EDUCAÇÃO
Um passo além de alfabetizar
Uma pesquisa mostra que o problema não é mais ensinar as crianças a ler, e sim a interpretar o texto
QUALIDADE
Creso Franco, um dos coordenadores do estudo que avalia 20 mil alunos para propor melhorias no ensino
O ministério da educação divulgou na quinta-feira o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de cada escola do país. Todas as unidades ganharam uma nota que leva em conta o desempenho e a discrepância entre a idade dos alunos e a série em que deveriam estar. A partir de agora, cada escola sabe quanto será preciso aumentar essa nota por ano para que a média nacional do Ideb, hoje de 3,8, suba para 6 até 2021. Com a meta traçada, começa a fase mais difícil: estabelecer as estratégias locais. A pergunta é a mesma para toda escola: como melhorar?
A resposta pode estar na maior pesquisa na área da educação em andamento no país, a Geração Escolar (Geres), que acompanha 20 mil alunos em seis cidades brasileiras. Depois de avaliá-los no início e no fim do 2o e 3o anos do ensino fundamental (1a e 2a séries no modelo antigo), os pesquisadores chegaram a uma conclusão que derruba o senso comum entre educadores: a suposta deficiência na alfabetização não é a origem do baixo desempenho na primeira fase do ensino fundamental. O problema está em sua consolidação. Ou seja, os alunos aprendem a ler e a escrever as palavras, mas não sabem interpretar um texto e articular as idéias de uma redação. Segundo a pesquisa, é nessa fase que as escolas devem investir se quiserem melhorar o Ideb. “Nossas avaliações mostram que eles aprenderam bastante no 2o ano. Se o ritmo continuasse assim, teríamos resultados bem diferentes nas avaliações nacionais”, diz Creso Franco, professor da PUC-RJ e um dos coordenadores da pesquisa. “Já quando testamos o 3o ano, os mesmos alunos aprenderam pouco.”
A Geração Escolar vai acompanhar os alunos durante quatro anos e é elaborada, em conjunto, por seis dos principais centros de pesquisa do país: PUC, Unicamp e as universidades federais de Minas Gerais, Juiz de Fora, Bahia e Mato Grosso do Sul.
Segundo Creso, a principal razão para o ritmo de aprendizado cair é que, no 3o ano, as escolas perdem o foco do que devem ensinar. Embora a idéia de que o aluno deve sair alfabetizado do 2o ano já esteja consolidada, poucas dão a mesma atenção à leitura e à interpretação de texto nos anos seguintes, quando outros elementos costumam aparecer para desviar a atenção dos alunos. O primeiro deles é a gramática. Há professores que trabalham a diferença entre o substantivo e o adjetivo antes de apresentar todas as modalidades de texto existentes.
O segundo obstáculo observado pelos pesquisadores é a pequena oferta de livros e revistas. Segundo o Censo Escolar, apenas 53% dos alunos do ensino fundamental têm acesso a uma biblioteca em sua escola. Para Creso, uma das melhores maneiras de desenvolver a leitura é alternar livros didáticos, literários, revistas e tabelas.
A PRIMEIRA
O Ciep Prof. Guiomar Neve, no Rio, está com 8,5 no Ideb. Sua meta para 2021 é 9
O desafio para as escolas agora é mudar de estratégia. Como o Ideb combina desempenho e fluxo escolar, os diretores precisarão bolar planos para melhorar o ensino e manter os alunos na série equivalente a sua idade. “Na prática, vai ser difícil ver os dois resultados ao mesmo tempo. Os primeiros Idebs devem mostrar melhora pela diminuição da reprovação”, diz Creso. Isso porque as escolas que passam por grandes reformas costumam apresentar uma queda da qualidade no primeiro ano. O progresso só aparece depois.
Além de investir na qualidade, Creso acredita que as escolas ou gestores municipais e estaduais devem criar mecanismos para restringir a reprovação. “O Brasil tem um dos índices mais altos do mundo. Isso é ruim, porque muitas escolas desistem de alunos já considerados repetentes. Dificultar a reprovação obrigaria o professor a investir nesse aluno”, afirma.
A equação criada pelo governo evita que as escolas aprovem todos os alunos para melhorar o Ideb. Se isso acontecer, a nota cai, derrubando o índice. Mas ainda há brechas para burlar o resultado. Uma delas é enviar os alunos mais fracos para casa no dia da avaliação, como aconteceu na Inglaterra quando foi criado o sistema de metas britânico.
A Geração Escolar, ainda em curso, vem em boa hora. Na mesma semana em que divulgou o Ideb por escola, o Ministério da Educação lançou um selo para premiar as cidades que têm mais de 96% da população alfabetizada. Entre as 47 medidas do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), o programa Brasil Alfabetizado é considerado uma das quatro principais ações pelo ministro Fernando Haddad.
Embora o Brasil produza mais de 2 mil teses de mestrado em educação a cada ano, a Geres é a única pesquisa que está acompanhando os mesmos alunos ao longo de quatro anos nas escolas. Com isso, será possível identificar quais os diferentes impactos da escola no aprendizado individual. A falta de clareza nas ações para melhorar a educação é, em parte, conseqüência direta da escassez de pesquisas qualitativas na área. Agora, pela primeira vez, o governo estabeleceu um plano de metas para a educação no Brasil. Só precisa tomar cuidado para não repetir o erro das escolas, que perdem foco no decorrer dos anos. Apenas com um diagnóstico claro de onde estão os problemas será possível avançar na educação.
