sociais de oralidade, bem como o conceito de alfabetismo funcional ( ver: www.acaoeducativa.org.br ou www.ipm.org.br )
Sabemos, naturalmente, que as comunidades brasileiras do campo, que Chico Bento representa, e mesmo as comunidades rurbanas praticam uma cultura predominantemente oral e têm pouco acesso a práticas sociais letradas. As taxas de analfabetismo nas áreas rural e urbana no Brasil são de, respectivamente 28,7% e 9,5 % (disponíveis em www.inep.br). A variação lingüística que se observa entre os falares rurais e os urbanos é condicionada basicamente pelas diferenças de acesso a certos bens culturais entre os quais tem maior relevância a cultura de letramento. Neste caso quem mais se aproximou de uma análise sociolingüística precisa no episódio da sala de aula que lemos foi o aluno A4 quando diz: “É porque ele ainda não estuda, quando ele for pa escola vai aprendê a falá direitim”.
Aos exemplos que Franz Boas fornece sobre línguas ameríndias, para sustentar a concepção de equivalência funcional, podemos aduzir este mais próximo da nossa vivência. Na cultura rural brasileira o cálculo da produção de cereais, especialmente do milho, é feito tradicionalmente com categorias próprias. Um “carro” de milho equivale a 40 “balaios”; um “balaio” equivale a 30 “atios” (atilhos); um “atio” equivale a 4 “espigas de milho”. Depois da colheita, o milho ou feijão são depositados em montes, espalhados pela roça, denominados “bandeiras”. Todas essas categorias são bastante funcionais para o produtor rural. No entanto, se ele precisar interagir com indivíduos de antecedentes urbanos, como por exemplo, o gerente do banco aonde vai buscar financiamento, poderá facilmente ajustar-se ao sistema métrico de cálculo, adotando palavras e medidas como quilograma, tonelada etc. No seu habitat as categorias de que o dialeto dispõe são perfeitamente funcionais. Fora dali, se for necessário, o falante do dialeto caipira pode ampliar o seu repertório. O mesmo vale para toda uma comunidade rural. Com a introdução de tecnologia agropecuária no campo, a variedade usada pela comunidade vai incorporar por empréstimo novos itens lexicais ou até mesmo desenvolver os termos necessários valendo-se da morfologia derivacional do dialeto. Nesse sentido o falar rural é funcionalmente equivalente às variedades urbanas da língua.
Na sociedade brasileira a cultura urbana é historicamente mais prestigiada que a cultura rural. Essa não é a situação em todos os países. Na Inglaterra, por exemplo, dialetos de certas áreas rurais muito aprazíveis são mais prestigiados que dialetos de áreas urbanas degradadas pela industrialização.
Não se pode esquecer também que a toda diferença corresponde uma desigualdade. No caso brasileiro as desigualdades têm início com a própria formação deste país. A clivagem entre os brasileiros alfabetizados e os que não sabem ler e escrever começou nas primeiras décadas da colonização.
Sabemos que até meados do século passado o Brasil era um país essencialmente rural. Segundo Buarque de Holanda (1997), no Brasil-Colônia assim como em outros países de história colonial recente, mal existiam tipos de estabelecimento humano intermediários entre os meios urbanos e as propriedades rurais; os primeiros, restritos, neste país, à faixa litorânea, e as últimas espalhando-se pelas regiões interioranas, à medida que as terras eram desbravadas e se sucediam os ciclos na produção agropecuária. Nessas grandes extensões interioranas as condições sociolingüísticas nos primeiros séculos de colonização, a saber: o contato de línguas _ as várias línguas dos grupos étnicos, a língua geral e as interlínguas dos indígenas no seu esforço para se comunicar com o colonizador e, posteriormente, as línguas africanas_ ; a ausência de um sistema educacional e a ínfima circulação de textos escritos em português, já que até 1809 era proibida na Colônia qualquer atividade de imprensa, contribuíram para formar uma variedade dialetal de português oral, muito distinta da língua falada e escrita em centros urbanos em Portugal e, posteriormente, no Brasil. Essa variedade dialetal permaneceu infensa à influência das agências letradoras próprias da cultura urbana. Essa é a origem da língua e da cultura caipira, que veio a receber uma primeira descrição em 1920 com O dialeto caipira de Amadeu Amaral (1976).
