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O ensino obrigatório de quatro a 17 anos de idade já faz parte do texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 27708, que retira o orçamento da educação da Desvinculação de Receitas da União (DRU). O parecer substitutivo do deputado federal Rogério Marinho (PSB-RN), com a nova redação, foi aprovado nesta terça-feira, 24, pela comissão especial que analisa a PEC na Câmara dos Deputados.

A proposta será votada no plenário da Câmara, em dois turnos. O ministro da Educação, Fernando Haddad, e os membros da comissão especial deverão se reunir com o presidente da Casa, Michel Temer (PMDB-SP), nesta quarta-feira, 25, para pedir que a PEC seja votada em regime de urgência. Se aprovada na Câmara, volta para aprovação no Senado.

A Proposta de Emenda Constitucional 27708 prevê o fim gradual da DRU para a educação até 2011. Isso significa o acréscimo de cerca de R$ 9 bilhões anuais ao orçamento do MEC. O relatório aprovado nesta terça-feira na comissão especial vincula o aumento dos recursos à obrigatoriedade da educação infantil e do ensino médio.

De acordo com o texto, a educação obrigatória dos quatro aos 17 anos deverá ser implementada progressivamente até 2016, com apoio técnico e financeiro da União. Está previsto o regime de colaboração entre União, estados, Distrito Federal e municípios para universalizar o ensino. O texto ainda garante a oferta gratuita da educação básica para os que não tiveram acesso a ela na idade certa.

Categoria pai: Seção - Notícias

Publicado na Revista digital “Acolhendo a língua portuguesa”, USP, 2008.

Stella Maris Bortoni-Ricardo; Maria da Guia Taveiro Silva; Maria do Rosário Rocha Caxangá; Marli Vieira Lins

  

Palavras chave: Analfabetismo no Brasil; matriz sociolingüística; a comunidade falante de português  no Brasil; dimensões sócio-históricas.

1. O analfabetismo está na raiz de todos os grandes problemas sociais no Brasil. Constitui um mal radicado na sociedade brasileira, praticamente tão antigo quanto o próprio país, e infenso às diversas campanhas de alfabetização que surgem no bojo de políticas educacionais. Este artigo é a parte inicial de um estudo mais abrangente sobre as contribuições da Sociolingüística para uma política de alfabetização no Brasil no qual refletimos sobre o caráter perverso e persistente do analfabetismo brasileiro, situando-o numa matriz sócio-histórica e investigando suas causas na ecologia sociolingüística da comunidade de fala brasileira. Nesta primeira parte, levantamos informações censitárias que dão conta das dimensões e características do problema. Esses números nos mostram que a taxa de alfabetização no Brasil é uma das mais baixas do mundo, mesmo considerando apenas os países do Hemisfério Sul. No entanto, se comparamos o Brasil com outros países, verificamos que nosso país conta com dois fatores favoráveis à disseminação da cultura letrada: a língua de instrução na escola brasileira é o Português, que é justamente língua materna de mais de 90 % da população nacional[1]. Essa é uma vantagem que poucos países em desenvolvimento têm, já que em sua maioria são multilíngües, o que torna difícil e onerosa a alfabetização dos alunos em sua língua materna. Outro fato que favorece a aprendizagem da leitura e escrita no Brasil é o caráter razoavelmente fonêmico do sistema ortográfico do português. Diferentemente do que acontece com o português, em muitas línguas a codificação ortográfica está longe de refletir a pronúncia vigente .Confrontando essas duas circunstâncias com os números do analfabetismo, coloca-se a pergunta: Por que o Brasil ainda não conseguiu alfabetizar a sua população? Buscamos a resposta na matriz sociolingüística da comunidade de fala brasileira, cujas peculiaridades examinamos à luz dos processos sócio-históricos que a plasmaram.

  A segunda parte do estudo, que em breve será publicada, é dedicada a analisar a reflexão lingüística como uma estratégia valiosa na pedagogia da alfabetização _ infantil e de jovens e adultos.  O principal objeto dessa reflexão sistemática, de professores e alunos, são os aspectos isomórficos e heteromórficos entre as modalidades oral e escrita do português do Brasil, com especial atenção para regras variáveis, fonológicas e morfossintáticas. Acreditamos que a reflexão sobre as modalidades oral e escrita da língua pode conferir mais eficácia ao processo de alfabetização, na medida em que familiariza os alfabetizadores com noções importantes das ciências da linguagem que estão subjacentes à aprendizagem da leitura e da escrita.  Ilustramos a tese com a análise de textos de alfabetizandos, levando em conta aspectos da fonologia supra-segmental e segmental do Português do Brasil e algumas de suas intersecções com a morfossintaxe.

 

 

2. A partir do século XIX, a percentagem de analfabetismo (considerando como analfabeto o que não sabe ler e escrever; ou seja, no sentido censitário tradicional), começa a cair no Brasil. No entanto, até 1920, o índice de analfabetismo  ainda superava 23 de sua população, o que equivalia a 64,9% das pessoas acima de quinze anos. Supõe-se que a taxa de analfabetismo entre as pessoas nessa faixa etária era de 77% na época dos censos de 1872 e 1890 (nessas ocasiões os censos não especificaram idade para o levantamento do analfabetismo). Em 1920 calculava-se o analfabetismo em 65%; trinta anos mais tarde, essa taxa caiu para 50% e levou mais trinta anos para baixar para 25%, em 1980 (FERRARO, 2004).

Observe-se ainda a mudança no conceito de analfabetismo. Em 1958 a UNESCO definia como analfabeto um indivíduo que não consegue ler ou escrever algo simples. Duas décadas depois substituiu esse conceito pelo de analfabeto funcional, que é um individuo que, mesmo sabendo ler e escrever frases simples, não possui as habilidades necessárias para satisfazer as demandas do seu dia-a-dia e desenvolver-se pessoal e profissionalmente.

O Quinto Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF), divulgado em setembro de 2005, pelo Instituto Paulo Montenegro - IPM - (Disponível em: < www.ipm.org.br>. Acesso em 26 de junho de 2006 e RIBEIRO, 2004), mostrou que só 26% dos brasileiros na faixa de 15 a 64 anos de idade são plenamente alfabetizados. Desses, 53% são mulheres, 47% são homens e 70% , jovens de até 34 anos.

O censo de 2000 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) considerou como analfabetos 10,6% da população entre 15 e 64 anos, ou seja, 11.180.813 pessoas de um montante de 104.997.015. 

Em 2003, o índice de analfabetismo absoluto detectado pelo IPM, responsável pelas pesquisas que subsidiam o INAF, ficou em torno de 8% e são considerados em um nível rudimentar de alfabetismo cerca de 30% dessa população. Dois anos mais tarde nova pesquisa do IPM registra uma queda de um ponto percentual no índice de analfabetismo. De acordo com os dados apresentados pelos censos demográficos do IBGE e outros sistemas avaliativos, percebemos que não houve quedas significativas, e sim, um movimento lento e gradual nos índices. É de se concluir portanto que as campanhas e programas governamentais destinados à erradicação do analfabetismo no país desde o final do século XX não têm dado conta de capacitar a população a ler e escrever, habilidades indispensáveis ao exercício da cidadania em uma sociedade cada vez mais letrada.

De 1920 até 1980, percebemos uma queda em termos percentuais, porém os números absolutos aumentaram de 11,4 milhões em 1920, para 18,7 milhões em 1980. Só depois dessa década os números do analfabetismo começam a apresentar leve diminuição, caindo em 2000 para 16,3 milhões, considerando sempre as pessoas com mais de quinze anos.

Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2001 das Nações Unidas, 55% dos países do mundo apresentam melhor desempenho na alfabetização que o Brasil. Na América Latina 72% dos estados nacionais têm taxa de analfabetismo menor que a brasileira. As estatísticas internacionais mostram também que a posição relativa do Brasil no que concerne à taxa de analfabetismo não espelha a sua situação relativa em termos de renda per capita.  Vejamos: apenas 34% dos países no mundo e 28% na América Latina têm renda per capita maior que a brasileira, mas a taxa brasileira de analfabetismo é mais de que o dobro da taxa típica exibida por países com a mesma renda per capita.

O analfabetismo é um problema histórico. Analisando-o nessa perspectiva, verificamos que ele apresenta características novas e velhas ao mesmo tempo. Trata-se de um problema relativamente novo porque só foi caracterizado como tal a partir do século XIX, e é também um problema velho porque, desde a sua origem, está relacionado a fatores sócio-demográficos, tais como: gênero, raça, localização geográfica, faixa etária, renda familiar e, principalmente, ao processo de urbanização.

Dados fidedignos sobre a questão estão agora disponíveis no Mapa do Analfabetismo no Brasil, que oferece um diagnóstico atualizado, reunindo dados demográficos, considerados nas suas diferentes dimensões. Trata-se de uma iniciativa do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), que processou resultados do Censo Escolar do MEC, do IBGE e do PNUD (Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas – United Nations Development Program – UNDP). As informações foram agrupadas para todos os municípios do país, considerada a divisão político-administrativa do ano de 2000, e permitem consulta individualizada.

Segundo o referido mapa, o número de analfabetos varia bastante de região para região. No Nordeste, o número de analfabetos é muito maior que nas regiões Sul e Sudeste. Na cidade de Guaribas no Piauí, por exemplo, a taxa de analfabetos chega a 59%, enquanto que em Niterói, no estado do Rio de Janeiro, o índice de analfabetismo é apenas de 3.6%. Há de fato uma forte correlação negativa entre índices de analfabetismo e o IDH[2] de cada região.

Quanto à renda familiar, calculada em salários mínimos, ficou confirmado que quanto mais alta essa renda, mais acesso a família terá à alfabetização. O analfabetismo chega a ser 20 vezes maior nas famílias mais pobres. Nos domicílios com renda superior a dez salários mínimos, o índice é de apenas 1,4. Já naqueles cuja renda é inferior a um salário mínimo o índice alcança 29%. A relação entre renda e alfabetização torna-se extremamente grave quando se leva em conta que o Brasil tem uma das piores taxas de distribuição de renda no mundo, perdendo apenas para Serra Leoa, na África. Em 2003, 1% dos brasileiros mais ricos detinham uma renda equivalente aos ganhos dos 50% mais pobres. (Disponível em: < www.ipea.gov.br>. Acesso em 26 de junho de 2006). Políticas públicas de distribuição de renda nos últimos anos têm tentado corrigir essa distorção, mas os resultados obtidos ainda são modestos.

Em relação a gênero, foi observado que as mulheres apresentam uma taxa de alfabetização superior à dos homens. Esse resultado veio confirmar informações do INAF 2001 de que as mulheres se destacam mais que os homens nas questões que envolvem leitura e escrita.

Outra variável pesquisada pelo Inep em relação ao analfabetismo foi raça. Constatou-se   que existem três vezes mais brancos alfabetizados do que negros e pardos, o que confirma importância do fator raça na desigualdade social no Brasil.

Mesmo não desconsiderando essas diferenças entre segmentos sociais, as pesquisas confirmam que o analfabetismo brasileiro não está restrito a nenhum grupo: ele é um mal que atinge crianças, jovens, adultos e, principalmente,  idosos. Segundo os dados disponíveis, 7,4% da população entre 10 e 19 anos é analfabeta, enquanto o índice de analfabetismo na faixa etária de 60 anos ou mais atinge a marca de 34%.