Cada escola tem sua meta
As piores no Ideb serão as mais cobradas. Hoje, as melhores estão no Sudeste
As primeiras colocadas ESCOLA Ciep 279 Prof. Guiomar G. Neves Centro Eduacional Januário de Toledo Emef Profa. Helena Borsetti Escola Estadual Carvalho Brito
Colégio Pedro II – Tijuca 1
Onde fica Trajano de Moraes, RJ São Sebastião do Alto, RJ Matão, SP Guaranésia, MG Rio de Janeiro, RJ
Ideb hoje 8,5 8,1 7,3 7,1 7,1
Meta para 2021 9 8,8 8,4 8,3 8,2
As últimas da turma ESCOLA Monteiro Lobato Esfinge Santa Rita Professora Vera Lúcia Costa José Paraguassu Guerreiro
Onde fica Reserva do Iguaçu, PR Lauro de Freitas, BA Valparaíso de Goiás, GO São Jerônimo da Serra, PR Cotegipe, BA
Ideb hoje 0,1 0,1 0,2 0,2 0,2
Meta para 2021 5,5 4,7 5 5,3 4,7
Educação
Educar é medir,
ter metas e cobrar
Novo indicador do MEC diz quanto
cada escola do país deve progredir
Mede-se de tudo em sociedades modernas: do nível de riqueza do país aos hábitos à mesa de sua população. Indicadores ajudam a traçar cenários para a economia que orientam decisões em empresas e governos. Dados socioeconômicos dão contornos às políticas públicas. Até a década de 80, o Brasil era ainda um país pouco afeito a estatísticas, limitado a números produzidos a cada dez anos por meio dos censos. Sobre as escolas brasileiras, sabia-se que eram assoladas por taxas de repetência similares às de países africanos. E só. Apenas em 1990 surgiu o primeiro medidor no país para aferir a qualidade da educação, o Saeb, seguido de uma leva de avaliações durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O governo Lula intensificou ainda mais as medições, o que permitiu, enfim, enxergar com precisão as deficiências em sala de aula em todos os níveis de ensino. Na semana passada, o Ministério da Educação (MEC) divulgou um novo ranking de escolas públicas de ensino fundamental – o mais completo já feito no país. É o mais recente dos medidores oficiais, o Ideb. Os especialistas o definem como um avanço em relação aos outros: ele não só mostra um panorama da educação brasileira como, pela primeira vez, estabelece metas objetivas para 46.000 escolas públicas do país. É um sistema de cobranças e incentivos. As escolas que superarem a meta receberão mais verbas. Resume o ministro Fernando Haddad: O objetivo é fazê-las chegar em quinze anos ao padrão dos países desenvolvidos.
O estímulo para que as escolas brasileiras elevem o nível vem em boa hora. O Ideb mostra que elas ainda estão a anos-luz da excelência. Eis o pior dado: a média geral, segundo o novo medidor, não passou de sofríveis 3,8 (numa escala de zero a 10). Raríssimas escolas da lista não tiraram nota vermelha na avaliação. Mais precisamente, 178 delas, solitárias ilhas de bom ensino que conseguiram cravar notas acima de 6 – a média da OCDE (organização que reúne países da Europa e os Estados Unidos). Sim: apenas 0,3% das escolas brasileiras oferta ensino de qualidade comparável ao que predomina nas salas de aula dos países mais ricos. Sobre elas, o levantamento do MEC traz um dado surpreendente: o melhor ensino público do país não aparece apenas nas escolas que recebem mais dinheiro do governo ou ficam nas maiores cidades do país, mas, também, naquelas sediadas em municípios mais pobres e menos conhecidos. Esse é o caso da metade das escolas que fugiram da zona de notas vermelhas, segundo o Ideb. O resultado ajuda a derrubar um velho mito, o de que só há bom ensino onde sobra dinheiro.
Ao revelar o mapa da excelência, o novo medidor do MEC também tem o mérito de jogar luz sobre práticas que levam ao sucesso escolar. A maioria delas não é mirabolante – tampouco é dispendiosa. As boas escolas, sobretudo as do interior, costumam enfrentar suas mazelas com o esforço de gente como Milena Ferreira, 26 anos, diretora do colégio Helena Borsetti, em Matão, no interior de São Paulo. É a terceira melhor do país, no ciclo de 1ª a 4ª série, segundo o Ideb. Para sanar a falta de uma biblioteca, Milena liderou na cidade um mutirão para arrecadar livros. O saldo: 800 volumes doados em uma semana. Eles ficam à disposição dos alunos em duas caixas de papelão. As crianças amam ler, orgulha-se a diretora. O exemplo de Matão ilustra uma idéia bastante propagada no mundo acadêmico: a de que diretores engajados às questões do ensino são a alma de uma boa escola. Um levantamento com as vinte campeãs no Ideb mostra que todas elas estão sob o comando de um diretor que está no cargo há pelo menos três anos. Nas outras escolas do país, a média é de um novo diretor por ano. Conclui Maria Helena Guimarães, secretária de Educação no Distrito Federal: Educador bom é aquele que leva o trabalho às últimas conseqüências e se responsabiliza pelos resultados.
O Ideb mostra, em suma, que bom ensino não depende de soluções mágicas, mas, sim, de empenho. Nas escolas campeãs, a equipe de educadores certamente trabalha mais (e queixa-se menos) do que a média nacional, os pais são mais entusiastas da rotina escolar e os estudantes passam mais tempo em sala de aula. Colégio número 1 no ranking de 1ª a 4ª série, o Ciep Guiomar Gonçalves Neves oferece há cinco anos período integral. A decisão de esticar a jornada de estudos foi tomada em conjunto com os pais (e não significou um centavo a mais à folha de pagamento). Os professores apenas seguiram com o estabelecido em contrato: quarenta horas semanais dedicadas ao colégio. A campeã está sediada em um dos vários cenários improváveis para a excelência acadêmica revelados pelo Ideb. Fica em Trajano de Morais, município de 10.000 habitantes a 250 quilômetros do Rio de Janeiro, onde se vive do cultivo de frutas e legumes. Os pais dos estudantes ganham em média dois salários mínimos por mês – e muitos não venceram as primeiras séries do ensino fundamental. Ainda assim, a escola consegue o feito de formar alunos com raro entusiasmo pelos estudos. Um dos melhores da turma, o estudante Marco Aurélio do Amaral, de 12 anos, tem a reputação de prodígio da matemática e traduz o clima local: As aulas são ótimas.
De novo, o Ideb remete à idéia do esforço para chegar ao bom ensino. Em escolas campeãs, como a de Marco Aurélio, os professores não só cultivam o hábito de preparar as aulas (básico, porém raro no país) como também estudam mais. Enquanto 32% dos professores brasileiros nunca pisaram numa universidade, nas vinte melhores escolas do país 92% têm diploma de graduação, sendo que 63% poliram seu currículo com uma especialização. Em alguns casos, o que os atrai às boas escolas é um fator meramente subjetivo: Elas levam o ensino a sério. Noutros casos, essa elite de professores é motivada por meio de bons planos de carreira, como o do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp), campeão no ranking de 5ª a 8ª série. Tem-se lá um sistema raro – e de bom resultado. A cada nova especialização, os professores ganham aumento de salário e licença de até quatro anos para prosseguir com os estudos. Com esse tipo de política, o CAp segura em seus quadros profissionais como a professora Ana Lúcia Mayor, de 44 anos, doutora em literatura. Aqui se valoriza o mérito. A professora pertence a uma minoria de escolas patrocinada pelo governo federal. Elas recebem quatro vezes mais dinheiro do que os outros colégios e emplacaram oito das vinte campeãs do novo ranking.