A padronização do português brasileiro correu paralela ao processo de urbanização, intermitente e caótico. É bem verdade que, já em 1770, o primeiro-ministro português, Marquês de Pombal, impôs uma gramática normativa única a todas as escolas de Portugal e de além-mar. Mas essa providência teve pouco efeito já que, como observei, a massa populacional brasileira não tinha acesso a escola nem a práticas letradas, restritas ao clero e à elite que representava o estado português na colônia.
Na Europa a industrialização precedeu a urbanização e há entre os dois processos uma relação de causa e conseqüência. No Brasil, como de resto nos países do terceiro mundo, a urbanização não foi conseqüência da industrialização e se explica por circunstâncias históricas e pressões econômicas que delas decorrem.
Podem-se identificar dois períodos na urbanização brasileira (Pereira de Queiroz, 1978). O primeiro tem início com a colonização, quando se criam os núcleos urbanos litorâneos do Brasil-Colônia. Salvador foi construída a partir de 1549, para abrigar a administração colonial; a fundação de Recife e Olinda está associada às invasões holandesas ainda no início do século XVI e a do Rio de Janeiro, às invasões francesas em 1565. Mas a população carioca só começa a adotar hábitos de sociedade burguesa quando a cidade se torna sede do reino português, em final de 1808, após a vinda da corte, que fugia ao ímpeto conquistador de Napoleão Bonaparte. Cerca de 30 anos mais tarde o modo burguês de vida chegaria a São Paulo que, no século seguinte, consolida-se como uma grande metrópole graças à cultura cafeeira. As primeiras cidades de Minas Gerais surgem com a exploração aurífera no início de século XVIII. O ouro e os diamantes financiaram suas igrejas, casario e toda a sua estrutura urbana.
À medida que o modo de vida burguês ganhava prestígio, aprofundava-se uma clivagem entre a cultura urbana e a cultura tradicional interiorana. As cidades se tornaram por excelência o locus da cultura de letramento, enquanto no interior se perpetuava uma cultura predominantemente oral.
O processo de industrialização só começou no Brasil no final dos anos 40 do século XX. Inicia-se aí uma segunda fase de urbanização. Mas a ausência de uma sólida base industrial nos séculos XIX e começo do século XX determinou que apenas algumas poucas cidades desenvolvessem um sistema social estratificado. Nas cidades menores e em regiões mais pobres foram mantidas a uniformidade e a tradição do modo rural de vida.
A difusão dos hábitos citadinos teve como conseqüência o aprofundamento da clivagem entre a cultura urbana, diretamente influenciada pelos modelos europeus, e a cultura rural, e levou as cidades a assumirem uma posição de superioridade em relação à vida interiorana. No século XX a urbanização brasileira acelerou-se, implementada pela introdução de tecnologia no campo, pelo massivo êxodo rural e melhorias nos sistemas de comunicação e de transporte. Contudo a população rural que se deslocou para as cidades recriou, no novo habitat, espaços culturais rurbanos (Bortoni-Ricardo, 1985). Sua efetiva integração ao modo urbano de vida é lenta e depende muito das oportunidades de acesso à escola e a práticas letradas.
A avaliação negativa que os pequenos estudantes fizeram da fala de Chico Bento e conseqüentemente da cultura rural, embora eles próprios tenham em seu repertório traços dessa fala (por exemplo, “nós fala” e “ingual”) reflete o estereótipo negativo associado a essa cultura que se foi formando na sociedade brasileira desde seus primeiros séculos de história.
Para justificar a equivalência funcional entre os falares rural e urbano, a professora valeu-se do argumento da inteligibilidade mútua entre esses falares.