Com relação à dicotomia rural x urbano no país, há que se observar que, no meio rural brasileiro, a taxa de analfabetismo é três vezes superior à da população urbana. A população rural apresenta um índice de analfabetismo de 28,7% e a urbana, de 9.5%. Cabe aqui uma observação: é comum encontrarmos, na população radicada no campo, pessoas, mais freqüentemente homens, que não sabem ler e escrever e, no entanto, têm razoável habilidade para lidar com números e quantidades.  As competências que demonstram em práticas sociais de letramento matemático, ou numeramento, são adquiridas nas rotinas de compra e venda de produtos agropecuários e em transações bancárias.

A simples constatação do percentual de analfabetos em áreas urbanas pode levar-nos à conclusão equivocada de que nessas regiões o analfabetismo seja problema social de pouca relevância. Não é bem assim.  Há uma elevada parcela da população não-alfabetizada nas grandes cidades brasileiras. Em 125 municípios, de um total de 5.507, está um quarto dos analfabetos do país e 586 municípios respondem pela metade dos analfabetos da população com 15 anos ou mais. Entre os 100 municípios com o maior número de analfabetos estão 24 capitais. Na cidade de São Paulo, registram-se 383 mil e no Rio de Janeiro 199 mil. Essa concentração de analfabetos nas grandes cidades explica-se pelo alto contingente de migrantes que deixam as áreas rurais e demandam os centros urbanos, na busca por melhores condições de vida, indo radicar-se na periferia de cidades de médio e grande porte. Ali reproduzem e preservam muitos traços próprios de sua cultura pré-migratória, inclusive as características de sua linguagem. São populações que podem ser descritas como rurbanas (BORTONI-RICARDO, 1985).

Os dados relativos às taxas de analfabetismo nas áreas urbanas são indiciários de duas importantes dimensões na caracterização das raízes rurais da sociedade brasileira: o caráter rurbano dos grupos sociais que habitam a periferia das cidades, já mencionado, e as distorções na própria caracterização do que é área urbana e rural no país.  Cientistas sociais, como o professor Eli da Veiga e seus associados, têm mostrado que as estatísticas oficiais relativas à questão se ressentem de uma metodologia mais atualizada.

Em seu livroCidades Imaginárias”, Eli da Veiga considera equivocados os critérios empregados pelo próprio IBGE. O equívoco na metodologia censitária tem origem em um decreto do Estado Novo de 1938, segundo o qual é área urbana toda sede de município ou distrito, independentemente do tamanho e das características das atividades produtivas de sua população. O autor argumenta que os parâmetros da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) são mais adequados que a metodologia oficial do IBGE. Segundo  a OCDE, para um município ser considerado urbano, teria de apresentar uma densidade demográfica de 150 habitanteskm² e uma população nunca inferior a 50 mil habitantes. Se aplicados esses parâmetros, os 5.507 municípios brasileiros considerados urbanos passariam a 411.

A análise dos números do analfabetismo que leva em conta as variáveis sociodemográficas, como  renda e o IDH regional, entre outras, deixa patente que o Brasil tem o seu próprio apartheid (que o professor Cristovam Buarque denomina “apartação social”): de um lado a população cuja renda lhe faculta acesso aos bens de consumo, inclusive às práticas sociais de letramento e, de outro, as populações excluídas dessas práticas, cuja cultura é predominantemente oral.

A pesquisa “Retrato de Leitura no Brasil”, divulgada pela Revista Época em julho de 2001, de iniciativa da Câmara Brasileira do Livro (CBL), do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), da Associação Brasileira de Editores de Livros (Abrelivros) e da Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa), fez 5.503 entrevistas com pessoas de 14 anos ou mais, com pelo menos três anos de escolarização, em 40 cidades do país, que representam um universo estimado em 86 milhões de cidadãos e concluiu que 62% dos entrevistados - cerca de 53,3 milhões de pessoas – haviam lido livro no ano anterior. Esse percentual é mais alto no Brasil do que em Portugal. Mostrou também que  apenas 20% dos entrevistados haviam comprado os livros que leram; que 78% dos entrevistados apreciam os livros e que 89% vêem nele um meio de transmissão de idéias. Essa pesquisa deixou claro que o hábito da leitura está consolidado apenas numa parcela minoritária da população. Entre pessoas com curso superior ele é quase quatro vezes mais comum que entre os brasileiros cuja referência escolar se situa entre a 1a e a 4a série do ensino fundamental. Além disso, a familiaridade com a leitura é também um legado inter-geracional porque o hábito de leitura dos pais influencia a formação dos filhos como leitores.

Comprar livro é caro para boa parte da população. Um dos efeitos disso é a magreza das coleções particulares: ainda segundo a mesma pesquisa, 47% dos entrevistados têm no máximo dez livros em casa, e o número de exemplares que repousam sobre a estante de dois terços dos brasileiros não passa de 25. Além disso, o acesso gratuito ao livro é limitado. A rede pública de bibliotecas é calculada em menos de 5.000 unidades - menos de uma biblioteca por município, segundo números da Secretaria do Livro e da Leitura do Ministério da Cultura.

Dois estudos sociolingüísticos com populações rurbanas confirmam que a participação desses grupos em práticas sociais letradas é muito limitada. O primeiro foi conduzido em Brazlândia, no Distrito Federal, no início da década de 80 (BORTONI-RICARDO 1985; 2005). Em um grupo de 118 indivíduos de origem rural, dos quais 59% tinham de 0 a 3 anos de escolaridade, apenas 19% declararam ler livros com freqüência, geralmente a Bíblia ou outros livros religiosos; 24% lêem livros ocasionalmente e 47% nunca haviam lido um livro. Outro estudo mais recente (LOPES 2004), conduzido em uma comunidade de baixa renda na periferia de Teresina, mostrou que as atividades de leitura têm sempre uma dimensão instrumental naquela comunidade. Os membros do grupo só lêem textos portadores de informações necessárias à sua vida diária: contas de luz, passagens de ônibus, receitas médicas, placas comerciais, notas fiscais, etc. Alguns jovens mais competentes funcionam como escribas para escrever cartas e bilhetes familiares.

Para complementar esse levantamento sociodemográfico do analfabetismo no Brasil, convém observar que, não obstante suas altas taxas e seu lento declínio, há dois fatores que podem ser considerados como favorecedores da disseminação do letramento em nossa sociedade. Temos em mente o fato de mais de 99% da população brasileira ter como língua materna o português, que é também o veículo de instrução na escola no ensino fundamental (art. 210 §2º da Constituição Federal de 1988), bem como também o caráter razoavelmente fonêmico da ortografia do português. Em 1953 a UNESCO reconheceu que a língua materna dos educandos é o melhor meio para a implementação de sua educação escolar, tanto do ponto de vista sociológico, quanto  psicológico. No entanto, muitos países têm dificuldade de atingir esse desiderato em virtude do grande número de línguas e variedades presentes no repertório de suas populações. Prover cada criança com um programa de educação em sua língua materna é oneroso e de difícil operacionalização, em termos sociolingüísticos e políticos. Esse é o caso, por exemplo, da Índia com mais de 200 línguas e da Tanzânia com mais de 135 línguas (cf. FASOLD, 1984 e ZUENGLER, 1985). No Brasil, esse problema não assume uma dimensão nacional, restringindo-se a poucas comunidades.

 O outro fato favorecedor do letramento a que nos referimos é ter sido a sistematização ortográfica do português sensível ao “apelo fonêmico”, tendência que MATTOSO CÂMARA (1977) atribui ao fonólogo português Gonçalves Viana, cujos trabalhos datam das últimas décadas do século XIX. Em línguas cuja ortografia, codificada há vários séculos, não passou por reformas, essa está longe de refletir a pronúncia vigente. É o caso do inglês, por exemplo. A seguinte anedota atribuída a Bernard Shaw (STUBBS, 1980) é bem ilustrativa da distância entre convenções ortográficas e a pronúncia contemporânea da língua inglesa. Para Shaw a palavra “fish” (peixe) poderia ser escrita “ghoti”, considerando que: gh = f, como em enough; o = i, como em women e, finalmente, ti = sh, como em nation. Na segunda parte desse estudo, a ser publicada em breve, vamos discutir em detalhes a relação entre a pronúncia contemporânea do português do Brasil e as convenções ortográficas da língua. Mas podemos adiantar que, nesse aspecto, levamos vantagem sobre muitas outras sociedades nacionais.

 Essas duas vantagens que acabamos de descrever sucintamente não parecem estar contribuindo para a difusão universal das habilidades de letramento na nossa comunidade de fala. Por que isso acontece? Para buscar resposta a essa pergunta e para entendermos melhor por que alguns grupos sociais são mais afligidos pelo analfabetismo que outros, vamos procurar identificar as raízes desse mal na história externa da língua portuguesa no Brasil.

3. A análise sociolingüística da comunidade de fala brasileira implica conhecimento da matriz sócio-histórica em que essa comunidade se criou e se plasmou. Para os objetivos deste artigo, vamos salientar alguns aspectos nessa matriz, entre os quais o caráter rural da sociedade brasileira até praticamente o século XX, o processo de urbanização, os fluxos migratórios nesse século e a contemporaneidade de estágios diversos de desenvolvimento.

A tradição sociológica brasileira é unânime em enfatizar a primazia da cultura rural no Brasil. Para BUARQUE DE HOLANDA (1997), no Brasil - Colônia e em outros países de história colonial recente, mal existiam tipos de estabelecimento humano intermediários entre os meios urbanos e as propriedades rurais; os primeiros, neste país, restritos à faixa litorânea e as últimas espalhando-se pelas regiões interioranas, à medida que as terras eram desbravadas e se sucediam os ciclos na produção agropecuária.

Desde o início da colonização, em março de 1549, quando Tomé de Souza, 1º governador geral do Brasil, desembarca no arraial de Pereira, na Bahia de Todos os Santos, até o final do século XVII, prevaleceu na colônia um bilingüismo instável entre o que veio a ser chamada de língua geral, língua originalmente falada pelos índios Tupinambá, que se difundiu na costa brasileira, do litoral de São Paulo ao litoral do nordeste [3], e a língua portuguesa. Essa última chegava junto com os jesuítas, a elite administrativa e os aventureiros lusitanos que vinham à busca de enriquecimento rápido. A Língua Brasílica foi aos poucos cedendo lugar, no repertório dos indígenas, à interlíngua que eles empregavam no esforço para se comunicar com o elemento europeu. SILVA NETO (1977 p. 34-5) nos fornece um bom exemplo da interlíngua usada pelas populações nativas, que aprendiam de oitiva a língua do colonizador. Note-se ainda que os bandeirantes paulistas, até o século XVII, preservaram uma língua de origem tupi, que diferia um pouco da língua dos Tupinambá. Ao final do terceiro século de colonização, a língua dos Tupinambá já havia desaparecido da faixa litorânea, embora se tenha preservado em algumas localidades na bacia amazônica, onde é conhecida pelo nome de Nheengatú[4]. Os missionários da Companhia de Jesus, que se envolveram com a catequese e a instrução dos indígenas, ensinavam-lhes a língua portuguesa, mas também se esforçavam por aprender as línguas da terra, elaborando até mesmo gramáticas. O mais conhecido entre esses primeiros professores do Brasil foi o padre José de Anchieta, autor da “Primeira gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, impressa em 1595 em Portugal, dois anos antes de sua morte (MIRANDA, 1966). Em 1759, o Marquês de Pombal expulsa a Companhia de Jesus de todo o território português, inclusive as colônias. Interrompe-se o trabalho nas escolas jesuíticas no Brasil e o incipiente esforço de escolarização da população local _ indígena, mestiça ou descendente de portugueses_ não é retomado senão mais de uma década depois, de forma bastante intermitente e irregular.

