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Jornal da Ciência

Ronaldo Mota

“Ensinar não ficou mais simples, transformou-se em mais complexo, como a vida e o mundo do trabalho que nos cerca”


Ronaldo Mota é professor titular em física da Universidade Federal de Santa Maria, pesquisador do CNPq, assessor especial do ministro no MCT, tendo sido secretário de Educação a Distância e secretário de Educação Superior no Ministério da Educação. Artigo enviado pelo autor ao “JC e-mail”:

Jose Ortega y Gasset, pensador espanhol, fez uma surpreendente comparação ao destacar a semelhança entre as dificuldades em modificar uma universidade e mover de endereço um cemitério. A analogia, segundo ele, é que os que lá residem ajudam pouco nas mudanças.

De fato, no que concerne às aulas tradicionais, pouco ou nada tem se alterado ao longo de décadas. O mundo extra-educação tem se alterado com rapidez e profundidade absurdas, enquanto as metodologias educacionais adotadas, em geral, têm se mantido essencialmente as mesmas.

O que esperar de um profissional, egresso de um curso superior, é tudo menos o mesmo, se compararmos décadas atrás com os tempos atuais. Um grande complicador é que o que se espera atualmente, em termos de competências, inclui os requisitos de ontem, demandando novos atributos sem abrir mão dos anteriores. Um resumo de todas as mudanças está na diferenciação entre competência técnica e competências múltiplas.

Houve um período que era quase suficiente o domínio de um conjunto razoavelmente delimitado de conhecimentos, associado a um elenco restrito de técnicas e procedimentos básicos contidos nos currículos padrão definidos para cada profissão. Cumpridos os créditos previstos, estava o formando preparado para aprender mais no exercício profissional, completando sua formação. Era dessa maneira pela simples razão que funcionava. O dilema atual é que simplesmente não funciona mais.

A radicalidade das mudanças necessárias invade todos os aspectos e ambientes, incluindo o espaço físico. No entanto, a sala de aula é sempre a mesma e reproduz e reforça o padrão do bom comportamento desejável do estudante calado.

Sentado em fileiras, invariavelmente bem separadas e organizadas tal que, dispostos um atrás do outro, estejam maximamente distanciados. Preparados para copiar a fala do professor e estudar depois, tal como previsto e apregoado. O espaço organiza a não interação, o não discurso entre os pares, em total não sintonia com o mundo do trabalho em que os estudantes, no futuro, estarão imersos em suas vidas profissionais.

Em complemento à competência técnica, existem múltiplas habilidades a serem desenvolvidas e estimuladas. Entre elas, destaco a competência emocional, a capacidade de trabalhar em equipe e a vivência em laboratórios no enfrentamento de situações problemas, elementos em geral inexistentes, ou pouco explorados, nos currículos típicos.

O aspecto comportamental é absolutamente crucial quando um profissional depara-se com um problema inédito, um tema inovador ou tecnologias recentes. Se ao longo do período escolar, o qual é rigorosamente infindo, essas emoções, que preparam para enfrentar desafios, não foram trabalhadas, este suposto cidadão, ainda que dominando as técnicas convencionais, terá enorme chance de fracasso.

Outra capacidade associadas às novas competências é o trabalho em equipe. No passado recente os exercícios profissionais eram atos majoritariamente isolados, à semelhança dos processos avaliativos típicos, onde a relação básica era entre um problema discreto e um indivíduo.

No futuro próximo, a imensa maioria dos desafios, em qualquer profissão, envolve um grupo de atores e um somatório de questões complexas e inter-relacionadas.

Não é mais aceitável que a preparação para ambientes tão distintos, o passado e o futuro, seja a mesma. No entanto, em que pesem boas iniciativas recentes, em boa parte das práticas educacionais, os processos avaliativos ainda baseiam-se em relações simples e singulares entre um educando isolado e um problema discreto e dissociado.