P – Mas vocês conseguiram entender a conversa do Chico com o Zé Lelé no filme? Conseguiram entender a história?
A11 – Sim, até posso contá.
P – Então o que há de diferente entre a fala do Chico e a fala de vocês?
A12 – Agora eu tô pensando, a diferença é porque ele mora na roça, fala igual as pessoa de lá e nós moramo aqui na cidade, falamo igual as pessoa da cidade.
A13 – Cada pessoa fala de um jeito, se mora na cidade fala do jeito do povo da cidade, se mora na roça fala do jeito do povo da roça.
P– As pessoas da cidade conseguem entender o que as pessoas da roça querem dizer ao falarem? E as pessoas da roça conseguem entender as pessoas da cidade?
A14 – Consegue, na minha família tem pessoa que mora em chácara e a gente consegue entender o que eles falam e eles também consegue entender o que nós fala.
Voltando, então, à interação da Professora Sônia com seus aluninhos, visando a desenvolver neles uma atitude culturalmente relativista em relação às diferenças sociolingüísticas no Português do Brasil, vemos que o tratamento da questão do dialeto caipira pode-se beneficiar de reflexões sobre o Relativismo cultural. A professora poderia ater-se a alguns pontos:
1. Há muitas diferenças entre os modos de falar nas cidades e os modos de falar de pessoas, como o Chico Bento, que nasceram e vivem no campo.
2. Muitas das diferenças entre os modos de falar na cidade e no campo se relacionam ao vocabulário empregado em cada uma dessas áreas. No campo, por exemplo, os falantes dispõem de vocabulário mais específico relacionado às plantas medicinais, às árvores, à criação de animais; à alimentação, etc. Nas cidades os falantes dispõem de vocabulários específicos relacionados às atividades urbanas, em especial às atividades tecnológicas e científicas, como a informática, as artes plásticas, a medicina, a ecologia; a engenharia e tantas outras.
3. As pessoas que vivem em áreas rurais têm mais oportunidade de envolver-se em práticas sociais de oralidade; os residentes em áreas urbanas, por sua vez, têm mais oportunidade de participar de práticas sociais mediadas pela língua escrita, ou seja, práticas sociais letradas.
4. A participação efetiva em práticas sociais letradas está diretamente relacionada ao grau de alfabetismo funcional do indivíduo.
5. Essas diferenças não impedem que pessoas da cidade e de áreas rurais possam conversar entre si, sem problemas. Por isso é que vemos o Chico conversando com seu primo que vive na cidade. Há países em que as diferenças nos modos de falar de uma região para outra são tão grandes que às vezes impedem ou dificultam a comunicação.
6. Não podemos nos esquecer, porém, de que as diferenças nos modos de falar entre as comunidades do campo e as da cidade podem criar problemas de compreensão para os habitantes das áreas rurais, que muitas vezes não conseguem compreender bem um jornal televisivo ou uma entrevista na televisão ou no rádio, por exemplo.
7. É freqüente ouvirmos pessoas nas cidades criticando os modos de falar e os modos de viver das populações rurais. Essa é uma postura que se implantou no Brasil, desde o começo de sua história, à medida que as cidades passaram a ter mais prestígio que as áreas rurais.
8. A atitude negativa em relação à cultura e aos modos de falar de Chico Bento e sua família reflete um preconceito, que devemos aprender a evitar ( cf. Bagno, 1999).
9. Como qualquer preconceito, o estigma relacionado à cultura rural no Brasil não se apóia em evidências científicas.
10. Podemos dizer que a variedade lingüística empregada nas áreas rurais ou semi-rurais (‘rurbanas’) no Brasil é funcionalmente equivalente às variedades empregadas nas cidades, pelas pessoas escolarizadas, porque a variedade usada na roça pelos grupos sociais, como a comunidade em que vive o Chico Bento, é perfeitamente adequada para que as pessoas que lá vivem se comuniquem, realizando todas as tarefas comunicativas que têm de realizar. Usando essa variedade interagem na família, no trabalho, rezam, engajam-se em uma rica cultura musical, etc. Da mesma forma, a variedade usada nas áreas urbanas é adequada a todas as necessidades comunicativas de seus usuários.