 O ambiente de contato de línguas no Brasil - Colônia era ideal para desencadear mudanças rápidas na deriva da língua portuguesa, na ausência de uma política de educação, bem como de veículos da língua escrita, que têm efeito importante para coibir mudanças bruscas na deriva de uma língua.

De fato as condições sociolingüísticas nos primeiros séculos de colonização eram muito favoráveis à emergência de um pidgin de base portuguesa. Hoje em dia os lingüistas têm posições controversas quanto ao desenvolvimento de um pidgin nos primórdios da colonização brasileira. Argumentam alguns que ele não se teria formado, pois o seu curso natural seria evoluir para uma língua crioula, como nas outras colônias portuguesas, o que não aconteceu. Mas pode-se argumentar, contrariamente, que essa evolução tenha sido sustada pelo aumento do número de falantes do português a partir do século XVII, quando se descobriu ouro e pedras preciosas em Minas Gerais (BORTONI-RICARDO, 1985). Seja como for, o fato é que o contato de línguas, a ausência de um sistema educacional e a ínfima circulação de textos escritos em português, já que até 1809 era proibida na Colônia qualquer atividade de imprensa, contribuíram para formar no Brasil uma variedade dialetal de português oral, muito distinta da língua falada e escrita em centros urbanos em Portugal e, posteriormente, no Brasil. Com pequenas diferenças regionais, essa variedade difundiu-se por todo o território brasileiro, com mais vitalidade nas grandes extensões rurais, pois nas cidades incipientes iria concorrer com o português lusitano, já em vias de padronização na sua modalidade escrita. 

Se parece temerário conjeturar sobre a emergência de um pidgin no Brasil colonial, já que não há registros que o confirmem, pode-se afirmar, com razoável segurança, que o contato de vernáculos e o conseqüente surgimento de interlínguas entre os que aprendiam o português como língua estrangeira, influenciaram a língua portuguesa falada pela massa colonial. Longe do efeito padronizador da cultura letrada, cultivada pelas instituições urbanas que são agentes letradores, a variedade da língua usada pelas populações rurais e interioranas  era marcada por radical redução na morfologia flexional e por um léxico de  forte influência tupi. Essa é a origem da língua e da cultura caipira, que veio a receber uma primeira descrição  em 1920 com O dialeto caipira de Amadeu Amaral.

   Não se pode esquecer que o multilingüismo da sociedade brasileira nos séculos XVI e XVII torna-se mais complexo com a chegada dos escravos africanos, que não eram portadores de língua e cultura homogêneas porque provinham de diferentes grupos étnicos: os Yoruba, chamados nagô; os Dahomey, denominados gegê e os Fanti – Ashanti, conhecidos como minas, além de outros grupos menores, conforme nos narra DARCY RIBEIRO (1995), baseado nos estudos pioneiros de Nina Rodrigues e Arthur Ramos.  Como o tráfico negreiro durou cerca de três séculos, havia na sociedade colonial uma interação permanente entre escravos de diferentes gerações. Estima-se que cerca de 3 milhões e 300 mil escravos foram trazidos para o Brasil e aqui distribuídos pelas áreas de lavouras ou abrigados nas cidades, nas casas de família, como escravos domésticos. Esse grande contingente de africanos trazidos para o Brasil nunca teve oportunidade de aprender o português sistematicamente. As escolas, que já eram raras, não se abriam para os escravos, que ganharam a liberdade já quase ao final do século XIX, sem que, contudo, tivessem as condições de inserção no sistema de produção. Permaneceram à margem desse sistema, longe das escolas e da cultura letrada, e formaram os grandes contingentes de mão-de-obra barata e não-qualificada, mesmo depois que o país entrou, tardiamente, na era industrial.

A padronização do português brasileiro correu paralela ao processo de urbanização, ambos sujeitos a intermitências e, como observa RIBEIRO (1995), em relação à formação de nossas vilas e cidades, de natureza caótica. É bem verdade que já em 1770 o primeiro-ministro português, Marquês de Pombal, impôs uma gramática normativa única a todas as escolas de Portugal e de além-mar. Mas essa providência teve pouco efeito já que, como observamos, a massa populacional brasileira não tinha acesso a escola nem a práticas letradas, restritas ao clero e à elite que representava o estado português na colônia.

Verifica-se, então, que o apartheid brasileiro, que separa os que participam efetivamente da cultura letrada e os que estão à margem dessa cultura, como vimos até aqui, tem suas origens na organização social deste país desde o seu nascedouro.

Na Europa a industrialização precedeu a urbanização e há entre os dois processos uma relação de causa e conseqüência. No Brasil, como de resto nos países do terceiro mundo, a urbanização não foi conseqüência da industrialização e se explica por circunstâncias históricas e pressões econômicas que delas decorrem. Podem-se identificar dois períodos na urbanização brasileira (PEREIRA DE QUEIROZ, 1978). O primeiro tem início com a colonização, quando se criam os núcleos urbanos litorâneos do Brasil - Colônia. Salvador foi construída a partir de 1549, para abrigar a administração colonial; a fundação de Recife e Olinda está associada às invasões holandesas ainda no início do século XVI e a do Rio de Janeiro, às invasões francesas em 1565. Mas a população carioca só começa a adotar hábitos de sociedade burguesa quando a cidade se torna sede do reino português, em final de 1808, após a vinda da corte, que fugia ao ímpeto conquistador de Napoleão Bonaparte. Cerca de 30 anos mais tarde o modo burguês de vida chegaria a São Paulo que, no século seguinte, consolida-se como uma grande metrópole graças à cultura cafeeira. As primeiras cidades de Minas Gerais surgem com a exploração aurífera no início de século XVIII. O ouro e os diamantes financiaram suas igrejas, casario e toda a sua estrutura urbana.

À medida que o modo de vida burguês ganhava prestígio, aprofundava-se uma clivagem entre a cultura urbana e a cultura tradicional interiorana. As cidades se tornaram por excelência o locus da cultura de letramento, enquanto no interior se perpetuava uma cultura predominantemente oral. Segundo CÂNDIDO (1964), o modo de vida no campo preservou os elementos da cultura caipira, condicionados pelas suas origens nômades e pela sua economia de subsistência.

O processo de industrialização só começou no Brasil no final dos anos 40 do século XX. Inicia-se aí a segunda fase de urbanização. Segundo Pereira de Queiroz a ausência de uma base industrial nos séculos XIX e começo do século XX determinou que apenas algumas poucas cidades desenvolvessem um sistema social estratificado. Nas cidades menores e em regiões mais pobres foram mantidas a uniformidade e a tradição do modo rural de vida.

A difusão dos hábitos citadinos teve como conseqüência o aprofundamento da clivagem entre a cultura urbana, diretamente influenciada pelos modelos europeus, e a cultura rural, e levou as cidades a assumirem uma posição de superioridade em relação à vida interiorana. Nas décadas seguintes, algumas dessas áreas foram afetadas pela modernização, enquanto outras preservaram sua cultura tradicional. Para a autora, explica-se assim a existência de duas sociedades paralelas no Brasil. Nas diferentes regiões essas duas sociedades paralelas vão consolidar-se em momentos distintos, o que resulta na contemporaneidade de estágios diversos de desenvolvimento. No século XX a urbanização brasileira acelerou-se, implementada pela introdução de tecnologia no campo, pelo massivo êxodo rural e melhorias nos sistemas de comunicação e de transporte, mas como já vimos, a população rural que se deslocou para as cidades recriou no novo habitat espaços culturais rurbanos. Sua efetiva integração ao modo urbano de vida é lenta e depende muito das oportunidades de acesso à escola e a práticas letradas. 

 Uma forma de se analisar a relação rural-urbano no Brasil, nas suas dimensões relacionadas ao letramento e ao repertório sociolingüístico das comunidades, é a postulação de um aparato metodológico onde se delineiam dois contínuos: de urbanização e de letramento (BORTONI-RICARDO, 2004, 2005). O primeiro vai das comunidades rurais mais isoladas até os centros cosmopolitas. Entre esses dois pólos, estende-se uma zona rurbana.  Todo falante do português do Brasil situa-se em um ponto determinado desse contínuo, mas pode movimentar-se em direção a qualquer dos pólos, dependendo de sua rede de relações sociais, sua inserção em práticas sociais letradas e participação no sistema de produção, bem como seu gênero, faixa etária e outros componentes de sua identidade social. O contínuo de urbanização permite ainda distinguir regras variáveis graduais, presentes ao longo de todo o contínuo, e regras descontínuas, características do repertório das populações situadas no pólo rural e na zona rurbana. Já o contínuo de letramento é funcional para a classificação dos eventos interacionais como práticas sociais letradas ou de oralidade, considerando sempre as gradações possíveis entre esses dois pólos.

A análise sistemática da matriz sociolingüística do Português no Brasil, descrita sucintamente aqui, vai demonstrar que a heterogeneidade em nossa língua, cujas origens remontam às desigualdades sociais vigentes desde o período colonial, está diretamente relacionada ao acesso que os grupos sociais têm à cultura letrada e hegemônica, cultivada principalmente pelas elites urbanas. Não se pode implementar uma política nacional eficiente de alfabetização sem que se leve em conta a variação lingüística distribuída ao longo do contínuo de urbanização e estratificada em função de renda e status sócio-econômico, pois a língua padrão neste país é basicamente associada a classe social.

 

Bibliografia

AMARAL, Amadeu.  O dialeto caipira. São Paulo: HUCITEC, 1976.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris.  The urbanization of rural dialect speakers: a sociolinguistic study in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

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[1] A constituição de 1988 garantiu aos povos indígenas brasileiros o direito a uma educação bilíngüe cujos códigos de instrução são a língua portuguesa e a língua materna da respectiva nação. Segundo Rodrigues (1986), são faladas no Brasil cerca de 170 línguas indígenas. 

[2] O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), desenvolvido pelo PNUDONU desde 1990, pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano. Além de computar o PIB per capita, depois de corrigi-lo pelo poder de compra da moeda de cada país, o IDH também leva em conta dois outros componentes: a longevidade e a educação. Para aferir a longevidade, o indicador utiliza números de expectativa de vida ao nascer. O item educação é avaliado pelo índice de analfabetismo e pela taxa de matrícula em todos os níveis de ensino. A renda é mensurada pelo PIB per capita, em dólar PPC (paridade do poder de compra, que elimina as diferenças de custo de vida entre os países). Essas três dimensões têm a mesma importância no índice, que varia de zero a um. (Disponível em: <www.pnud.org.bridh>. Acesso em 26 de junho de 2006)

 

[3] Segundo RODRIGUES (1986), a língua dos Tupinambá não foi chamada de “língua geral” nos dois primeiros séculos de colonização. José de Anchieta referiu-se a ela como “a língua mais usada na costa do Brasil”. Outros autores a denominaram “língua do Brasil”, “língua da terra” e “língua do mar”. Após o século XVII consolidou-se a denominação “Língua Brasílica”, empregada em textos da época.

Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 8, número 3, setdez. 2008.