A competência de liderança dos estudantes, a capacidade de tomar iniciativa, a habilidade gerencial, a valorização do potencial criativo e da sensibilidade quanto ao ambiente em que estão imersos são atributos que raramente estão presentes nas avaliações, tanto de ingresso como de saída, dos estudantes de graduação.

O papel síntese das experiências em laboratórios, o incentivo aos trabalhos em grupo, a valorização do hábito de estudar antes das aulas, o estímulo à criatividade e o despertar da sensibilidade que reconhece no outro, e em si mesmo, as qualidades, peculiaridades e limitações são práticas pouco, ou nada, exercitadas nas metodologias clássicas adotadas.

Para tratar do avesso do avesso, insisto que nada disso isenta a necessidade de profundo conhecimento dos aspectos técnicos específicos (capacidade técnica). Os estímulos às novas competências não menospreza o conhecimento tradicional e mesmo os procedimentos padrão de avaliação. Não se trata de substituir, mas sim de agregar. Ensinar não ficou mais simples, transformou-se em mais complexo, como a vida e o mundo do trabalho que nos cerca.

 

Categoria pai: Seção - Notícias

Bye, bye, Bahia

 É quase meio-dia de quarta-feira de cinzas e Piatã curte a ressaca. Mas do outro lado da cidade, onde acontece o carnaval da Bahia,    Carlinhos Brown está puxando o  Arrastão, que é a despedida dos trios e o fechamento oficial da festa. 

Nos templos católicos por certo estão distribuindo bênçãos e cinzas num ritual de contrição. Hoje também a  CNBB  inicia a Campanha da Fraternidade, de 2009, cujo tema  é Segurança Pública. Bom tema.

Reina um profundo silêncio. Meus ouvidos o estranham, já acostumados que estavam aos ruídos de nosso Woodstock  tropical, em volta do palco do rock montado no bosque de coqueiros nesta praia . Dei uma volta pelo condomínio. Algumas casas de residentes veranistas já estão fechadas. Até os passarinhos estão dando um tempo, depois da folia. Não vi nenhum voejando entre as amendoeiras e os coqueiros. Alguns funcionários com seus uniformes verdes varrem sem pressa  as folhas que se acumularam sobre o gramado durante os feriados.

Eu também me preparo para retornar ao mundo real.  Não é simplesmente pegar o avião e me afastar da linha do  Equador, rumo ao sul e ao cerrado, que ainda deve estar fresco com as chuvas de fevereiro. Ir embora da Bahia é uma mudança de estado de espírito.  Dou adeus à praia, ao calor de mais de 38ºC. ,  à água de coco bem geladinha da barraca do Válter, na areia.  No ano que vem tem mais, se Deus quiser, completo  em minha linguagem interior, que é pra dar sorte.

Ontem à tarde, um caminhão barulhento vendendo  ‘uvas fresquinha , bem docinha’ direto do Rio Grande do Sul, parou em frente a esta casa que  foi o meu lar durante a temporada de praia na Bahia.  

Fui até eles, de short e de chinelos de borracha e comprei várias caixas. Só me faltavam os bobs na cabeça.   As uvas estavam  muito doces. Fiquei pensando neste Brasil contemporâneo, que permite aos produtores gaúchos distribuírem no Nordeste o surplus de sua safra de uva.  E pensei também nos carros com alto-falantes anunciando consertos de panelas, afiador de facas, milho verde e pamonha. Aonde foram parar? Talvez estejam proibidos pelas posturas municipais, no nosso caso de Brasília, distritais.

Tenho uma agenda bem pesada esperando por mim. Respondi a mais de uma dúzia de emails informando que estaria de volta depois de 26 de fevereiro, pronta para reassumir meus compromissos. Volto energizada, cheia de projetos. Para ser franca, estou até meio ansiosa para reiniciar o trabalho. Mas não sem antes curtir bem estas últimas horas à beira do mar.  É água no mar, é maré cheia ô, mareia ô,  mareia, é água no mar !

Bye, bye, Bahia. Obrigada pela boa acolhida.