Um indicador como o Ideb não só contribui para divulgar os bons exemplos como também revela, para a maioria das más escolas, o abismo que as separa da excelência. O diagnóstico oficial deveria servir como ponto de partida para uma mudança nos rumos em sala de aula. O problema é que, no Brasil, medidores como o Ideb costumam passar em branco nas escolas – boas e ruins. Ao ouvir que o colégio municipal Esfinge, de Lauro de Freitas, na Bahia, havia aparecido em último lugar no ranking do MEC, com média 0,1 (sim, na mesma escala de zero a 10), Nailma dos Santos indagou: Ideb? É um novo canal de televisão?. Detalhe: Nailma é a diretora da escola. Ao ignorar a existência do novo indicador, ela também não levará em conta a meta estipulada pelo MEC para que sua escola suba de nível. Deveria. No fim do 3º ano do ensino fundamental, as crianças de lá ainda aprendem as primeiras sílabas. A escola de Lauro de Freitas não é a única do estado no ranking das vinte piores do país: são ao todo dez escolas baianas na rabeira (o estado só ficou à frente de Alagoas). Outra que fracassou foi a estadual Celina Pinho, de Salvador. Em meio a uma greve de professores que já passou de um mês, a escola é palco de violência entre os estudantes – e de salas abandonadas. Questionado sobre o paradeiro da diretora, um aluno que havia decidido atender o telefone respondeu: Foi passear.
Os dois péssimos exemplos vindos da Bahia infelizmente não são os únicos revelados pelo MEC. O conjunto deles não deixa dúvida sobre a urgência de um medidor como o Ideb passar a ser levado a sério. A experiência mostra que indicadores do gênero têm sido ignorados no Brasil não apenas por desconhecimento mas, principalmente, pela aversão a levantamentos cujos dados permitem montar rankings, indicadores de quem está fazendo mais com o mesmo e até com menos. O discurso-padrão de professores e alunos que preferem boicotar as avaliações baseia-se na ladainha ideológica segundo a qual é injusto comparar instituições egressas de realidades tão diferentes ou humilhar as piores ao dar visibilidade a seus fracassos. Esse discurso não cola mais. Eles ignoram o que há décadas se depreendeu da experiência internacional. Os rankings têm gerado em outros países uma saudável competição entre escolas e universidades – e servido como estímulo para que as piores elevem o nível das aulas. No Brasil, país lembrado como um dos melhores em avaliações do ensino, tem-se ainda efeito quase nulo dos vários indicadores disponíveis. Até hoje, nenhum deles teve uso prático, diz o ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza. Espera-se que agora, com a cobrança de metas, as escolas passem a prestar mais atenção nos números. Elas serão reavaliadas a cada dois anos. Segundo o MEC, todas deverão chegar à nota 6, média do mundo desenvolvido, até 2022. O Ideb mostra que lhes resta, ainda, um longo caminho pela frente.
As várias medidas da educação
Além do novo Indice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), o MEC aplica outras cinco avaliações para testar os estudantes e auferir a qualidade do ensino – em geral, péssima. Eis a lista
NO ENSINO BÁSICO
IDEB (Indice de Desenvolvimento da Educação Básica)
O que é: um novo indicador que resulta do cruzamento das notas dos estudantes na Prova Brasil ou no Saeb com a taxa de aprovação dos alunos. Serve para medir a qualidade do ensino por escola, município e estado – e é o primeiro a estabelecer metas para sua melhoria
Fotos Paulo LiebertAE e Ag. RBS
ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio)
O que é: uma prova anual para medir o nível dos estudantes de escolas públicas e particulares ao fim do ciclo básico. Faz quem quer. Os alunos podem usar a nota no exame para pleitear bolsas universitárias no MEC e ingressar em 23% das faculdades
PROVA BRASIL
O que é: o único exame oficial que abrange alunos de 41000 escolas públicas de ensino fundamental do país. Com base no resultado dos estudantes, cada escola recebe uma nota e um lugar no ranking nacional
SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica)
O que é: prova aplicada a uma amostra de estudantes (definida por sorteio) de escolas públicas e particulares. O objetivo é mapear as deficiências gerais no ensino e as falhas específicas de estados e municípios
NO ENSINO SUPERIOR
Federal do Rio Grande do Sul: destaque no Enade
ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes)
O que é: sucessor do Provão, o teste mede o nível de conhecimento de uma amostra de estudantes sorteada nos 13000 cursos de graduação do país, entre novatos e formandos. Com base no resultado, os cursos recebem uma nota que permite compará-los
SINAES (Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior)
O que é: avaliação que confere notas às universidades com base no resultado do Enade e em outros dois critérios: a opinião de uma comissão de especialistas e a (bem mais subjetiva) auto-avaliação das instituições
Cartilha nota 10
Um levantamento sobre as vinte escolas campeãs no novo ranking
do Ministério da Educação (MEC) ajuda a entender por que elas se tornaram raríssimas ilhas de excelência no ensino brasileiro
PROFESSORES COM CURSO SUPERIOR COMPLETO
Escolas campeãs: 92%
Média brasileira: 68%
JORNADA ESCOLAR
Escolas campeãs: 5 horas diárias
Média brasileira: 4 horas diárias
LEITURA OBRIGATÓRIA
Escolas campeãs: de 4 a 12 livros por ano
Média brasileira: a maioria das escolas não faz exigências de leitura
PERMANÊNCIA DO DIRETOR NO CARGO
Escolas campeãs: pelo menos 3 anos
Média brasileira: 1 ano
Fontes: Inep e OCDE
Escolas reprovadas
O novo índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb) retrata a péssima qualidade das escolas brasileiras.
Numa escala de zero a 10...
...a média das escolas foi 3,8
...apenas 0,3% delas superou a nota 6
...a campeã do ranking tirou 8,5
Com reportagem de Renata Agostini
O professor deve ganhar mais?