 

A leitura de livros didáticos: uma situação negligenciada

 

Stella Maris Bortoni-Ricardo*

 

Resumo: A leitura com compreensão é um problema crucial nas escolas brasileiras. Desde 1985, o Governo Federal adotou uma política de distribuição de livros didáticos a todos os alunos de escolas públicas. Esses livros são publicados por editoras particulares, mas sua seleção segue um cuidadoso processo no âmbito do Ministério da Educação. No entanto, pouca atenção tem sido conferida à compreensão desses livros pelos alunos a quem eles se destinam. Espera-se que qualquer dificuldade em sua compreensão seja sanada pelos professores em sala de aula. Nossa pesquisa recente tem mostrado que de fato os alunos têm muita dificuldade na compreensão dos seus livros didáticos. Este ensaio focaliza estratégias de andaime que professores podem adotar para facilitar para os alunos a leitura com mais proficiência de seus livros didáticos.

Palavras-chave: compreensão leitora; livro didático; estratégia de leitura; estratégia de andaime.

 

1 Introdução

 

Tomo emprestado de Erving Goffman (2002) a segunda parte do título deste artigo. No nosso caso, a situação negligenciada é a compreensão do texto dos livros didáticos pelos estudantes a quem eles se destinam.

O primeiro órgão criado no Brasil para legislar sobre políticas do livro didático, o Instituto Nacional do Livro, data de 1929. E a primeira legislação sobre o livro didático, propriamente dita, é o Decreto-Lei nº 1006 de 30 de dezembro de 1938, que institui a Comissão Nacional do Livro Didático – CNLD. Em outubro de 1967, a Lei nº 5327 criou a Fundação Nacional do Material Escolar – FENAME – a quem cabia a produção e distribuição do material didático. Essas tarefas foram assumidas em 1971 pelo Instituto Nacional do Livro – INL.

Desde 1985, foi instituído o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD – por meio do qual o MEC passou a adquirir e distribuir livros didáticos de Alfabetização, História e Geografia, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e Estudos Sociais para o Ensino Fundamental. Em 2003, a distribuição incluiu também o Ensino Médio, em um volume único para o Norte e Nordeste. Três anos depois, começou a ser atendido o Ensino Médio nas outras regiões. A partir de 1993, o MEC passou a constituir comissões formadas por professores e especialistas para avaliar a qualidade dos livros e elaborar um guia de livros didáticos. Essa tarefa é atribuída a diversas universidades por disciplinas (COELHO, 2007). O programa brasileiro de livros didáticos é o terceiro maior do mundo, só fica atrás dos programas da China e dos Estados Unidos e atende a 36,6 milhões de alunos da rede pública de ensino. Segundo a Câmara Brasileira do Livro e o Sindicato Nacional dos Editores do Livro, mais da metade dos 310 milhões de exemplares vendidos no Brasil no ano passado eram livros didáticos (cf. BORTONI-RICARDO, 2008).

O PNLD representa um avanço relevante na política educacional brasileira. No entanto, o esforço e o cuidado que tem o Ministério da Educação para produzir e distribuir os livros didáticos em todo o país não tem como contraparte um acompanhamento na trajetória dos livros até a sala de aula, para que se possa avaliar como se realiza essa leitura. Duas questões se impõem: será que os alunos compreendem sem maiores dificuldades os textos de seus livros didáticos? Se isso não acontece, será que os professores atuam como agentes letradores, mediando o processo de leitura para que esse seja produtivo?

O PNLD é um programa de política educacional e lingüística de grandes dimensões. Por isso mesmo, se ficar constatado que os nossos alunos têm muita dificuldade de ler com compreensão o texto dos livros didáticos distribuídos às escolas, vamos concluir que todo o esforço econômico da sociedade brasileira para prover livros às escolas fica prejudicado e pode ser até em vão.

No mundo corporativo, existe uma constante preocupação em se desenvolver uma logística que assegure a compreensão dos textos produzidos ou divulgados no âmbito das empresas, tanto em relação à comunicação interna, com filiais ou franqueados, quanto à comunicação com o público consumidor. Tornar textos publicitários compreensíveis e de agradável leitura é uma das principais preocupações dos profissionais dessa área. No caso dos livros didáticos, isso não ocorre.

O Ministério da Educação e as secretarias estaduais e municipais, responsáveis pela produção do material didático, aparentemente, só se preocupam com a fase da elaboração. Não se detêm numa logística de acompanhamento que avalie a recepção dos textos pelos leitores. Tomam como tácito que o texto será compreendido pelo estudante e, se não o for, o professor se encarregará de fazer a mediação pedagógica ajudando no processo de compreensão de seus alunos.

 

2 Discussão

 

Pereira (2007), pesquisando aulas de Geografia e de Filosofia em uma escola de Ensino Médio no Distrito Federal, constatou que a maioria dos professores não desenvolvia estratégias pedagógicas que pudessem facilitar a compreensão do texto. Embora não se posssa generalizar os resultados de uma pesquisa qualitativa, desenvolvida no microcosmo de uma escola, sabemos, por depoimentos de professores, alunos e gestores educacionais, que nossos alunos têm problemas na leitura produtiva dos livros didáticos. Usando uma linguagem bem prosaica, podemos dizer que, em alguns casos, o professor indica a lição a ser lida e, a partir daí, “o aluno que se vire”.

Como discutiremos brevemente na seqüência deste trabalho, a compreensão da leitura é um processo complexo, influenciado por muitas variáveis, mas parece existir um consenso entre os pesquisadores quanto ao papel proeminente dos conhecimentos prévios dos leitores na viabilização de uma leitura com compreensão.

Ora, o conhecimento prévio – conhecimento de mundo ou enciclopédico – que nossos estudantes detêm pode estar muito distante dos conteúdos dos textos didáticos, quase sempre muito pautados em textos acadêmicos. Por exemplo, em um texto didático de sétimo ano foi incluída uma crônica de Fernando Sabino sobre suas experiências como locutor de rádio. O texto não é vazado em linguagem erudita ou muito distante da realidade dos leitores potenciais. Mas o autor faz referência à BBC, ao sepultamento do cantor Francisco Alves e ao Big Ben. Todos esses itens eram completamente estranhos à experiência de vida do jovem aluno de sétima série. A professora que acompanhava a sua leitura teve de tecer longas explicações para que não ficassem “buracos” na compreensão que o leitor se esforçava por construir. No caso do Big Ben, ele estabeleceu uma associação com o “big bang” de que já ouvira falar, o que deu ensejo a um novo round de explicação por parte da professora. De fato, para ler com entendimento, a crônica considerada um exemplar de leitura acessível, o jovem necessitava de um ou mais interlocutores, mais experientes na cultura letrada para ajudá-lo. Sem esse apoio, sua leitura ficava prejudicada.

Essa habilidade de escrever de maneira simples, de que temos modelos antológicos como o “Dom Quixote das crianças” de Monteiro Lobato, não compromete o conteúdo do texto. Um livro didático pode ser preciso, informativo, atualizado quanto ao estado da arte da disciplina, sem ser opaco, de difícil leitura.

É preciso que se tenha bem clara a especificidade dos diversos gêneros empregados na descrição e divulgação da pesquisa científica, que vão variar em função do público a que se destinam. Os textos escritos pelos cientistas e publicados nas revistas especializadas, que serão lidas pelos seus pares, diferem dos relatórios de divulgação científica, destinados ao público em geral. Zamboni (2001) faz uma clara distinção entre o texto científico essencial à ciência e o texto de divulgação científica, necessário ao público leigo. Esses últimos estão mais próximos dos livros didáticos, tanto em relação aos seus objetivos, quanto em relação ao seu público leitor. No entanto, há textos de manuais escolares em que se podem encontrar construções textuais eivadas de um jargão que é mais pertinente e adequado aos textos científicos.

Sousa (2001) discute a transformação de gêneros científicos em gêneros para uso pedagógico, que ela denomina mediacionais, pois são interativos e envolventes e atendem a expectativas comunicativas em um contexto específico de letramento, que é a educação a distância. Muitas das estratégias lingüístico-textuais que a autora analisa para o gênero mediacional podem aplicar-se também aos livros didáticos que não sejam destinados à educação a distância.

Considerando as dificuldades causadas por textos escolares opacos, temos de levar em conta principalmente que podem faltar ao estudante outros interlocutores, além do professor, na sua rede de relações sociais, com quem possa discutir ou comentar o conteúdo de suas leituras escolares obrigatórias. Imagina-se que essa situação seja muito comum, se levarmos em conta os dados do INAF – Índice Nacional de Alfabetismo – (acessíveis em www.ipm.org.br), segundo os quais cerca de dois terços dos adultos brasileiros são analfabetos funcionais.

Dados que temos coletado no âmbito do Projeto Letramento no Ensino Fundamental (LEF), por meio de protocolos de leitura produzidos com um pequeno grupo de alunos do sexto e sétimo anos, demonstram que esses alunos têm grande dificuldade na compreensão dos textos de seus livros didáticos.

Durante as sessões de leitura, conduzidas com cada aluno individualmente, a pesquisadora desenvolve estratégias para facilitar a compreensão do texto; em outras palavras, constrói andaimes, faz uma mediação de modo a tornar o texto lido mais compreensível. Andaime é um termo metafórico, introduzido por Bruner (1983), que se refere à assistência visível ou audível que um membro mais experiente de uma cultura presta a um aprendiz, em qualquer ambiente social, ainda que o termo seja mais empregado no âmbito do discurso de sala de aula. Dois conceitos básicos subjacentes à noção de andaime são a zona de desenvolvimento proximal (ZDP) de Lev Vygotsky, retomado por Jerome Bruner, e as pistas de contextualização, como propostas por John Gumperz, principal teórico da Sociolingüística Interacional (BORTONI-RICARDO; SOUSA, 2006).

Conforme se pode ler em http:www.leadertalk.org200710 interesting-res.html, os leitores, maduros ou iniciantes, associam as informações do texto a suas próprias experiências e vocabulário, de modo a construir sentidos sobre o que estão lendo. Muito relevante também no processo é a sua experiência anterior de leitura (KLEIMAN; MORAES, 1999). Ted Hasselbring, professor de educação especial no Peabody College em Vanderbilt, faz menção a dois tipos de problemas de leitura: de codificação, que envolve habilidades de nível baixo; e de incompreensão dos textos, que se relaciona a habilidades de alto nível. E completa: quanto mais hábeis com as primeiras, mais memória operacional os leitores liberam para o segundo tipo de habilidades. Ao final, enfatiza a importância do conhecimento anterior (background knowledge) no processo da leitura (ver também a esse respeito: KLEIMAN, 1997). Em publicação do PIRLS: Marcos Teóricos y especificaciones de avaluación (2006, p. 15), Mullis, Kennedy, Martin e Sainsbury, pesquisadores responsáveis pelo documento, ressaltam que.

quando os leitores interpretam e integram idéias e informação a partir do texto, com freqüência necessitam fazer uso de sua compreensão do mundo, estabelecendo conexões que podem ser implícitas ou podem estar abertas a interpretações baseadas em sua própria perspectiva. Ao interpretar e integrar idéias e informação do texto, é possível que tenham que fazer uso de seus conhecimentos e experiências anteriores. (traduzido do espanhol)

Com relação à importância desse conhecimento anterior, ou conhecimento de mundo, achamos importante atentar para o conhecimento do vocabulário, sem negligenciar, contudo, as muitas outras variáveis que têm papel relevante na complexa questão da compreensão na leitura.

