Entrevista - Stella Maris Bortoni-Ricardo

Concedida ao Jornal da Comunidade, Brasília 17 a 23 de abril de 2004

Jornalista Maiesse Gramacho


Jornal da Comunidade – A senhora tem buscado identificar as particularidades da fala e da cultura brasiliense. Como desenvolve essa pesquisa?

Stella Maris Bortoni-Ricardo – Eu comecei esse estudo na década de 80. Foi quando terminei meu doutorado e passei a orientar dissertações de mestrado nessa linha. Esse é um tema de interesse para nossa comunidade. Hoje eu trabalho levando em conta a articulação de três movimentos, que penso que expressam bem o que Brasília apresenta na fala de seus cidadãos. São eles: do rural para o urbano; do oral para o letrado; e do regional para o supra-regional.

A senhora pode explicar melhor do que tratam esses três movimentos?

A questão do rural para o urbano é uma temática da qual me ocupo desde meu doutorado. Brasília foi construída numa área de uma rica e tradicional cultura rural. E, no entanto, a cidade rompe com isso na medida em que ela própria representa a urbanização.   Brasília foi fundada num período que o Brasil como um todo estava passando por um processo de urbanização muito significativo. A urbanização no Brasil não aconteceu de maneira linear. Ela aconteceu em períodos e as décadas de 50 e 60, quando a capital foi inaugurada, foi um deles. Nesse sentido, a construção de Brasília foi um ícone dessa fase de urbanização por que passou o País. O interessante é que até hoje ainda estamos circundados de uma cultura basicamente rural. Isso influencia muito na linguagem e na cultura do brasiliense. A geração que vivia nas proximidades e que depois se mudou para cá ainda conserva características da fala da área rural. Mas os filhos e, certamente, os netos não conservam. Por outro lado, na região do Entorno, apesar da proximidade com Brasília, isso não acontece.

E do que trata o segundo movimento, do oral para o letrado?

Esse movimento mostra que passamos de uma cultura mais oral para uma cultura mais letrada. Porque sendo a capital e tendo mais recursos, aqui logo foram feitos investimentos para que tivéssemos um sistema escolar mais competente, mais organizado. Isso se reflete também, é claro, na linguagem. O DF tem um índice de escolaridade alto, não só nas taxas de alfabetização, mas também temos uma porcentagem alta de habitantes com curso superior, em relação ao resto do Brasil. A porcentagem de pós-graduados também é alta. Além disso, eu obtive um dado que me impressionou muito: o DF detém 25% dos computadores pessoais no Brasil. É preciso checar essa informação, mas se corresponder, de fato, à realidade, isso reflete bem esse movimento de passagem de uma cultura oral para uma cada vez mais letrada, digital.

E ao que corresponde o terceiro movimento – do regional para o supra-regional -identificado pela senhora em sua pesquisa?

O que tem chamado mais atenção ao longo desses mais de vinte anos de pesquisa é que nós, em Brasília, não desenvolvemos uma cultura regional como, por exemplo, os nossos vizinhos goianos ou mineiros. Goiânia, que também foi planejada e  é uma grande capital – até maior do que Brasília – é muito regional. Belo Horizonte, a mesma coisa. Quando temos a oportunidade de conversar com as pessoas de lá, percebemos um certo sabor local na sua fala e na sua cultura. O que tem marcado a fala e a cultura de Brasília é uma espécie de denominador comum da cultura nacional.

Isso pelo fato de ter gente de todas as regiões vivendo na cidade...

Exatamente. E também porque não temos uma predominância de um determinado grupo regional. Temos aqui nordestinos, mineiros, goianos... Mas os traços culturais desses grupos acabam ficando diluídos. Além do mais, a presença desses grupos regionais varia de uma cidade para outra do DF. Há cidades no DF em que há uma concentração maior de brasileiros oriundos do Nordeste e outras em que predominam os mineiros, os goianos, os cariocas.
A fala do brasiliense se torna mais dinâmica por causa desse contato com outros grupos regionais?

Esse contato dá uma certa dinâmica no sentido de incorporar palavras regionais, mas o que prevalece mesmo é um amálgama, que é uma mistura. Mas, ao misturar, a pesquisa não mostra o privilegiamento de nenhuma região. Não falamos como os cariocas ou como os cearenses ou como os catarinenses. Então, quando o brasiliense fala, ele não se associa a nenhuma região. Ao fazer isso, ele cria uma identidade lingüística própria. E essa identidade lingüística é a de um Brasil urbano, cosmopolita.

Já é possível falar em uma identidade cultural do brasiliense?

Essa identidade ainda está-se formando. Nós não podemos esperar que, em apenas 44 anos, a cultura de uma cidade se consolide. Mesmo assim, já temos uma produção cultural própria, mas ela ainda é limitada, em função da cidade ser nova. Podemos citar, nesse sentido, o cinema – com destaque para o trabalho de Vladimir de Carvalho – e, principalmente, a música. A música brasiliense é bem urbana, bem cosmopolita. De fato, a pesquisa vem mostrando que Brasília tem uma vocação cosmopolita. Mas, por outro lado, a pesquisa de Cíntia Corrêa, em sua dissertação de mestrado, em 1998, mostrou que os jovens residentes  na Ceilândia, por exemplo, tendem a preservar alguns traços da cultura nordestina, que é o grupo regional majoritário instalado ali. Assim, estamos diante de duas tendências: por um lado, a busca de um perfil cosmopolita nessa cidade e, por outro, a preservação de traços culturais e sociolingüísticos de certos grupos regionais em localidades específicas.

O brasiliense típico ainda não existe?Não, essa figura ainda está-se formando. Os brasilienses comentam que quando vão para outras regiões, as pessoas percebem que eles não são dali, mas ainda não conseguem identificá-los como sendo de Brasília.



Categoria pai: Seção - Entrevistas

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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