 

Salvador, 25 de fevereiro de 2009

 

 

 

 

É quase meio-dia de quarta-feira de cinzas e a cidade curte a ressaca. Mas daqui a pouco, Carlinhos Brown vai puxar o Arrastão, que é a despedida dos trios e o fechamento oficial do carnaval. Nas igrejas católicas por certo estão distribuindo bênçãos e cinzas num ritual de contrição.

Reina um profundo silêncio. Meus ouvidos estranham, já acostumados aos ruídos de nosso Woodstock  tropical, em volta do palco do rock montado no bosque de coqueiros de Piatã. Dei uma volta pelo condomínio. Algumas casas de residentes veranistas já estão fechadas. Até os passarinhos estão dando um tempo, depois da folia. Não vi nenhum voejando entre as amendoeiras e os coqueiros. Alguns funcionários com seu uniforme verde varrem sem pressa  as folhas que se acumularam sobre o gramado durante os feriados.

Eu também me preparo para retornar ao mundo real.  Não é simplesmente pegar o avião e me afastar da linha do  Equador, rumo ao sul e ao cerrado, que ainda deve estar fresco com as chuvas de fevereiro. Ir embora da Bahia é uma mudança de estado de espírito.  Dou adeus à praia, ao calor de mais de 38ºC. ,  à água de coco bem geladinha da barraca do Válter, na areia.  No ano que vem tem mais, se Deus quiser, completo  em minha linguagem interior, que é pra dar sorte.

Ontem à tarde, um caminhão barulhento vendendo  ‘uvas fresquinha , bem docinha’ direto do Rio Grande do Sul, parou em frente a esta casa que  nos acolheu durante a temporada de praia na Bahia.  

Fui até eles, de short e de chinelos de borracha e comprei várias caixas.  As uvas estavam mesmo muito doces. Fiquei pensando neste Brasil contemporâneo, que permite aos produtores gaúchos distribuir no Nordeste o ‘surplus’ de sua safra de uva.  E pensei também nos carros com alto-falantes anunciando consertos de panelas, afiador de facas, milho verde e pamonha. Aonde foram parar? Talvez estejam proibidos pelas posturas municipais, no nosso caso de Brasília, distritais.

Tenho uma agenda bem pesada esperando por mim. Enviei várias dúzias de emails informando que estaria de volta depois de 26 de fevereiro, pronta para reassumir meus compromissos. Volto energizada, cheia de projetos. Para ser franca, estou até meio ansiosa para reiniciar o trabalho. Mas não sem antes curtir bem estas últimas horas à beira do mar.  É água no mar, é maré cheia ô, mareia ô,  mareia, é água no mar !

Bye, bye, Bahia. Obrigada pela boa acolhida.

 

Salvador, 25 de fevereiro de 2009

 

 

 

 

 

 

 

Categoria pai: Seção - Notícias

Quando é que começamos a sentir os primeiros sinais da velhice? Quando fiz cinquenta anos, há mais de uma década, meu filho me perguntou: _ Cumé, mãe, já dá pra considerar que a senhora já chegou à meia idade?  ( ele sempre me chamou de senhora, e não fui eu que ensinei isso a ele, acho que foi de me ouvir chamar os meus pais de ‘senhor’ e ‘senhora’. Respondi:

 _ Matematicamente, não há como negar os fatos, física e psicologicamente me sinto como me sentia aos trinta anos. E, de fato, ainda me sinto uma animada balzaquiana, para usar um termo que saiu de moda , mas que se refere a Honoré de Balzac, escritor francês que escreveu em 1842 uma popular novela “A mulher de trinta anos”, naquele tempo já considerada  quase uma matrona.