Os lingüistas, desde os estágios formativos da disciplina, sabem que “o léxico da língua é o componente que mais nitidamente reflete o ambiente físico e social dos falantes” (SAPIR, 1969, p. 45). O conhecimento que os falantes têm desse ambiente físico e social é processado na forma de estruturas de dados ou frames (molduras). Uma moldura, de acordo com Brown e Yule (1983), é uma dada representação do mundo fixada em nossa mente. A compreensão do que lemos ou ouvimos implica confrontar as informações que estamos adquirindo com essas estruturas mentais de dados. Se um item ou mais do vocabulário que compõe um texto não se encaixar em uma moldura armazenada na mente, a compreensão do enunciado ou do texto fica necessariamente prejudicada (BORTONI-RICARDO, 2007).

Marcuschi (2008, p. 252) chama a atenção para a complexidade do processo de compreensão da leitura, demonstrando como o leitor trabalha inferencialmente com informações textuais, conhecimentos pessoais e suposições. Segundo o autor, “as inferências são produzidas com o aporte de elementos sociossemânticos, cognitivos, situacionais, históricos e lingüísticos de vários tipos que operam integradamente. Para ele, compreender é essencialmente uma atividade de relacionar conhecimentos, experiências e ações num movimento interativo e negociado. O autor ainda se vale da metáfora de Dascal (1981), que imagina o texto como uma cebola cujas camadas internas representam as informações objetivas, um núcleo informacional que consiste em 30% a 50% do que entendemos no texto. Envolvendo esse núcleo está uma camada intermediária que é passível de interpretações diversas, porém válidas, justamente o espaço das inferências. Em certos textos, essa camada representa 50% no processo de compreensão. A camada superficial externa, mais sujeita a equívocos, é o domínio de nossas crenças e valores pessoais. Aí se acomodam as extrapolações.

Todo esse processo é profundamente influenciado pelo conhecimento de mundo que o leitor traz consigo para promover o diálogo com o texto no esforço para realizar uma leitura produtiva.

Para ilustrar as dificuldades que estudantes do Ensino Fundamental enfrentam para construírem sentidos a partir do texto didático que têm de ler e de onde têm de assimilar informações para desenvolver seu trabalho escolar, reproduziremos aqui trechos de dois protocolos de leitura, que são parte da pesquisa já referida, que foram gravados e transcritos. O colaborador nesse estudo é um aluno de 15 anos que está cursando a 7ª série. Como se trata de um estudo longitudinal, com duração prevista de dois anos, iniciado em 2007, esse aluno já produziu diversos protocolos da leitura de seu livro de História do Brasil (BORTONI-RICARDO, 2008; www.stellabortoni.com.br). Nos fragmentos da sessão que vamos comentar, a professora pesquisadora (P) e o sujeito colaborador (SC) estão lendo em conjunto um texto de Ciências, do “Jornal do Aluno”, distribuído pela Secretaria de Educação local. Esse material foi elaborado por consultores das diversas áreas de conhecimento para a Secretaria de Educação de São Paulo, que o cedeu à Secretaria de Educação do DF, e foi utilizado, durante um período, por alunos que estão matriculados na correção de fluxo escolar, isto é, acompanham aulas de aceleração com o objetivo de se corrigir a defasagem entre idade e série.

As seqüências lidas pelos dois interagentes estão entre aspas; seqüências omitidas da gravação original estão indicadas com .... É importante observar que o texto lido nesses eventos não é tão opaco como outros que fazem parte do kit de livros do mesmo estudante, distribuído pelo Ministério da Educação. No referido “Jornal do Aluno” já se observa um razoável esforço dos autores no sentido de facilitar a comunicação com os educandos.

1. P – Agora nós vamos ver rapidamente o que você vai ver de ciências nesse próximo mês, vamos lá.

2. SC – “Nutrição e saúde. Com seus professores de ciências, você e seus colegas vão trabalhar com assuntos relacionados com a ciência e a saúde. Entre eles, a presença de aditivos nos alimentos e os riscos que podem oferecer à saúde.”

3. P – Então vamos ver aqui. Qual vai ser o tema das suas aulas de ciências. Que que é...?

A P inicia por induzir o SC à identificação do tema, que ele poderia ter inferido pela leitura do subtítulo em (2) e também pela apresentação (2) que os autores promovem dirigindo-se diretamente ao aluno (“você e seus colegas vão trabalhar...”). O SC, no entanto, não processa a compreensão da palavra “tema”, que a P usou e atende à solicitação dela prosseguindo a leitura (4).

4. SC – “Elaborar...”

5. P – Antes de lermos isso só me responde. Qual vai ser o tema? Vocês vão estudar sobre o quê?

Só então a P percebe que ‘tema’ é um item lexical problemático e elabora uma paráfrase (5). O SC então fornece a resposta correta (6).

6. SC – Sobre a saúde e os alimentos.

7. P – Nutrição quer dizer?

A P antecipa que a palavra “nutrição” pode ser desconhecida, mas pela resposta de SC (8), vê-se que esse item lexical está presente pelo menos em seu vocabulário passivo, de recepção.

8. SC – Alimentos que a gente come.

9. P – Muito bem, a alimentação que a gente come é nossa nutrição. O ar que a gente respira também nos alimenta, é um nutriente, mas aqui vão ser os alimentos mesmo. Eles vão... vocês vão trabalhar a presença de quê?

10. SC – “Aditivos nos alimentos e os riscos que podem oferecer à saúde”.

O SC localiza no texto a informação que precisa repassar à sua interlocutora. No entanto, ele não sabe o que são aditivos, naquele contexto, como se vê na troca de turnos (11) e (12).

11. P – Você já sabe o que são aditivos?

12. SC – Não.

13. P – Você não sabe o que são aditivos, você ainda vai aprender este mês. Mas leia aqui “a presença...”

A P opta por levá-lo a realizar uma inferência a partir da leitura dos períodos subseqüentes.

14. SC – “... A presença de aditivos, os alimentos e os riscos que podem oferecer à saúde.”

15. P – Então, os aditivos, que... que os aditivos podem fazer para nós?

16. SC – Muito mal à saúde.

O SC de fato consegue processar a inferência corretamente. Há algumas sessões a palavra “riscos” havia sido discutida por eles. A P ratifica a contribuição de SC em (16).

17. P – Podem fazer mal à saúde. Riscos são?

18. SC – Perigos.

19. P – Riscos são perigos. Riscos são problemas. Então, você vai estudar em ciências os aditivos nos alimentos e esses problemas, esses riscos. Então, será que aditivos são uma coisa boa ou ruim?

20. SC – Ruim.

21. P – Que será que são esses aditivos que tem nos nossos alimentos?

22. SC – Eu acho que a gordura.

23. P – A gordura não é um aditivo. Aditivo é uma coisa que se coloca no alimento, se acrescenta no alimento. A gordura já é parte do próprio alimento. Aditivos que fazem mal à saúde e que estão sendo colocados nos alimentos... são venenos... pra quê?

24. SC – Para...

O SC hesita.

25. P – Esses venenos têm o nome de agrotóxicos. Já ouviu falar?

A P neste turno associou os aditivos apenas aos resíduos de agrotóxicos. Com o prosseguimento da leitura, ela própria tem um melhor entendimento do conceito de aditivos.

26. SC – Ah, já.

27. P – Então, esses agrotóxicos são postos nas plantas pra quê?

28. SC – Pra não causar muitas lagartas.

29. P – Isso mesmo. Ótimo. Para que os insetos não comam a planta. Vamos pensar num pé de tomate. Você já viu um pé de tomate?

Uma estratégia muito comum que a P usa repetidas vezes durante a interação é relacionar a informação lida com a vida cotidiana do SC.

30. SC – Já.

31. P – Sua casa tem?

32. SC – Tinha, só que o cachorro arrancou.

33. P – O cachorro estragou?

34. SC – Aham.

35. P – Muito bem, como era só um pezinho de tomate não tinha perigo de dar ali pragas e acabar com o pé de tomate. Mas se você pensar em uma fazenda com muitos pés de tomate, tomateiros, ali pode dar uma praga e comer os pés de tomate. Por que que os agricultores põem diversos agrotóxicos nas plantações?

36. SC – Pra matar os insetos que chegam.

37. P – Para matar os insetos. “Agro” é um pedacinho de palavra que você vai encontrar na palavra ‘agricultura’, tem a ver com essa produção agrícola.

E tóxico, que... que é tóxico?

A P recorre a uma informação lingüística, de natureza morfológica em (37).

38. SC – Tóxico é uma coisa que... toxina...

39. P – Que tem toxinas porque intoxicam. São ve?

40. SC – nenos.

41. P – São venenos. Às vezes esse veneno, muitas vezes, quase sempre, os venenos que os agricultores põem nas plantações para proteger as plantações dos insetos, esses venenos podem ser tóxicos também, podem fazer mal à?

42. SC – Aos tomates, às plantações.

43. P – Faz mal às plantações e faz mal...

44. SC – À gente também.

A P trabalha com o SC no nível inferencial. Em (42) o SC não realiza completamente a inferência, mas com o apoio de mais um andaime em (43), ele é bem sucedido.

45. P – À gente também. Então quando eles estão dizendo que a gente vai estudar...

A P indica o título do trabalho

46. SC – “... aditivos, os alimentos e os riscos que podem oferecer à saúde.”

47. P – Então você já sabe que você vai estudar sobre o quê?

48. SC – Os aditivos, que eles põem nos alimentos.

49. P – Nas plantas. E qual o nome que nós damos a esses aditivos?

50. SC – Agrotóxicos.

51. P – Então o que que você vai estudar? Você vai estudar aditivos, alguns aditivos são agrotóxicos, mas há outros aditivos. Que são postos para que as plantas cresçam mais, para que os frutos fiquem maiores, certo? Mas você vai ver que esses aditivos, que... que eles fazem?

52. SC – Põem em risco a nossa saúde.

53. P – Põem em risco a nossa saúde. Então veja que o primeiro exercício que você vai fazer... nós não vamos fazer hoje porque não temos tempo, mas leia aqui.

A P ratifica o turno do SC.

54. SC – “Você, seus colegas e seu professor vão construir juntos a tabela a seguir com informações sobre os nutrientes e as principais funções que elas desempenham no nosso corpo. Você também vai propor um título para essa tabela. Como você sabe a tabela também é uma forma de registrar informações e o título deve expressar aquilo que ela contém.”

55. P – Então o que... que vocês vão fazer nessa grande tabela? Vocês vão... primeiro, nós já sabemos que vocês vão estudar aditivos e os riscos. Além disso, eles estão pedindo que você faça o quê? Você e seus colegas coloquem aqui “Os alimentos e os nutrientes”. Que que são nutrientes?

56. SC – São... acho que as vitaminas.

57. P – São as vitaminas, são aquelas propriedades que os alimentos têm. Vamos olhar um [alimento] pra gente ver como é que a gente vai fazer isso, pra gente aprender. Tem muita coisa pra você me ensinar da próxima vez, hein?

A P aceita a resposta parcial, mas a expande, com a finalidade de levar o SC a uma reconceptualização (cf. CAZDEN, 1988).