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Jaime Pinsky
Historiador, professor titular aposentado da Unicamp, diretor da Editora Contexto, é autor de vários livros, entre os quais O Brasil tem futuro?
Afinal, professores ganham mal ou são bem remunerados? A julgar por algumas notícias, pululando ao mesmo tempo em diferentes órgãos de imprensa, a questão salarial do professor é um falso problema. Para alguns arautos da modernidade educacional, a própria questão das verbas da educação seria um falso problema, de fácil resolução por bons administradores e economistas (a educação seria assunto sério demais para ser entregue a educadores).
Com todo o respeito aos tecnocratas, não me parece que o problema seja tão simples de resolver (afinal, um economista dirigiu a educação brasileira por oito anos e, a julgar pelos resultados, não parece que tenha feito trabalho tão brilhante), embora esteja de acordo com a necessidade de que deva ser pensado com a cabeça aberta, sem dogmas. É inegável que ineficiência administrativa e métodos ultrapassados de gestão (fáceis de observar no dia-a-dia das escolas e dos órgãos governamentais) são obstáculos para a transformação da educação que temos para aquela que queremos, mas há outros problemas além desses.
É fundamental que tanto autoridades educacionais, quanto os professores na sala de aula, introjetem o fato de que, para o bem e para o mal, sobrou pouco espaço para a escola que informava, para o mestre que possuía o monopólio do conteúdo. Antes da era da informação da sociedade, autoridades, pais e professores decidiam em conjunto (e à revelia dos alunos) o que, quando e como se deveria ensinar. A seriação de informações colocadas à disposição do educando definia quando ele ia conhecer, por exemplo, o corpo humano e questões ligadas à sexualidade.
Hoje, com a televisão e a internet, a criança e o jovem pesquisam os assuntos que lhes interessam, quando lhes interessam e da forma que lhes interessam, à revelia dos pais, das autoridades educacionais, da sociedade e dos professores. Noutras palavras, é o jovem que determina, a partir de estímulos sociais e biológicos, o volume e o ritmo de informações que deseja receber.
A nova realidade exige um professor diferente do que existia há 50 anos. Agora ele não tem mais o monopólio de informação e, quando tenta (e isso ainda é freqüente) atuar como fonte, fracassa miseravelmente, perdendo a atenção da classe, já que não pode concorrer com outras mais modernas, coloridas e sofisticadas colocadas à disposição dos jovens de hoje.
Isso significa que o professor não tem mais papel na sociedade moderna, que todo o sistema educacional está fadado ao fracasso? Ao meu ver, não. Cabe ao professor transformar-se, assumir que não lhe cabe mais simplesmente informar, mas explicar, estabelecer conexão entre o universo cultural dominado pelo aluno e o patrimônio cultural da humanidade. Cabe ao professor ser culto para ter condições de mostrar a rica herança que todos os seres humanos carregamos àqueles estudantes que adquiriram, fora da escola, informações desconexas, insuficientes para situa-los, como seres históricos, responsáveis, agentes e não simplesmente pacientes.
Agora chegamos ao segundo ponto. Para ter uma base cultural que lhe permita realizar suas novas funções a contento, esse professor precisa estudar, ler muito, ver bons filmes. Não pode transformar a docência numa atividade burocrática, feita sem objetivos e sem entusiasmo. Não dá para sair de uma sala e entrar noutra, falar para corpos sem rosto, ver hostilidade e indiferença e reagir com indiferença ou hostilidade. As crianças e jovens precisam da escola, mas não da escola chata, sem atrativos. O professor precisa se requalificar para poder educar.
A questão não é só salarial. De acordo, mas também é salarial. Poucos conseguem realizar leituras proveitosas após uma jornada tensa de 50, 60 horas por semana. O mais razoável seria pagar o suficiente para que professores não precisem acumular aulas em excesso. Mas não é só. Todo professor precisa, por exemplo, ter sua biblioteca particular, por menor e mais selecionada que seja.
Que tal o MEC, junto com as secretarias estaduais e municipais, patrocinarem a formação de uma biblioteca de formaçãoatualização dos professores da escola pública fundamental e média no Brasil inteiro? Não para a escola, mas para cada professor. É um absurdo professores não terem uma pequena biblioteca em casa. Sem o professor motivado, bem remunerado e altamente qualificado, nunca teremos uma educação pública de qualidade.
DESTAQUES
O preconceito contra o analfabeto
Por Maria Clara Di Pierro (USP) e Ana Maria Galvão (UFMG)*
Iniciamos o livro O preconceito contra o analfabeto narrando um episódio: em um momento de formação de alfabetizadores de jovens e adultos, foi solicitado que as pessoas explicitassem a primeira idéia que vem à mente quando ouvem a palavra analfabeto. Uma análise dos significados das expressões mencionadas permite discernir um primeiro grupo de respostas que caracterizam o sujeito pelos atributos que lhe faltam: o analfabeto é alguém que não sabe ler e escrever, é alguém que não é capaz, não é preparado, não é informado, não é humanizado, não tem conhecimentos. As expressões que se referem às características que o sujeito tem são menos freqüentes e carregadas de sentido negativo: ignorantes, dependentes, cegos, sofredores, coitados e alienados. Menções a expressões positivas e valorizadas como cidadão, sabedoria e curioso configuram exceções a esse quadro mais geral. Um outro grupo de expressões citadas procura explicar os motivos que levam à existência de pessoas analfabetas na sociedade brasileira, vinculando o analfabetismo à exclusão social, à pobreza e à fome, à dominação de classe e à ausência de direitos. Um terceiro grupo de expressões relaciona o analfabetismo ao preconceito e à discriminação. Esse rápido exercício permite constatar que a palavra analfabeto é carregada de significados negativos, pré-julgamentos e estigmas que permeiam as relações das pessoas com os que se encontram nessa condição.
Na sociedade da informação e do conhecimento pode parecer natural a existência de preconceito contra aqueles que não sabem ler nem escrever. É difícil desvencilhar-se das armadilhas do preconceito quando ele se refere a uma condição social que não se deseja afirmar, como é o caso do analfabetismo nos contextos culturais permeados pela escrita. Nesse território pleno de ambigüidades, um passo necessário para produzir contra-discursos que contribuam para romper estereótipos e estigmas é a busca de uma compreensão mais aprofundada do processo de construção e legitimação dos preconceitos.