11. Se o próprio Chico Bento decidir vir morar numa cidade, freqüentar escola, fazer vestibular e seguir uma carreira, seus modos de falar vão-se ajustar às novas necessidades. Ele vai aprender palavras novas e vai modificar em alguns pontos a sua pronúncia.. Vai também acostumar-se a participar de práticas sociais letradas na cultura urbana.
12. Da mesma forma, se um indivíduo nascido e criado na cidade for viver numa comunidade rural ou rurbana, terá de aprender palavras específicas da fala rural e a participar de práticas sociais próprias da cultura onde passou a conviver. ( cf. Bortoni-Ricardo, 1985).
13. Tanto em um caso como em outro vai ocorrer um processo de acomodação, por meio do qual os falantes tendem a alterar sua fala e suas práticas interacionais, tomando como modelo as pessoas que os cercam e com as quais convivem ou, em algum momento de suas vidas, passaram a conviver.
Referências Bibliográficas
________________ Problemas de comunicação interdialetal. Revista Tempo Brasileiro 789. 1984, p.9-32, reproduzido em Bortoni-Ricardo, 2005.
______________ Nós cheguemos na escola, e agora? Sociolingüística & Educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
O que você quer ser quando crescer? Os jovens podem até continuar ouvindo esta pergunta, mas as respostas não devem se manter as mesmas. Medicina, Direito e Odontologia devem, gradualmente, ceder espaço a novas funções, relacionadas às atuais demandas e oportunidades – como os ludicadores (inventores de programas de jogos) e os plasturgistas, que combinam as habilidades de um engenheiro metalúrgico as de um engenheiro de polímeros. As mudanças não afetarão apenas os nomes de profissões: também devem mudar os hábitos e as relações de trabalho. Uma pesquisa realizada pelo Programa de Estudos do Futuro da Universidade de São Paulo, que projeta perspectivas para o mercado de trabalho no país até 2010, aponta que as novas tecnologias e o trabalho a distância devem mudar as empresas no futuro próximo. Segundo o estudo, os setores mais promissores são os de comunicação, tecnologia e informação, acompanhados de hospedagem, entretenimento, lazer e terceiro setor. Conclui ainda que o empreendedorismo será a marca da década, já que 20% dos gerentes devem abrir seu próprio negócio até 2010.
O conhecimento é cada vez mais prioridade nos negócios, deixando o capital financeiro em segundo plano. “Estamos vivendo na sociedade do conhecimento, onde a boa informação vale mais que o capital financeiro. Grandes empresas como Google e Youtube tiveram como trunfo maior suas idéias”, exemplifica Gilberto Guimarães, presidente da BPI Brasil, empresa de gestão de mudanças e carreiras. Para ele, as grandes apostas são as profissões do conhecimento, especialmente relacionadas à tecnologia. Na “nova vida” cresceriam em importância – e em oportunidades – os mercados de lazer e saúde, voltados para o bem-estar dos trabalhadores. “Meu conselho é: escolha uma área e se especialize, veja como ganhar dinheiro e invista nisso. Seja o melhor”, sugere Guimarães.
Para Rafael Souto, diretor-executivo da Produtive Outplacement e Planejamento de Carreira, a população deve modificar sua postura frente às relações de trabalho desde agora. “O profissional do futuro é um gerador de receita, não um empregado. Ele atua ora como funcionário, ora como prestador de serviços – e até como consultor e docente”, destaca o diretor. Segundo ele, as áreas mais promissoras são a gestão de projetos e cronogramas, a engenharia mecatrônica e a controladoria, além das relações com o mercado financeiro. “Cada vez mais empresas e pessoas físicas precisam compreender essa relação com o mercado financeiro, que está ficando mais próximo da realidade dos médios empreendimentos”, destaca Souto. (
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>Tércio Saccol)