58. SC – É.

59. P – Aqui, primeiro é o?

60. SC – Tomate.

61. P – Quais são os nutrientes que o tomate tem?

62. SC – “Tem proteínas, amido, alguns sais minerais, vitaminas A, B e C, água e é rico em...”

63. P – Aqui eles repetem.

A P mostra ao SC que as informações estão sistematizadas em um quadro sinótico e as reitera em (64), trabalhando a estratégia de recuperação de informações e valendo-se do quadro que consolida as informações do texto. Nos turnos seguintes P e SC passam a ler e buscar as informações no referido quadro incluído no capítulo. É uma experiência relativamente nova para SC, que não está familiarizado com esse tipo de texto não-contínuo que sistematiza informações anteriormente apresentadas.

64. Então, ele é rico em amido, vitamina A, B e C. Você se lembra daquela doença que dava nos marinheiros por causa que eles não comiam nada que tivesse vitamina C?

A P ativa a memória do SC que havia lido recentemente um texto sobre as navegações portuguesas nos séculos XV e XVI.

65. SC – É o escorbuto.

66. P – Escorbuto. A doença que dava nos marinheiros. Que... que eles não comiam, por exemplo?

A P está avaliando a informação recém-adquirida. É uma estratégia de avaliação formativa porque reforça o aprendizado. Como observa Villas-Boas (2002), nesse tipo de avaliação, em que os alunos exercem papel central, promove-se aprendizagem e se obtêm informações diagnósticas.

67. SC – Tomate.

68. P – Tomate. Qual uma fruta que você sabe que tem bastante vitamina C?

69. SC – Vitamina C...

70. P – Laranja. Laranja e limão. Então vamos ver aqui... o que ... que você e seus colegas... Por que aí você vai ajudar os seus colegas a fazerem as tabelas. Nós já sabemos que o tomate tem proteínas, tem amido e tem sais minerais e vitaminas A, B e C e ainda tem bastante água, né? Então tudo isso, veja como o tomate é rico. Agora, se ele estiver cheio de aditivos e agrotóxicos aí é perigoso, precisa lavar bem. Qual o outro alimento?

A P aponta o quadro sinótico.

71. SC – O pão.

72. P – O pão. Você gosta de pão?

73. SC – Gosto.

74. P – Quais são os nutrientes do pão?

SC lê na célula correta do quadro a informação:

75. SC – “Proteína, gorduras, vitamina B, alguns sais minerais, água” e só.

76. P – Ele é rico em amido. Então esses são os nutrientes do pão. Qual outro?

A P indica um outro alimento no quadro

Categoria pai: Seção - Notícias

O professor e a construção do

conhecimento

Maria da Guia Taveiro Silva (UEMA)

“[...]o senso comum representa uma dimensão do

conhecimento que não deve ser descartada [...]”

(BORTONI-RICARDO)

O Professor Pesquisador é mais uma obra da

professora Dra. Stella Maris Bortoni-Ricardo, uma das

mais renomadas linguistas do Brasil, que atua mais

especificamente na área da sociolinguística e

etnografia. É professora titular emérita de linguística da

Universidade de Brasília e docente e pesquisadora da

Faculdade de Educação da mesma universidade.

A obra, embora se trate de uma introdução,

como diz o título, contém excertos importantes que

esclarecem e exemplificam a pesquisa sob dois

paradigmas: (a) positivista e (b) interpretativista, ou

seja, quantitativa e a qualitativa. Os professores que

estão em atividade eou em formação inicial ou continuada formam o público alvo.

A intenção da autora é estimular os professores à produção do conhecimento

científico, para que o professor pesquisador não se veja apenas como um usuário de

conhecimento produzido por outros pesquisadores, mas se proponha também a produzir

conhecimentos (p.46). Ela apresenta os dez princípios básicos da metodologia da pesquisa

qualitativa e almeja que os profissionais, leitores da obra, se apropriem desse

conhecimento e se tornem aptos a ler e a compreender relatórios de pesquisas e artigos

científicos, e que transformem a prática pedagógica, visando o desenvolvimento do

alunado.

Foto: Chico Ferreira

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O professor

pesquisador. São Paulo, Parábola,

2008. 135p.

O professor pesquisador: introdução à pesquisa qualitativa

Volume 1 – Número 2 – Ano I – nov2008

79

Os dez princípios a que a autora faz referência são os apresentados em um projeto

de alfabetização de crianças programado pelo município de Sobral no Ceará (INEP, 2005),

a saber:

(1) A criança precisa falar

(2) A criança precisa agir

(3) A criança precisa brincar

(4) A criança precisa ter limites

(5) A criança precisa trabalhar em grupo

(6) A criança precisa desenhar

(7) A criança precisa ouvir histórias

(8) A criança precisa contar histórias

(9) A criança precisa ler e escrever

(10) A criança precisa ser estimulada

(INEP, 2005 citado em BORTONI-RICARDO, 2008, p. 89.)

A obra é o volume 8 da série “Estratégias de Ensino”, da Parábola Editorial. É

composta por uma introdução, 11 capítulos e um índice onomástico de assuntos, que

possibilita a localização de um determinado assunto com mais rapidez.

A introdução trata da pesquisa científica. Nela a autora faz referência à importância

da ciência e do pensamento científico na vida do ser humano, e mostra que as pesquisas

influenciam desde a produção de alimentos aos mais simples detalhes de quase tudo da

nossa vida. Ela menciona a revolução que a ciência ocasionou no mundo, provocando

mudanças diversas e o estabelecimento de novos paradigmas. É ressaltada a importância da

pesquisa em sala de aula para a compreensão e a solução dos problemas inerentes ao

ensino e à aprendizagem, esclarecendo, ainda, que a pesquisa, nesse contexto, pode ser

realizada em qualquer um dos paradigmas: quantitativo ou qualitativo, que são as duas

principais tradições no desenvolvimento da pesquisa social.

No que tange ao positivismo, este inicialmente era empregado somente nas ciências

exatas, porém no início do século XIX ele começou a ser utilizado nas ciências sociais.

Duas características do positivismo são consideradas marcantes, a primeira delas é a

precisão e a outra é o distanciamento que se estabelece entre o sujeito, o pesquisador e o

que ele se propõe a pesquisar.

Por sua vez, a pesquisa qualitativa é mais recente: surgiu no século XX, quando

ocorreu um desenvolvimento científico significativo. Apesar das pesquisas, que adotam

esse paradigma, na maioria das vezes, exigirem do pesquisador uma imersão no campo de

pesquisa, participação no contexto onde ela é desenvolvida e uma interpretaçãoanálise

muito dependente da sua subjetividade, ela vem cada vez mais ganhando credibilidade. E

Resenha

Revista de Letras da Universidade Católica de Brasília

80

isso se deve à minuciosidade que, de certa forma, resulta também numa maior “precisão”

na apreensão da realidade. Essa metodologia de pesquisa se deve muito à filosofia e à

sociologia, onde ela tem suas raízes alicerçadas. Um dos teóricos mais citados, pela autora,

é o americano Frederick Erickson.

Como etnógrafa e exímia pesquisadora, a autora dá uma verdadeira aula das rotinas

de pesquisa. Pode-se dizer que a obra é um “manual” detalhado de como se proceder em

cada passo de uma pesquisa, especialmente, a qualitativa.

Para Bortoni-Ricardo a pesquisa deve ser iniciada “com perguntas exploratórias

sobre temas que podem constituir problemas de pesquisa” (p. 49). O pesquisador deve

refletir sobre tais temas e eleger um deles. “A definição de um tema e a proposição das

perguntas exploratórias são duas etapas iniciais muito importantes”, pois para se realizar

uma pesquisa deve-se ter clareza do que se quer investigar (p.50). O exame de literatura

pertinente também é fundamental e indispensável nessa etapa. No decorrer da investigação,

é possível retomar qualquer parte da mesma, desde que surja uma necessidade e haja uma

justificativa para tal, podendo até mesmo todo o processo sofrer alteração. Quando a

pesquisa exige alteração de procedimentos é com o objetivo único de produzir resultados

mais próximos da realidade, ou seja, mais fidedignos.

No professor pesquisador... pode-se perceber que desde a geração de registros e a

transformação deles em dados até a análise conclusiva desses dados, se estabelece um

percurso sem uma divisão rígida de etapas. O processo deve sofrer constante avaliação. O

registro das informações que geram os dados e a análise preliminar dos mesmos acontece

concomitantemente e, é exatamente esse fato que cria a possibilidade de alteração.

Além das duas etapas já mencionadas, a autora explicita outras que são muito

importantes, como o planejamento das ações, a elaboração dos objetivos e das asserções a

associação das asserções aos dados, a coleta e análise de dados.

A obra de Bortoni-Ricardo oferece ao leitor nove pré-projetos de pesquisa

desenvolvidos por suas orientandas de Mestrado e Doutorado, alguns já concluídos e

outros em andamento, os quais se constituem em bons exemplos que podem servir como

orientação e estímulo tanto para professores pesquisadores mais experientes como para

aqueles que são iniciantes.

O último capítulo ressalta a importância das redes sociais para a análise qualitativa.

A autora entende rede social “como o conjunto de vínculos entre os membros de um

O professor pesquisador: introdução à pesquisa qualitativa

Volume 1 – Número 2 – Ano I – nov2008

81

grupo” e diz que nesse paradigma “as relações interindividuais se tornam mais importantes

que os atributos dos indivíduos” (p. 121).

Características socioculturais e sociolinguísticas de um grupo social, segundo

Bortoni-Ricardo, podem ser explicadas por meio da análise de redes sociais. “Quando uma

comunidade está inserida numa outra maior e seus limites não são claramente

estabelecidos” (p.124), o pesquisador pode iniciar a pesquisa por indicações sociométricas.

Para a autora, as indicações sociométricas consistem na obtenção de informações,

iniciando por um interlocutor, que cita outro e, assim, nessa prática sucessiva, pode-se

alcançar um número ideal de interlocutores e uma quantidade suficiente de informações

para a realização da investigação.

Não há dúvidas de que se trata de uma obra muito interessante e agradável para se

ler, pois o texto é dinâmico, informativo, formativo e indispensável para professores e

pesquisadores. A obra se torna mais interessante pela adoção de “lembretes”, “links”,

“chamadas” e sugestões de investigação de determinados termos utilizados pela autora no

texto. Assim, constitui-se um material vasto e rico para quem quer ser um pesquisador, ou

para quem deseja simplesmente compreender melhor relatos de pesquisa.

Maria da Guia Taveiro Silva É Mestre em Educação pela Universidade de Brasília e professora auxiliar da Universidade Estadual do

Maranhão - Centro de Estudos Superiores de Imperatriz. Atualmente cursa Doutorado em Lingüística pela Universidade de Brasília.

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Categoria pai: Seção - Notícias

Artigo para Livro Comemorativo ABRALIN 40 anos

 

Título: Sociolinguística Educacional

Autoras: Stella Maris Bortoni-Ricardo e Vera Aparecida de Lucas Freitas

In  Hora, D. et alii (orgs.) Abralin – 40 anos em cena. João Pessoa: Editora Universitária, 2009, p. 217-240

 

É natural que em um país com graves problemas sociais, relacionados à histórica má distribuição de renda e à parca tradição de cultura letrada, como é o caso brasileiro, as ciências sociais tenham desenvolvido aqui um viés aplicado às questões socioculturais. A lingüística não fugiu a essa regra.