Disseminado diariamente na mídia e manifesto nas mais diversas situações de interação, o preconceito é introjetado por aquele que não sabe ler nem escrever: vê-se como cego, como ignorante, como aquele a quem falta algo para corresponder às expectativas sociais. Por outro lado, na análise dos seus discursos percebe-se, também, em uma aparente contradição, expressões de resistência à desvalorização sociocultural e a força das táticas utilizadas cotidianamente para driblar as dificuldades advindas de sua inserção em uma sociedade grafocêntrica.
A construção social dessa visão negativa das pessoas analfabetas é resultante de um processo histórico, e sua análise nos ajuda a mostrar que o letramento não é um bem universal, intrinsecamente positivo, na medida em que está sempre referido a contextos específicos, que atribuem a ele um maior ou menor valor.
No Brasil, durante o Período Colonial e mesmo durante o Império, enquanto a sociedade predominantemente agrária estava imersa na oralidade, a condição de analfabeto era compartilhada por escravos e senhores, elites e grupos populares, e não era vista como um atributo negativo. Quando ao final do século XIX um mínimo de escolarização passou a distinguir as elites nacionais e as práticas sociais mediadas pela leitura e pela escrita começaram a se disseminar no meio urbano, o analfabetismo passou a ser associado aos grupos situados na base da pirâmide social e a adquirir, nos discursos das classes dominantes, conotações negativas. Continuamente marginalizadas das oportunidades de acesso à educação, as camadas populares viram, ao longo do século XX, o analfabetismo ser convertido, no discurso das elites, em causa do atraso econômico e das mazelas sociais do país, de que é, na verdade, apenas uma das conseqüências. Só recentemente, em 1988, os analfabetos conquistaram os direitos à educação elementar pública e gratuita e voltaram a poder votar. Fruto desse processo, o país apresenta ainda hoje grandes números de analfabetos absolutos e funcionais, que a sociedade desqualifica, mas pouco age para, resgatando a sua auto-estima, garantir-lhes o pleno exercício da cidadania. A distribuição sócio-espacial do analfabetismo alcança de modo mais agudo os pobres dos grupos de idade mais elevada, os negros e as pessoas que vivem nas zonas rurais e no Nordeste.
O preconceito em relação ao analfabeto não é só um fenômeno brasileiro, e sua vigência tem sido legitimada pela difusão de teorias científicas que estabelecem nexos mecânicos entre alfabetização e desenvolvimento social e cognitivo, dicotomizam as relações entre oralidade e escrita e referendam hierarquias entre letrados e iletrados. Outras teorias, porém, interpretam o analfabetismo como fenômeno histórico-cultural, e questionam essas dicotomias, relações mecânicas e hierarquias, reconhecendo nos analfabetos produtores de cultura e verificando a complexidade do modo de pensamento oral. O analfabeto tem, assim, modos de pensamento diferentes, e não mais “primitivos”, daqueles que estão imersos na cultura escrita.
Embora não tenha um valor em si mesmo, o domínio da leitura e da escrita constitui, na sociedade brasileira contemporânea, principalmente nos núcleos urbanos, um instrumento de cidadania e, por esse motivo, tem sido pauta de políticas públicas, dos movimentos sociais e de projetos educacionais. Como, então, elaborar práticas educativas que contribuam para aproximar, sem reforçar estigmas, o analfabeto e o mundo do escrito?
Embora tenham modos de organização distintos, culturas orais e culturas escritas não podem ser vistas como pólos dicotômicos. Indivíduos não alfabetizados que têm uma atuação em instâncias que exigem uma organização mais elaborada da oralidade, como artistas populares, lideranças políticas ou religiosas, se inserem com mais facilidade na cultura escrita. Na mesma direção, práticas educativas que têm como um de seus modos de organização a leitura em voz alta de textos escritos contribuem para uma aproximação menos tensa dos indivíduos não alfabetizados nas lógicas da escrita. Assim, situações em que o oral e o escrito estão presentes sem hierarquizações evidentes contribuem para uma aproximação entre as duas formas de expressão, o que deve ser considerado nas estratégias e metodologias de alfabetização.
O jovem ou adulto que não sabe ler nem escrever não é incapaz, não é “puro” ou ingênuo, nem é uma criança crescida. O analfabeto é produtor cotidiano de riqueza material e cultural e não ignorante de saber. Nesse sentido, embora pareça chavão, é preciso conhecer mais profundamente o que sabem, o que pensam e como aprendem os jovens e adultos em processo de alfabetização. Nas sociedades urbanas, mesmo o indivíduo que não sabe ler, tem um nível de inserção na cultura escrita – e elabora hipóteses a respeito desse sistema – que deve ser considerado. Também por isso o educador não deve se considerar alguém com a missão de tirá-lo das “trevas” ou da “escravidão”. O analfabetismo não é uma doença, não é uma chaga, não pode ser responsabilizado pelo atraso ou pelo desenvolvimento de uma sociedade. Não se deve, desse modo, como fazem muitos programas e educadores, realizar falsas promessas aos educandos, atribuindo à alfabetização – pura e simplesmente – a “luz no fim do túnel”, a melhoria automática de suas condições de vida.
A crítica à concepção que atribui à alfabetização poderes de transformação pessoal e social que de fato não possui não deve, entretanto, ser interpretada como tolerância perante políticas educacionais omissas que violam os direitos que jovens e adultos têm de fruir plenamente os bens culturais de nossa sociedade, dentre os quais a alfabetização, uma das muitas portas que abrem horizontes de aprendizagem ao longo da vida.
* Maria Clara Di Pierro (USP) e Ana Maria Galvão (UFMG) são autoras de Preconceito contra o analfabeto, publicado pela editora Cortez em 2007, na Coleção Preconceitos, de que este artigo é um breve excerto.
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CÓDIGO DAS CELAS
A gíria que saiu da marginalidade para dominar as ruas e a mídia
Presídios, periferias e delegacias já não têm mais controle sobre a gíria ligada ao universo criminal, que se espalha pela mídia e pelo cotidiano do cidadão comum
Luciano Segura
Apalavra “gíria” (argot, em Francês) foi relacionada em 1628 à “confraria dos indigentes, dos mendigos”. Mais tarde, seria definida por Charaudeu e Maingueneu (consultar o Dicionário de Análise do Discurso, Contexto, 2004) como a linguagem específica de um grupo social que a utiliza, até mesmo como forma de manutenção desse conjunto do qual faz parte.