Dizem os otimistas, eu com eles, que temos a idade que sentimos ter. Mas não há como negar que a natureza cobra a sua fatura.  Lá, um certo dia, a gente vai ao médico e ele diz: _ A pressão da senhora está alta, vamos ter de prescrever um remedinho. _ Como? Pressão alta? Mas eu sempre tive pressão baixa. _  Mas aí a gente se lembra da história que nos contou o colega,  de nossa idade. Ele ia bem tranquilo passeando pelas ruas de Paris quando parou numa barraca onde um serviço médico tirava a pressão dos transeuntes. Para sua surpresa, foi diagnosticado como hipertenso e assim que retornou ao Brasil iniciou um tratamento.

O médico insiste: _ Há alguém com pressão alta em sua família?

_ Meu pai e minha mãe, e pelo menos, que eu saiba, minha avó paterna.

Ele sorri e acaba de redigir a receita e o remedinho de pressão entra no nosso menu diário.

E vêm outros indícios. Você se surpreende, descendo escadas com cuidado, mãos firmes no corrimão, escolhendo sapatos de saltos mais baixos e mais seguros; controlando o peso com mais empenho, diminuindo o sal da comida.

Hoje li uma crônica de Danusa Leão, de confessados mais de setenta anos, em que ela garante sentir pelo carnaval a ojeriza que seu pai manifestava e que ela não entendia. No entanto, admite sentir saudades do tempo em que ‘pulava carnaval’, observando que era assim que se dizia antigamente.

Eu também sinto saudades dos gloriosos bailinhos de carnaval. Como uma menina bem comportada, não cheirava lança-perfume, mas a fragrância de éter pairava no ar. Nos bailinhos de carnaval de minha infância e adolescência, sempre que eu podia fugir à vigilância dos  olhos  de minha mãe, sentadinha à mesa, e atentíssima ao movimento no salão, compensava toda a repressão com que nós, moças de boas famílias mineiras, éramos criadas.  Afinal, foi pra isso que o calendário gregoriano incorporou o carnaval antes da quaresma, como uma válvula de escape das emoções contidas e reprimidas. Eram uma alegria os bailinhos de carnaval.

Será que meu desinteresse pela muvuca do carnaval aqui na Bahia é mais um sinal da idade? É possível.  Para me  consolar ouvi, mais de uma vez hoje, “My way”, com Frank Sinatra.  E bom chegar aos sessenta anos sem ter que se arrepender  de nada do  que se fez, ou do que não se fez.

 I’ve lived a life that’s full.
I’ve traveled each and ev’ry highway;
And more, much more than this,
I did it my way.

Regrets, I’ve had a few;
But then again, too few to mention.
I did what I had to do

I did it my way.

Salvador, 22 de fevereiro   de 2008

 

 

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A escola de samba Beija-Flor de Nilópolis  levou ontem, domingo de carnaval, à Marquês de Sapucaí uma grandiosa homenagem ao banho, o nosso bom  banho de todo dia, recuperando  suas raízes ilustres, como os famosos banhos embelezadores  de Cleópatra e os sabonetes da Mesopotâmia, lá onde hoje se encontra o destruído Iraque.  Gostei do tema. Sinto um orgulho secreto, principalmente quando estou na Europa, de nosso hábito de tomar banho, às vezes vários por dia, quando o calor aperta. É um costume que perpassa todos os segmentos sociais e que costuma ser atribuído aos hábitos saudáveis dos indígenas brasileiros, que receberam Cabral e sua turma em Porto Seguro.

Darcy Ribeiro em seu último livro, “O Povo Brasileiro”, faz uma descrição empolgada dos nativos _ bonitos, saudáveis, limpos e nus _  espantados com  os portugueses recém-chegados nas caravelas apertadas e sem arejamento, cheios de escorbuto e piolhos. O antropólogo nessa passagem está certamente homenageando o bom selvagem  de Rousseau, que haveria de impregnar as páginas de José de Alencar e outros indigenistas no nosso Romantismo. Mas há um fundo de verdade na descrição. Diferentemente dos europeus que aqui aportavam, os brasileiros nativos, para usar um termo politicamente correto e tomado emprestado ao inglês norte-americano (“Native Americans”) estavam sempre dentro d’água, arpoando seus peixes com flechas ou apenas se refrescando da canícula tropical.