Desde a segunda metade do século XX, nos estágios formativos da ciência lingüística no Brasil, os pesquisadores pioneiros apontaram para a necessidade de seus estudos assumirem um compromisso com os problemas lingüísticos brasileiros tais como a documentação das línguas brasileiras; a descrição de línguas sobreviventes em comunidades de imigrantes; as características e o status da norma brasileira da língua portuguesa e o ensino dessa norma nas escolas do país. Joaquim Mattoso Câmara Jr. (1957), não obstante seu intenso labor para produzir os primeiros textos de lingüística descritiva do português brasileiro, encontrou tempo para examinar erros escolares, associando-os às características do português falado no Rio de Janeiro, em trabalho que deixa patente a vocação da lingüística nacional para o envolvimento com a questão do ensino do português como língua materna no Brasil.

       Na década de 1960, Rodrigues (1966) produz um artigo, hoje antológico, sobre as tarefas da lingüística no Brasil. Na década seguinte, Vandresen (1973) retoma o tema, dessa vez enfocando as tarefas da sociolingüística. Em ambos os trabalhos, é enfatizado o compromisso da lingüística brasileira com o ensino sistemático da língua portuguesa no país.

       A evolução de duas premissas básicas da lingüística estruturalista do século XX criou as condições para a emergência do ramo da lingüística que veio a ser denominado sociolingüística, graças ao seu caráter interdisciplinar. As duas premissas são o relativismo cultural e a heterogeneidade inerente e ordenada na língua de qualquer comunidade de fala. O primeiro foi herdado da tradição antropológica, segundo a qual nenhuma cultura ou língua de uma comunidade deveria ser classificada como inferior ou subdesenvolvida, independentemente do nível de tecnologia ocidental que aquela comunidade já tivesse atingido. Com base nesse princípio, os lingüistas nos Estados Unidos propuseram a “equivalência funcional e a igualdade essencial de todas as línguas e rejeitaram estereótipos evolutivos equivocados” (HYMES, 1974, p. 70).

       Num primeiro momento, o conceito de relativismo cultural aplicou-se à comparação entre línguas, mas quando a premissa da heterogeneidade inerente foi postulada pela sociolingüística variacionista, no final dos anos 1960, esse conceito passou a aplicar-se também às múltiplas variedades e estilos de uma mesma língua (BORTONI-RICARDO, 1997).

       Desde o seu berço a Sociolingüística, tanto na sua vertente variacionista quanto na sua vertente qualitativa, demonstrou preocupação com o desempenho escolar de crianças provenientes de diferentes grupos étnicos ou redes sociais. Desde então muito tem contribuído para os avanços na pesquisa das questões educacionais em diversos países do mundo, principalmente nas últimas quatro décadas. O objetivo tem sido o de construir novas metodologias que auxiliem professores a desenvolver em seus alunos as habilidades cognitivas necessárias a uma aprendizagem mais ampla, à expansão de sua competência comunicativa (HYMES, 1974) e à capacidade de desempenhar tarefas escolares cotidianas. Entretanto, essa não é uma missão fácil porque tratar de problemas educacionais é uma ação que envolve questões mais abrangentes e não apenas aquelas restritas ao ambiente escolar. Além das consideradas como puramente pedagógicas, existem outras que estão subordinadas a dimensões macro-sociais graves, relacionados à desigualdade na distribuição do capital monetário, que por sua vez gera a desigualdade social (FREITAS, 1996).

       Paralelamente à evolução da sociolingüística quantitativa já referida, estudiosos da antropologia da educação e lingüistas, na década de 1960, começam a constatar, por meio de pesquisas etnográficas, o acentuado etnocentrismo existente nas teorias que tentavam explicar a causa do fracasso escolar de alunos provenientes de classes sociais minoritárias ou trabalhadoras. Entre essas teorias, a mais habitualmente usada como explicação do insucesso do aluno foi a do deficit genético ou ideologia do dom, que defende como causa do fracasso escolar as desigualdades naturais de aptidão e de inteligência entre os indivíduos, ponto de vista esse legitimado pela psicologia diferencial e pela psicometria, e que Soares (1986) considera ser um argumento dissimulado subjacente a um discurso que “pretende” ser científico.

A essa explicação seguiu-se outra, a teoria do deficit cultural, intimamente relacionada aos fatores ambientais, ao estímulo recebido pelo indivíduo e à alimentação. A teoria do deficit cultural, também chamada do deficit verbal ou social, foi largamente aceita na época de sua concepção. Postulava uma ausência ou falta de cultura dos alunos pertencentes a grupos minoritários da sociedade, causada pelo ambiente cultural “empobrecido” em que viviam eles e suas famílias, também considerado cognitivamente desestimulante, principalmente, no que dizia respeito à linguagem. O fracasso do aluno, de acordo com esse pensamento, teria origem no seu background cultural. As diferenças entre a linguagem e as experiências que a criança traz de casa e a linguagem e experiências demandadas pela escola resultariam no insucesso do aluno. De acordo com essa teoria, as crianças de classes sociais desfavorecidas sofriam privações que poderiam ser de ordem material ou cultural. Crianças oriundas de meios em que as famílias sofriam as conseqüências do desemprego, da pobreza e da superpopulação eram as que mais sofriam o risco de fracassar na escola (STUBBS, 1980). As crianças pobres eram consideradas inferiores intelectual e moralmente. O meio ambiente e o background lingüístico do aluno estariam, portanto, relacionados ao seu sucesso ou fracasso na vida escolar. Erickson (1987) comenta, considerando os argumentos da teoria do deficit cultural, que o conceito de nutrição (nurture) substituiu o conceito de natureza (nature) como principal razão para o fracasso escolar. Ambas as teorias deixavam nítido o preconceito de raça e de cultura, embora essa postura não tenha sido claramente assumida pelos seus mentores. William Labov (1972), com o objetivo de argumentar contrariamente a essas teorias, realizou estudos dialetais contrastivos, mostrando que a variação é um fator inerente à língua. Entretanto, muitas foram as críticas que apontavam a proposta da Sociolingüística educacional como limitada a uma dimensão micro-social, ingênua e simplista, tendo sido a crítica de John Ogbu (ERICKSON, 1987), a mais severa de todas. Erickson conclui que a continuidade das investigações no final da década de 1960 permitiu que antropólogos norteados por uma visão sociolingüística identificassem no âmbito da escola importantes fatores que influenciam o rendimento escolar e o ânimo dos alunos. Ou seja, que o estilo de comunicação entre professores e alunos pode ser uma das causas do fracasso escolar. Essa posição tinha um aspecto de neutralidade, pois procurava analisar o fato do fracasso escolar sem buscar culpados e mostrava uma nova forma de interpretá-lo.

       Sabe-se hoje que o fracasso escolar depende também de fatores externos, que estão fortemente ligados às condições socioeconômicas do aluno. O resultado das injustiças sociais e as limitadas possibilidades de ascensão social a que estão sujeitos os indivíduos que não conseguem uma educação de qualidade manifesta-se por meio de um desinteresse pelas atividades intelectuais e pelo desestímulo em relação a tudo que a escola propõe.

A teoria da reprodução (Bourdieu e Passeron, 1975) postula que a escola reproduz as relações do sistema capitalista, enfatizando a relação existente entre ela e a organização do trabalho e afirmando que essa instituição estaria reproduzindo em seu contexto as desigualdades estabelecidas pela sociedade. O foco da teoria é analisar de que forma o capital cultural estaria influenciando contextos particulares, como, por exemplo, a escola. Destacam-se nessa teoria a valorização das ações humanas e as relações reflexivas das interações sociais como duas importantes contribuições dadas pelos estudos interpretativistas de natureza sociolingüística à questão educacional.            

       Embora algumas críticas tendam a apontar a sociolingüística como algo voltado apenas para a micro-realidade de sala de aula, é notório que isso verdadeiramente não ocorre. O que a Sociolingüística faz é buscar respostas para questões educacionais dentro do universo da escola. Com isso, ela envolve-se em temas consideravelmente mais amplos que se inserem no contexto social maior, conciliando os aspectos micro e macro do processo. E é para esse contexto que a escola deve preparar o indivíduo.

Os ecos do envolvimento da Sociolingüística variacionista e interacionista com os problemas educacionais nos países do Norte chegariam rapidamente ao Brasil. Suas primeiras manifestações podem ser encontradas no empenho dos estudiosos em refutar o chamado preconceito lingüístico e em recomendar que a língua efetivamente usada nas comunidades de fala fosse considerada na pedagogia da língua materna. O estado de São Paulo foi pioneiro na difusão dessas idéias. Em 1978, Ataliba Castilho et alii produzem para a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo publicações relevantes como subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o segundo grau.

Na década seguinte uma grande quantidade de livros foi publicada, dando continuidade às propostas educacionais de bases lingüísticas, entre os quais, queremos ressaltar, muitos tiveram seu fulcro nas teorias sociolingüísticas. Mencionaremos aqui apenas os títulos que serviram de fundamento para a proposta curricular no Distrito Federal no início dos anos 80, mesmo correndo o risco de produzirmos uma listagem com muitas lacunas, pelo que já nos penitenciamos. Na área de alfabetização, citamos Eglê Franchi (1984) e Paulo Freire (1982); no ensino da leitura e escrita para séries posteriores, constavam da referida proposta João Wanderley Geraldi (org., 1984), Rodolfo Ilari (1985), Mary Kato (1985), Alcir Pécora (1983). Voltados especialmente para a leitura tivemos Marisa Lajolo (1982), Maria Helena Martins (1983), Ezequiel Theodoro da Silva (1983) e Regina Zilberman (org., 1982). Alguns autores ocuparam-se em especial com o ensino da gramática: Evanildo Bechara (1985), Celso Pedro Luft (1985) e Mário Alberto Perini (1985), enquanto outros trataram da questão de uma perspectiva filosófica: Maurizzio Gnerre (1985) e Magda Soares (1986).

À medida que chegavam ao mercado editorial obras com recomendações importantes para o aprimoramento do ensino da língua portuguesa nas escolas brasileiras, pôde-se observar a ocorrência de algumas mudanças de postura, em especial um esforço dos livros didáticos para substituir a excessiva ênfase na terminologia gramatical pelo tratamento da língua em uso, embora ainda haja muito que fazer para tornar mais eficiente o trabalho pedagógico com a leitura e a escrita nas nossas escolas.

Há que se chamar atenção especialmente para um fenômeno bem brasileiro. Os cursos de Letras têm sido razoavelmente ágeis na inclusão dos resultados da pesquisa lingüística em seus currículos, mas esses cursos geralmente não se ocupam da formação do professor das séries iniciais, nem tampouco do alfabetizador. Seu foco tem sido a formação de professores para as séries conclusivas do ensino fundamental e para o ensino médio. A formação do alfabetizador e do professor das séries iniciais fica a cargo dos cursos de Pedagogia e Normal Superior, este último implantado somente na última década. Em alguns estados brasileiros ainda existem os cursos de magistério de nível médio, mas em outros a formação que esses cursos forneciam hoje está sendo realizada em nível superior. No entanto, os cursos superiores responsáveis pela formação dos alfabetizadores e professores de séries iniciais incluem em seus currículos muito pouca informação lingüística. O resultado é que a pesquisa resultante dos estudos da linguagem acaba por ser pouco aproveitada, justamente na tarefa de alfabetização e no ensino inicial da leitura e da escrita, o que em parte poderia explicar os resultados tão ruins que a sociedade brasileira vem colhendo, com a aplicação de exames como o SAEB, a Prova Brasil, o SARESP, o PISA, entre outros. Estamos sugerindo aqui que a aplicação dos resultados da pesquisa lingüística, e particularmente da pesquisa sociolingüística, no esforço de formação de professores do ensino fundamental poderia contribuir efetivamente para a qualidade dessa formação, o que haveria de refletir-se gradualmente no desempenho de nossos alunos.