Trata-se, de fato, de um mecanismo identitário que transcende a noção de código secreto. Além de ser uma linguagem que foge à compreensão daqueles que nela não estão inseridos, a gíria estabelece também uma maneira de identificar participantes desse mundo e garantir a unidade da comunicação. Em outras palavras, as gírias distinguem quem é quem. Inicialmente, as gírias ligam-se a atividades marginais, de baixo prestígio, muitas vezes escusas e sempre mais desvalorizadas quanto à norma culta. Várias nascem entre os jovens, e entre eles perambulam até ser substituídas, extintas ou incorporadas à linguagem comum, quando tomam, com propriedade, lugar de destaque – preferidas, não raramente, em vez de outras já consagradas.
A maioria dos grupos sociais desenvolve termos ou expressões particulares a seu universo. Tais termos são uma espécie de especialização da linguagem.
Isto é, especificam uma idéia a ser transmitida dentro de um conjunto e para um grupo. Depois, expandido em uso, o vocábulo segue para a linguagem do cidadão comum, quando assimilada pela sociedade.
Xilindró na mídia
É claro que a expansão desses termos para a linguagem comum depende da mídia, responsável por eleger os termos que ultrapassarão fronteiras territoriais e se cristalizarão (alguns, é claro) na linguagem de todas as pessoas. Nem todas as gírias, entretanto, alcançam o público comum, e isso as torna, em geral, pouco valorizadas. Por serem ligadas a grupos marginais à sociedade passam a ser também a sua marca. E é nesse contexto que encontramos as gírias do crime.
O estigma das expressões particulares de determinado grupo social é tão marcante que seus próprios integrantes chegam a negá-las quando em ambientes estranhos ao seu.
Mas atualmente, nas prisões, o jargão oficial – se é que se pode chamar assim – denota muito mais do que um simples mecanismo de defesa.
“Se hoje se empregam mais gírias é porque hoje a agressividade natural desse vocábulo corresponde melhor ao clima de agressão às instituições tradicionais e porque hoje se reconhece nesse fenômeno vocabular uma fonte muito importante de criatividade do léxico popular”, é o comentário do professor de Português da USP Dino Pretti, citado por Léa Poiano Stella em sua tese Tá Tudo Dominado: A Gíria das Prisões (PUC-SP, 2003).
Esse jargão carcerário, em especial se origina quase sempre de palavras do cotidiano dos presidiários submetidas à necessidade de comunicação. Assim, havendo a necessidade e a oportunidade, surge uma palavra nova ou reinvestida de significado.
Curiosamente, muitas vezes esse mesmo vocábulo, restrito a um meio específico, perpassa as fronteiras lingüísticas e alcança o dia-a-dia das pessoas, incorporando-se a ele (veja o quadro “Linguagem da malandragem”). Para isso, com freqüência recebe um empurrãozinho da mídia.
Avançar a esse nível ou contexto social não quer dizer, contudo, receber prestígio. Também não raras vezes a expressão marginal é ridicularizada ou empregada para destoar do contexto a que pertence e gerar efeito de humor. Um exemplo inesquecível da introdução de termos da linguagem policial e criminosa (universos que, naturalmente, trocam muitos termos entre si) é o jornal paulista Notícias Populares, responsável por inigualáveis manchetes como “Presunto cai na frente de pinguço”. O NP, como também era conhecido, foi fechado em 2001 pelo grupo Folha da Manhã, mas revolucionou a linguagem jornalística no Brasil e inspirou outras mídias e jornais, como o Diário do Litoral, ou Diarinho, ainda na ativa em Santa Catarina.
Capivara de metáforas
A metaforização é, entre tantos, um processo comum para o surgimento das gírias dentro das prisões. A partir de um elemento “A”, transmite-se a carga semântica para “B”. “Beca”, inicialmente usada para designar “calça”, passa a referir-se a “bunda”, como exemplifica a pesquisadora Maria de Lourdes Rossi Remenche em As Criações Metafóricas na Gíria do Sistema Penitenciário do Paraná (UEL, 2003).
Vários são os exemplos desse processo, mas destacam-se os ligados às drogas. Quanto à maconha, encontram-se “a boa” (de boa qualidade), “bagulho” (a de qualidade ruim, mas que pode também significar apenas a droga, por esvaziamento de sentido), “beque” (quando já vem no formato de cigarro), entre diversas formas como “fino”, “haxixe”, “lasca”, “pepita”, “tarugo”, “tablete”, “tijolo”, e outras. Em relação à cocaína não é diferente: “batizada”, “brilho”, “brizola, “brize”, “farinha”, “poeira”, “sal”, “jesus”.
Maria de Lourdes discute ainda como as gírias surgem, baseadas em metáforas, e como passam a compor um universo semântico tão específico, como o das prisões. Ela aponta, por exemplo, que dos 109 vocábulos coletados em sua pesquisa, 66 (60%) referem-se à violência, 29 (27%) ao vício e 24 (14%) ao sexo. Ela também separa em processos metafóricos distintos as construções vocabulares (zoomorfizações, antropomorfizações e reificações).
A autora registra alguns processos bastante curiosos, como a construção de “branca” – uma analogia simples e direta com a cocaína – ao lado de “brizola” – porque, na década de 80, o então governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, envolveu-se num grande escândalo quando sua filha foi presa por porte ilegal dessa droga.
Não escapam a esse processo as analogias que estabelecem relação entre a sensação e o causador da sensação: “dar um tapa na cara” é “puxar um baseado”, ou seja, fumar maconha. A comparação é entre o estado em que o indivíduo ficaria após o tapa no rosto e o efeito da droga. O barulho do estampido de um tiro de revólver, por sinédoque, passa a representá-lo quando um indivíduo diz que vai “puxar o berro”.
Outro processo que merece atenção é o da transposição do número para a pessoa. O empréstimo do artigo do Código Penal referente ao crime do presidiário passa a ser atribuído à pessoa que cometeu tal delito: o “doze” é uma maneira de identificar o traficante, preso com base no Artigo 12 do Código. Assim acontece com o famoso “um-sete-um”: o Artigo 171, que classifica o estelionato.
