Ontem, 23 de março, fui entrevistada por uma equipe do SBT. A temática eram os números brasileiros do analfabetismo. Não costumo divulgar essas entrevistas, mas considerando o tema acabei por convidar alguns amigos , entre os quais os meus alunos, para assistirem ao Jornal do SBT , onde a entrevista seria veiculada. Mas havia notícias mais pontuais e relevantes, inclusive dois acidentes de avião. A minha entrevista ficou para outro dia, acredito.
Novo O professor e a construção do conhecimento
Novo A leitura de livros didáticos: uma situação negligenciada
Novo:Sociolinguística Educacional
Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB)
No prelo – Editora Contexto
(Foto: A Torre do Big Ben em Londres)
A professora e o aluno de sétimo ano, de 15 anos de idade, estão lendo uma crônica de Fernando Sabino em que o autor narra suas experiências como locutor de rádio:
_ “Todo mundo sabe que a BBC de Londres é uma das mais poderosas e bem organizadas estações radiofônicas do mundo.”, lê o aluno.
_ Onde fica Londres? – ela pergunta.
_ Nos Estados Unidos.
Ela esclarece e ele continua a leitura, até encontrar uma referência ao Big Ben.
_ O que você acha que é o Big Ben?
_ Que eu saiba é uma explosão que deu.
“A professora começa então a explicar a diferença entre ‘Big Bang’ e ‘Big Ben’.” O episódio é bem ilustrativo das dificuldades de compreensão leitora dos estudantes no Brasil.
Se estamos longe de sermos um país com um sistema modelar de educação, pelo menos já somos um país que avalia de forma séria e sistemática o resultado da aprendizagem nos diversos níveis de ensino, desde o final da década de 1990, quando se instituiu o SAEB (Sistema de Avaliação do Ensino Básico) hoje aperfeiçoado e substituído pela Prova Brasil.
Desde as primeiras aplicações do SAEB tem sido identificada no desempenho de nossos estudantes uma grande deficiência na compreensão leitora e no uso de operações básicas de cálculo. Os resultados mais recentes da Prova Brasil não indicam uma mudança substantiva nessa situação. Em outubro de 2008, o IBGEPNAD - Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio - causou espanto ao divulgar que 1,3 milhão de crianças, entre 8 e 14 anos, são analfabetas. Dessas, 1,1 milhão freqüentam escola.
A compreensão leitora está diretamente relacionada ao conhecimento de mundo que o leitor detém. Estudantes que têm pouco contato com textos escritos, em livros, revista, internet, ou qualquer outro suporte, dependem muito da mediação do professor para compreender os textos que leem, inclusive os seus livros didáticos (Cf. Bortoni-Ricardo, 2008a; 2008b; 2007).
Vejamos mais um exemplo de dificuldade de compreensão leitora relacionado às características do conhecimento de mundo que o leitor traz consigo para promover o seu diálogo com o texto. Trata-se da leitura de um conto de Luís Fernando Veríssimo feita por uma senhora de classe média, que foi alfabetizada em um programa de EJA (Educação de Jovens e Adultos). O tema são as agruras de um marido pego em flagrante de mentira. Durante o carnaval ele envia mulher e filhos para descansar na praia e fica em Porto Alegre alegando muito trabalho no escritório. Para seu desespero, porém, um importante jornal local estampa a sua foto vestido de havaiana, durante um baile, na companhia de outros colegas também devidamente caracterizados para o evento. O texto é a transcrição de uma ligação telefônica do marido para a esposa. Quando a narrativa se inicia, antes que a mulher esboçasse qualquer reação, ele se apressa a dizer que a personagem da foto não é ele. É alguém muito parecido. “Qual foto?” pergunta a mulher, que não havia visto o jornal. A partir desse primeiro ato falho segue-se uma sucessão de desculpas esfarrapadas que deixam bem evidente a má-fé do marido carnavalesco. A obra é uma tessitura da mais fina ironia, que é a marca registrada de Veríssimo.
Nossa colaboradora leu com interesse e razoável fluência o texto, mas ao tecer seus comentários finais expôs com convicção a pena que sentia do pobre marido que estava sendo tão mal interpretado pela esposa. Os pesquisadores responsáveis pelo registro da leitura e interpretação insistiram com ela que talvez o marido estivesse mentindo. Ela não admitiu essa hipótese. Na sua leitura o marido era a vítima.
Por que teria a leitora falhado na compreensão da força ilocutória do texto? Por que não captou as múltiplas pistas da ironia do contista? Possivelmente não foi desconhecimento de algum item do vocabulário. É mais provável que sua compreensão esconsa da intenção do autor resulte da falta de familiaridade com o gênero textual e também com outros trabalhos de Luís Fernando Veríssimo.
Desenvolver a competência leitora de seus alunos, com toda a complexidade que isso implica, bem como sua capacidade de trabalhar com as operações lógicas de matemática básica é provavelmente o maior desafio que se apresenta aos professores no Brasil. Esse desafio é mais grave quando os professores têm alunos provenientes de famílias com cultura predominantemente oral.
Pesquisas recentes do Instituto Paulo MontenegroIBOPE (www.ipg.org.com.br) mostram que cerca de dois terços dos adultos brasileiros são analfabetos funcionais. Portanto, entre os 53.028.928 milhões de estudantes matriculados no Ensino Básico, conforme o Censo Escolar 2008, um alto percentual tem famílias que não os podem ajudar a ler e escrever melhor. A tarefa fica então para os professores.
No exemplo com que iniciamos este texto, o aluno leitor foi capaz de construir sentidos da crônica que leu porque a professora realizou uma mediação oportuna e precisa. Mas essas estratégias de mediação dependem de duas circunstâncias: o docente tem de estar disposto a promover as intervenções e ser detentor do conhecimento necessário. A primeira está associada à própria filosofia didática que assimilou em seu curso de formação. A segunda, como já mencionamos, decorre de seu conhecimento enciclopédico, ou conhecimento de mundo, que se vai constituindo à medida que cresce sua familiaridade com a cultura letrada.
Parece inverossímil que um professor não esteja disposto a mediar o processo de compreensão leitora, já que a atividade estaria na própria essência do seu mister profissional. No entanto, há pesquisas que mostram certa inação dos professores diante de textos complexos que seus alunos têm de ler (Cf. Pereira, 2007). Muitas vezes o professor recomenda que a leitura seja feita em casa e o ônus da compreensão fica com o aluno.
Quanto à segunda circunstância – a formação do acervo de conhecimento enciclopédico letrado do professor – está diretamente relacionada à qualidade do currículo e do funcionamento de seu curso de formação.
O problema torna-se mais crítico, e o desafio mais contundente, se considerarmos que a formação dos professores, em nossa tradição escolar, privilegia muito mais os conhecimentos teóricos que as metodologias que os habilitem efetivamente a desenvolverem seu trabalho pedagógico em sala de aula.
Vejamos o que diz a esse respeito a pesquisadora Eunice Durham em entrevista à revista Veja (23112008):