No verão de 2008 tive oportunidade de visitar as ruínas de Herculaneum, aos pés do Vesúvio, próximo a Pompeia. Em Herculaneum estão sendo realizadas profundas escavações, que revelam uma cidade romana de turismo, quase intacta, preservada após a morte coletiva de seus moradores, pela intoxicação de gases da erupção vulcânica no século I da era cristã.

Fiquei impressionada especialmente pelas instalações dos banhos públicos, saunas aquecidas a lenha, revestidas de azulejos, com requintes de conforto como pequenas ranhuras no teto para o vapor escorrer. E há antessalas onde os frequentadores  guardavam seus pertences. Um luxo, e bem revelador do gosto pelo banho que  os gregos  e os romanos exibiam na Antiguidade.

Por informação de oitiva, aprendi que o hábito do banho foi abandonado na Europa durante as trevas da Idade Média _ uma fase terrível da humanidade, que além de ignorante tornou-se suja. Vêm dessa época os costumes de as noivas se casarem no mês de maio, em plena  primavera, quando o clima lhes permitia tomar um banho anual, e de carregarem um buquê de flor de laranjeira, que espantava maus odores.

Se a ojeriza ao banho teve início na Idade Média possivelmente persistiu um bom tempo já no Renascimento. Quem visita palácios reais imponentes, que abrigavam cortes européias  nos primeiros séculos da Idade Moderna, como  o Hampton Court Palace, nas cercanias de Londres,  Versailles, próximo a Paris, ou Queluz e Sintra em Portugal,  em vão procura por quartos de banhos. Na corte dos Tudors, onde Henrique VIII, como um Barba-Azul, foi colecionando esposas, entre as quais algumas perderam literalmente a cabeça, há muitas câmaras que antecedem os dormitórios reais,  usadas pelos monarcas para despacho com seus ministros. Havia  certamente espaço para Elizabeth I guardar seus três mil vestidos, que por certo nunca eram lavados, mas não se vê qualquer cômodo que lembre uma casa de banhos.  O mesmo padrão se repete nas cortes de Portugal e França. Nem sinal de banheiro, nem mesmo junto aos quartos dos delfins e herdeiros dos tronos.  Fica explicada, pois, a vocação francesa  para a criação dos perfumes tão famosos até os nossos dias.

 Na Inglaterra estive em muitas casas com vários quartos e somente um banheiro, às vezes localizado do lado de fora da cozinha. Uma vez me mostraram as plantas  de arquitetura de um conjunto de casas pré-moldadas que tinham intenção de construir também no Brasil.  Fui logo observando.  Se quiserem vender esse projeto no Brasil, vocês têm que incluir pelo menos uns três banheiros em cada casa.

Pois no Brasil gostamos de tomar banho. Frequentemente encontro em Brasília operários saídos de um dia de trabalho pesado na construção civil ou empregados domésticos  retornando a suas casas, com os cabelos ainda molhados e o corpo recendendo a sabonete. Dá gosto de ver. Em boa hora a escola de Nilópolis escolheu o banho como tema de seu carnaval de 2009.

Salvador, BA, 23 de fevereiro de 2009

 

 

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Carnaval na Bahia com Franz Schubert  e rock and roll.

 

Tenho acompanhado o carnaval da Bahia e tudo o mais que acontece nesta capital de Todos os Santos pela Rádio Educadora FM ( cento e sete ponto cinco; cento e sete  ponto cinco).

Sempre que estou em casa, às  18 horas, ligo o rádio para ouvir a Hora do Ângelus. A Educadora manteve a tradição de tocar uma Ave Maria às seis horas da tarde. Sei que algumas emissoras ainda  prestam essa homenagem aos católicos, mas não são muitas. Eu gosto muito da Ave Maria de Franz Schubert. Quando vou a cerimônias religiosas de casamento, aguardo com ansiedade o momento final, do cortejo dos noivos e seus pais e padrinhos. Com frequência,  eles desfilam pela ala central do templo, ao som de Schubert.