Mais uma metáfora de origem curiosa é “cabrito”, gíria que percorre boa parte do território nacional. Todavia, parece ter sido o Nordeste brasileiro seu berço. “Cabrito” recupera a idéia do animal que, quando roubado, dificilmente é encontrado, e o mesmo se daria com os carros. Hoje, além de carro roubado, quer dizer também adulterado. Processo parecido sofreu “capivara”, que se refere à ficha criminal – para os indivíduos – ou ao histórico – quanto aos veículos. É um tipo de documento difícil de ser conseguido pelo cidadão comum, mas de fácil acesso às autoridades. Talvez a origem disso venha do regionalismo “capivara”, significando “indivíduo tolo que quer passar por esperto” e, por ampliação de sentido, ao que pode ser facilmente encontrado pela polícia.
Tatuagens e linguagens
Em diversas culturas, a tatuagem aparece como forma de reconhecimento e identificação. Para ter uma idéia, cerca de 200 sociedades indígenas do Brasil mantêm a pintura corporal como expressão individual e coletiva. A linguagem icônico-verbal encontra vazão também nas tatuagens do universo criminal. Nas cadeias, principalmente, elas denotam a identidade do preso, agora assumida, indicando o crime cometido, o posto social que ocupa, sua importância no sistema. Como se fossem, em certos anfíbios, a sua coloração, um claro aviso de seu grau de perigo. São de comunicação e de identificação entre os indivíduos.
Segundo o advogado paranaense Cezinando Vieira Paredes, de 30% a 35 % da população carcerária têm algum sinal.
Tatuagens fazem parte de um universo de ferramentas comunicativas ainda maior, que o mundo criminal usa e ao qual tem acesso.
Dependendo da intenção, um criminoso pode apropriar-se de um discurso político-ideológico para reivindicar direitos, ou expressar-se religiosamente para convencer de seu arrependimento (veja os quadros “Os segredos dos desenhos”, “Justificando os fins” e “O senhor é o meu pastor”). Há também o processo inverso, quando adolescentes ou artistas, por exemplo, usam a gíria criminosa com intenções diversas, desde a necessidade auto-afirmativa até o desejo de identificação social – como no caso do hip hop, que disseminou (e dissemina) esse léxico criminal pelo País por meio de um arsenal midiático, incluindo rádio, TV, internet, CDs, shows, moda, e outros.
Pode ser difícil afirmar, entre essas duas esferas, quem promoveu quem e tornou os criminosos Fernandinho Beira-Mar e Marcola tão populares quanto personalidades do rap como Racionais MCs e MV Bill. Nesse contexto, não se pode esquecer a própria escalada da violência que assola o Brasil e há anos já fez desse ambiente algo quase corriqueiro. Para além das grades de uma cela ou das bocas de tráfico, a gíria da criminalidade passou a fazer parte do cotidiano do brasileiro comum. E honesto•
OS SEGREDOS DOS DESENHOS
Entre as tatuagens que se encontram nas prisões, há vários desenhos para designar uma mesma idéia. Outras, em compensação, identificam coisas específicas, que ainda podem ter significado variado dependendo do lugar. Seguem alguns exemplos:
• Pontos: normalmente encontrados nas costas das mãos, costumam ter o mesmo significado em todos os locais do País, pelo menos até o quinto sinal. Um ponto significa punguista (batedor de carteira); dois, estupro; três, tráfico; quatro, furto; e cinco, roubo. Se formarem um círculo com mais quatro pontos do lado de fora, representam chefe de quadrilha.
• Números: é comum os presos trazerem numerações nas mãos, normalmente nos dedos, referindo-se quase sempre a uma data importante para eles, como a morte de um companheiro de cela.
• Religiosidade: nem sempre denotam a fé em si. É o caso da cruz, quando tatuada no meio das costas, que indica um sujeito bastante perigoso e inconseqüente. A imagem de Jesus, usada no peito, identifica praticante de latrocínio; se nas costas, um pedido de proteção. À imagem do diabo cabe o significado de matador. Nossa Senhora Aparecida, tatuada próxima dos ombros, em tamanho reduzido, quer dizer “praticante de latrocínio”. Se estiver tatuada no peito, “desejo de proteção”. Em tamanho grande, nas costas, avisa que o preso foi violentado na prisão e praticou crime de estupro. A estrela de Salomão é reservada a quem deseja livrar-se de bruxarias. A estrela de oito pontas serve de amuleto para evitar prisões.
• Coração: é outro desenho muito comum. Se for desenhado com uma flecha transpassada, significa que seu portador é um homossexual passivo. Se trouxer, além disso, os dizeres “Amor de Mãe”, seu portador provavelmente foi abusado na cadeia.
Linguagem da malandragem
abasteci a caveira: tomei uma bebida, uma cachaça
agá: dar cobertura; simular
avião[zinho]: aquele que repassa as drogas, vende ou transporta
barca: viatura (as maiores, como a Blazer)
berro: revólver
bicuda: faca
bomba: celular dentro dos presídios; o mesmo que “diretinho”
bonde: carro para a transferência do preso
borracha grande: ônibus
bota-fora: advogado
braço: pessoa de confiança (talvez redução de “braço direito”)
brincar demais: facilitar demais; “dar bobeira”
brinquedo: arma
cabrito: veículo adulterado; detento que é obrigado a manter relações sexuais com outros presos
cabrocha: mulher
cano: revólver
caôca: dar atenção; prestar atenção
capa-preta: juiz
cascão: guarda ruim
casinha: emboscada
cavala: mulher bonita
central: central telefônica
chico doce: pedaço de madeira improvisado para surras
choca: bebida fermentada feita dentro da cadeia
cimento: cocaína
colar o brinco: dar tapa na orelha
colar: aproximar-se de uma mulher
comarca: cama
come-quieto: homossexual que mantém relacionamento sexual
como o meu era nenhum: como não tinha dinheiro...
corrida correria: perseguir; fazer; trabalhar; traficar; realizar algo
corujar: observar; espiar
cria: pessoa nascida na favela
da atividade: olheiro
dar mala: dispensar
dar um boi: perdoar; liberar; soltar
dar um güento: roubar
dezesseis: viciado
doze: traficante
duque-catorze: aquele que violenta homens
duque-treze: estuprador
barriguda bem morta: cerveja bem gelada
ele virou logo América: ficou vermelho como sangue
encomendar a tchôla: contratar prostitutas para as festas nos pavilhões
enquadrar: tirar satisfação; acuar; ameaçar
espim: faca improvisada
esquinar: ficar parado em esquinas, à espera de algo
estoque: arma improvisada
dar a dica: cortejar uma mulher
faculdade: penitenciária
fazer de arma: assaltar
fazer: matar
fechar o paletó: matar
feinha: esposa
ferro: arma curta
ficar na fé: adeus; até logo
fissura: desejo incontrolável
fita: qualquer atividade (“estou na fita”)
freio de camburão: ladrão conhecido pela polícia
funça: agente penitenciário
funcionário: integrante da quadrilha
gambé: polícia
gancho: celular
ganso: informante da polícia
geral: revista nas celas
grampo: algemas
grinfa: seringa
ir para o piano: ser torturado
jacaré: aquele que assalta os próprios companheiros nas celas
lampiana: faca
laranja: aquele que assume a culpa no lugar do outro
linha: central telefônica clandestina
macaca: metralhadora
mocozar: esconder
muquiar: esconder
no fim do carretel: no fim da linha; no ponto final
parada: assalto (resolver uma parada = fazer um assalto)
passarinho: informante
patuá: negócio; questão; problema
pela ordem: tudo bem; tudo ok
perdigão: preso que trabalha como guarda
perereca: fogão artesanal para esquentar comida
pino: fuga (estou de pino = estou foragido;
vou dar um pino = vou fugir)
porco: guarda da cadeia
presunto: defunto
preto: maconha
psicopata: tarado sexual
pular a fogueira: assaltar
pular: furtar ou assaltar
quebrada: lugar comum ao criminoso, geralmente periférico
quebrar a perna: prometer algo e não cumprir
ratão: relações sexuais durante as visitas coletivas
ripado: condenado
samango: policial militar
talarico: homem que paquera a mulher do outro
tatu: túnel de fuga
tereza: corda feita de lençol
tranca: castigo; isolamento
treme-treme: motel
treta: briga; problema
truta: membro da quadrilha
vaca: sirene
vai rodar: vai morrer
vazar: fugir
xis-nove: informante
xis: cela; xadrez
zebrar: dar errado; falhar
O SENHOR É O MEU PASTOR
A necessidade de preservação e manutenção dos códigos entre a gíria de determinado grupo – como o dos criminosos – não impede que seus falantes conheçam outras “línguas”. Estudos realizados no meio carcerário revelam que os presos, em avaliação para liberdade condicional, muitas vezes trazem já decorado um discurso eficiente para a obtenção do privilégio. É o caso daqueles que se apresentam aos avaliadores como “convertidos” a alguma religião mesmo sem o ser. Vestidos socialmente, com o terno “de domingo”, óculos (às vezes, escuros), sapatos lustrosos, repetem o discurso da salvação, do arrependimento, do abandono de hábitos ruins como bebidas e drogas, da noção de culpa social e da vontade de fazer parte da sociedade para poder auxiliá-la. Tais discursos são um problema a partir do momento em que, repetidos quase mecanicamente, não mais indicam arrependimento algum.
Não se pode generalizar, mas dominar as falas necessárias para a liberdade também faz parte do conhecimento da cadeia, podendo até “formar” especialistas em determinadas leis – como ocorre, aliás, com muitos tipos de criminosos. Eles são treinados por pastores ou por advogados para muitas vezes dissimular o esperado pelos avaliadores. Como diz Léa Poiano Stella, “o detento possui ampla noção da situação em que deve usar a linguagem gíria, pois não faz uso dela na comunicação com profissional autorizado ou habilitado a opinar, dar parecer ou atestar sua conduta dentro do sistema prisional. O detento tem conhecimento de que a gíria representa um empecilho para a obtenção de benefícios ou a redução de pena, porque a linguagem especial está diretamente ligada à conduta criminosa. Evitando seu uso, o preso pretende se mostrar regenerado da vida marginal (...)”.
JUSTIFICANDO OS FINS
Cada vez mais, o discurso dos criminosos tem se inflamado com noções – nem sempre claras – de esquerda, muitas vezes de maneira panfletária.Assim surgem as “ideologias do crime”, cujas bases estão cada vez mais dissimuladas em ideais de luta popular. Tais “ideologias” são mantidas por grupos organizados e dispostos a praticar a violência para alcançar seu objetivo.
Diferentemente dos “operários” das organizações criminosas, seus líderes lêem muito e, em geral, fazem questão de exibir sua erudição. Assim, a fim de dar espaço ao “grito dos oprimidos”, propõem uma “revolução”, cuja base é a “libertação” social, para a qual todos devem estar preparados. Os chefões do crime dizem buscar a “conscientização” dos “excluídos”, para quem o Governo tem fechado os olhos. E conseguem seguidores fiéis, de modo quase religioso, dispostos a lutar pelo seu líder.
Em ataques planejados, a cidade de São Paulo foi palco de crimes em 2006 cometidos contra autoridades oficiais. “Só os policiais serão atacados”, dizia-se. No entanto, ouviam-se boatos sobre tiros contra estações de metrô, faculdades e bancos. Mais tarde, a mídia ressaltou: “não houve vítimas civis; só os policiais foram atingidos”. Se por um lado os ataques assustavam a população, receosa em sair de casa; por outro, deixavam clara a luta do “nós-contra-eles”, que a população não precisaria seguir.
Ganharam, assim, uma espécie de simpatia “torta”, de quem queria ver, nessa luta, alguma espécie de “justiça”. Isso tudo ocorre sob o véu da política de classes: os discursos que motivaram os operários a lutar por seus direitos hoje perpassam as paredes de presídio e criam pseudo-heróis, como Marcola, líder do PCC que chega a ser admirado por parcelas da comunidade e temido pelas autoridades.
Essa visão estabelece a idéia de que há fronteiras invisíveis separando classes sociais, bairros e cidades. Tais fronteiras são ultrapassadas pela mídia – especialmente a TV –, que cria pontes para o discurso de uma determinada região (principalmente Rio de Janeiro e São Paulo) se propagar para as outras. Há também, dessa forma, a contaminação de costumes e de linguagens, assim como a expansão de um modelo considerado ideal. Esse parâmetro começa a ser seguido e desejado. Algumas vezes, para moradores de regiões mais pobres – ou pertencentes a classes de menor poder aquisitivo –, a ligação com o crime se faz presente e razoável em face da possibilidade de alcançar seus desejos, abonados pela idéia de que “é errado, mas é o único caminho”. É nesse contexto que as gírias específicas, quase “jargões de trabalho”, passam a ser conhecidas pela população.