Ontem, cumpri minha rotina e localizei a Educadora no dial do rádio mas, para minha surpresa, a música entoada foi um hino ao Senhor do Bonfim. Que me pareceu mais um hino cívico, daqueles que aprendíamos na escola, que um canto religioso.

Compreendi a intenção da emissora, ao procurar abrasileirar a Hora do Ângelus, preservando seu caráter religioso. Poderiam também ter tocado a Ave Maria do Morro de Herivelto Martins, mas talvez essa não seja muito percebida como um hino religioso.  Senti, contudo, falta do Schubert. Para ser franca, nem me lembro mais de que é austríaco. Para mim sua obra mais conhecida já faz parte do acervo da humanidade. Não é uma ‘lied’ vienense, é uma canção que me emociona, cujas palavras em latim eu procuro acompanhar. Quando a ouço, depois me pego, muitas vezes, cantarolando a oração, embora eu saiba que não se trata de música para ser cantarolada distraidamente, enquanto executamos alguma tarefa  doméstica. Para não ficar muito frustrada ouvi hoje no You Tube essa Ave Maria  na voz de Luciano Paravotti. Uma beleza.

O carnaval de Salvador surpreende. As atrações principais são os trios elétricos, onde se apresentam as celebridades da música baiana. Custa caro sair atrás de um trio, dentro das cordas, onde ficam os privilegiados que pagaram uma boa grana pelo abadá.  Do lado de fora da corda ficam os pipocas, que não têm abadá. A imprensa local critica essa situação, pouco democrática na visão dos jornalistas. Mas há trios sem corda, tipo zero oitocentos, gratuitos e   os blocos tradicionais,  que saem pelo Pelourinho, com uma bandinha de sopro à  frente, tocando furiosamente “Mamãe eu quero”; “Eu fui às touradas de Madri, para rá tim bum,  bum, bum”;  “Ô jardineira por que estás tão triste, mas o que foi que te aconteceu?” . E tem sucessos de Emilinha Borba, Linda Batista, Blecaute ...  Misturam marchas de  décadas distantes entre si. Depois de tocar marchinha cantada por  Carmen Miranda: “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim...” ou composição   de Braguinha: “Chiquita bacana lá da Martinica”,  seguem com  Blecaute: “Menina, vai, com jeito vai, senão um dia, a casa cai”   e emendam Moacir Franco: “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí”.

Uma vez, há poucos aos, acompanhei um bloquinho desses, o Dois de Fé,  e tive uma enorme sorte. A menina que seria porta-bandeira não compareceu. Como a roupa de baiana , linda, azul e branca, em homenagem à Iemanjá, me servia, perguntaram se eu não podia levar o estandarte. Aceitei sem titubear.  Foram meus quinze minutos de glória, que duraram umas três horas, subindo e descendo as ladeiras do Pelô. Nunca me senti mais importante na vida. Conto essa história e muitos não me levam a sério. Acham que estou delirando. Pois é pura  verdade. Pena que não haja fotos para confirmar minha apoteose carnavalesca.. Mas há algumas testemunhas oculares do evento.

 Hoje, enquanto rememoro essa minha passagem  gloriosa pelo carnaval da Bahia, ouço rock and roll. É que aqui perto, na área de coqueiros de Piatã, a prefeitura monta um palco para uma tribo muito especial de rock pauleira. São  jovens vindos de todo o país, vestem-se de preto e tocam uma música que alguém, de minha idade, tem problema em reconhecer como tal.  Mas, aparentemente, se divertem muito, e não deixam de comparecer ano após ano.  Eles têm direito ao tipo de carnaval que os faz felizes, assim como eu fui muito feliz naquela vez que saí de baiana, à frente do nostálgico bloquinho de carnaval.

Salvador, 21 de fevereiro de 2009 .

 

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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