É interessante observar ainda que os programas recentes de educação continuada dos docentes, de iniciativa do Ministério da Educação e de secretarias municipais e estaduais de educação, como o Praler e o Pró-letramento, entre outros, têm-se preocupado mais em transmitir aos professores noções de lingüística que os cursos de formação inicial. O seguinte fragmento do fascículo “Da fala para a escrita 2”, de autoria de Stella Bortoni, que compõe o módulo 1 do Programa de Alfabetização e Linguagem da Rede Nacional de Formação Continuada de Professores (MEC SEB UnB, 2007) é bem ilustrativo dessa tendência. “Toda vez que duas ou mais pessoas se envolvem numa interação verbal, cada uma delas cria expectativas sobre a forma como ela própria e seus interlocutores vão-se comportar. Queremos dizer que, em uma interação face a face, ou mesmo mediada pelo telefone ou pelo computador, todas as pessoas envolvidas seguem normas sociais que definem o seu comportamento, particularmente o seu comportamento lingüístico. Se todas elas consideram a interação em que estão envolvidas como informal, tenderão a empregar formas lingüísticas adequadas às interações informais. Se uma delas tiver uma interpretação diferente e considerar a situação como formal, poderá vir a empregar formas inadequadas para a situação. Da mesma maneira, em uma situação formal, se um interlocutor escolher usos lingüísticos informais, sua fala resultará inadequada para a situação. Mas veja bem: às vezes uma pessoa reconhece que a situação é formal, dispõe-se a monitorar-se, mas lhe faltam recursos comunicativos próprios da fala monitorada. É por isso que a escola precisa empenhar-se na ampliação dos recursos comunicativos dos alunos. Dispondo de uma gama mais ampla de recursos comunicativos, os alunos, sempre que precisarem e desejarem, saberão monitorar sua fala, ajustando-se às expectativas de seus interlocutores e às normas sociais que determinam como as pessoas devem comportar-se em cada situação. Ao fazer isso estão seguindo normas sociais e serão bem recebidos pelos seus interlocutores. Lembre-se de que as normas sociais que definem um comportamento lingüístico adequado podem ser implícitas, isto é, fazem parte das crenças e dos valores que as pessoas têm. Mas podem ser explícitas também. É o caso das normas gramaticais, que são explícitas.  Mas não podemos nos esquecer de que as gramáticas normativas não admitem flexibilidade. Não levam em conta a noção de adequação. São prescritivas: abonam uma forma considerada correta e rejeitam as que são consideradas ‘erro’”.

      

A realidade e a prática em sala de aula têm mostrado que a Sociolingüística voltada para a educação pode contribuir de forma significativa para melhorar a qualidade do ensino da língua materna em cursos de formação de professores alfabetizadores porque trabalha com os fenômenos da língua em uso, com base na relação língua e sociedade e voltada para a realidade dos alunos.

Licenciandos em cursos de Pedagogia que recebem formação sociolingüística estão mais bem preparados para lidar com o ensino da língua materna, pois se tornam mais eficientes como mediadores e co-construtores do conhecimento lingüístico necessários aos alunos para sua participação nas práticas sociais que acontecem na escola e na sociedade.

No restante do capítulo vamos analisar fragmentos coletados pelas autoras deste texto, em um exercício em que alunos do curso de Pedagogia da Universidade de Brasília refletem sobre fenômenos presentes nos modos de falar e nos modos de escrever o português do Brasil. As análises realizadas por esses estudantes, que tiveram acesso a conhecimentos sobre ensino de língua, a partir da perspectiva da sociolingüística, demonstram um saber e uma capacidade de análise de textos de crianças em início do processo de alfabetização que não lhes teriam chegado de forma sistemática sem a contribuição da Sociolingüística, como, por exemplo: identificação de regras variáveis da língua portuguesa, de erros ortográficos oriundos da transposição para a escrita de fenômenos da fala, de erros ortográficos decorrentes do pouco domínio que a criança alfabetizanda possa ter em relação às convenções do sistema ortográfico da língua, além de noções de monitoração estilística e do conceito de competência comunicativa, entre outros aspectos importantes.

 

Análises sobre o texto de Marcelo, 7 anos, 2ª série.

Os exemplos de análises referentes ao texto seguinte mostram que os pedagogos em formação já aprenderam, nas noções de fonologia supra-segmental, com base em Mattoso Câmara Jr (1970, p. 63), que o acento em português tem tanto a função distintiva quanto a delimitativa. Numa seqüência de vocábulos sem pausa, num mesmo grupo de força, pode-se depreender no vocábulo fonológico a alofonia das vogais médias e e o em sílabas pré-tônicas ou átonas finais (BORTONI-RICARDO, 2006). Mesmo não dispondo de terminologia técnica mais precisa, demonstram que estão alerta para a grafia de monossílabos átonos que antes não lhes parecia constituir um problema potencial na aprendizagem da escrita, já que sua estrutura silábica é a canônica, CV, ou apenas uma vogal,  geralmente consideradas de menor dificuldade.

 

“O papagaio i a jibóia

O papagaio tava passeando na floresta e quando a jibóia apareceu e o papagaio gritou aaaaaaaa!!!  e ele siu voando e ele contou para o amigo”

 

1.      Trata-se de uma criança que está sendo inserida na cultura de letramento, pois já domina alguns conceitos previstos na gramática normativa, como a acentuação da palavra jibóia. Porém, esse domínio ainda é limitado, tendo em vista que escreveu a conjunção “e” com a letra “i” que reflete melhor a sua pronúncia.

2.      É visível no texto do Marcelo da 2ª série que sua competência na língua escrita é bastante desenvolvida para uma criança de sua idade, mas ainda precisa ser trabalhada para que ele possa superar alguns equívocos, como, por exemplo, a troca da letra “e” pela letra “i”

3.      Nesse trecho Marcelo reproduziu o padrão de sua pronúncia na escrita,  escrevendo a conjunção “e” da forma como a pronuncia. Em “O papagaio tava passeando na floresta...” grafou a forma verbal “passeando” de acordo com as normas ortográficas, recuperando o segmento “d” que normalmente não aparece na sua pronúncia.

4.      “O papagaio i a jibóia”. Nesse trecho podemos notar que o aluno tem um bom domínio da escrita, tendo em vista sua série. Ele escreve de acordo com a expectativa da norma escrita as palavras “papagaio” e “jibóia”. Além disso, tem domínio sobre as regras de acentuação, como podemos notar na palavra jibóia. Porém, o aluno demonstra não conhecer ou não ter domínio da forma escrita da conjunção “e”, e a escreve exatamente como fala “i”.

5.      “O papagaio tava passeando...” A tendência de suprimir a sílaba inicial “es” do verbo “estar” já é uma característica comum na sociedade, e ao escrever o aluno tende a suprimi-la também, tendo em vista que o tem como correto.

6.      Situação: O papagaio i a jibóia. Nesse caso podemos perceber a troca da vogal “e” pelo “i”. Isso ocorre pelo fato que o e é uma vogal média e é pronunciada como i em sílabas de tonicidade 1 e 0 em um grupo de força.

7.      O aluno utiliza a letra “i” para escrever a conjunção “e”, erro que pode ser explicado porque nessa faixa etária a criança, em processo de alfabetização, escreve da maneira que ouve e fala.

8.      “Tava”: O aluno pronuncia a forma verbal “estava” não como a língua escrita prevê. É comum que os alfabetizandos reproduzam na fala as características da modalidade oral do português do Brasil, de maneira mais específica as características de seu grupo social.

9.      “O papagaio i a jibóia”: Nesse caso o aluno, ao invés de usar o “e” usou o “i”. Isso ocorre porque a sílaba tem tonicidade 1 no grupo de força.

10.  “O papagaio tava passeando (...)”. Quando não monitoramos a fala, a tendência é suprimir a sílaba “es” nas formas do verbo “estar”. E da mesma forma que os alfabetizandos falam, também tendem a escrever. Ao invés de escrever “estava” o aluno escreveu “tava”.

11.  “O papagaio tava passeando”. O aluno Marcelo escreveu a palavra “estava” do jeito que ele e a maioria dos brasileiros pronunciam. Ele já entende a diferença entre a língua oral e a escrita. Sabe que na língua oral ele pode pronunciar ou não o gerúndio “ndo”, mas que na escrita precisa se monitorar para recuperar essa ausência.

Em nossa fala não-monitorada costumamos pronunciar as formas do gerúndio (“falando”; “aprendendo”; “saindo”) suprimindo o d. Isso acontece porque os fonemas n e d são articulados na mesma região da boca. Por serem fonemas muito próximos o n tende a assimilar o d.

12.  “O papagaio i a jibóia”: Nesse caso a criança grafa a vogal “e” como ela se apresenta foneticamente, ou seja, com o som de “i”, mas também grafa perfeitamente a palavra jibóia, fazendo uso correto da consoante “j” e da acentuação gráfica.

13.  O aluno Marcelo já possui competência comunicativa, mas ainda apresenta alguns erros na escrita, quando ele escreve como se fala, usando “i” em vez de “e”. Outro erro cometido decorre de uma desatenção quando escreveu “siu” em vez de “saiu”.

14.  “O papagaio i a jibóia”. Em quase todas as variedades do português brasileiro, as vogais e e o, quando ocorrem em sílabas átonas, antes ou depois da sílaba tônica, são pronunciadas i e u, respectivamente. Nesse caso houve uma troca da vogal e pela vogal i na grafia da conjunção, por essa ser um monossílabo átono que funciona como uma sílaba pré-tônica das palavras seguintes.

15.  “O papagaio i a jibóia”: O aluno grafou o fonema e quando se encontra em sílabas átonas no grupo de força, com a letra “i”. Seguindo, portanto, a pronúncia.

16.  “O papagaio i a jibóia”. A troca da vogal “e” pela vogal “i” é um fenômeno comum. Nesse caso ele se dá pela interferência da fala na escrita. Pronuncia-se “i” o que se escreve “e”, como na palavra “ele”, onde verdadeiramente se diz “eli”.

17.  “O papagaio tava passeando”. Ao escrever, a criança tende a suprimir a sílaba suprimida na fala. E nós, de um modo geral, tendemos a suprimir em nossa fala a sílaba “es” nas formas do verbo “estar”.

 

 

Análises sobre o texto de Patrícia, sem informação sobre idade e série

Nos fragmentos de análise sobre o texto seguinte, observa-se que os alunos atentaram para a regra variável gradual da supressão do segmento r final e de desnasalização de sílabas finais. Fazem também a distinção entre características da escrita associadas a traços da língua oral e aquelas que se explicam simplesmente pelo desconhecimento das convenções ortográficas.

 

“Quero continuar. A aprende eu quero seu uma promotora quero. Aprender . debiji. Carro. E moto quero. Apender. Ler. Eu quero aprender escreva manho. Eu estou na escola. Para que eu porsa pega uma iprego nenho. Eu gosta ria de.ir em sopolo. De avião.eu quero ter uma casa. Minha . quero se uma profesora- para que - eu poça- em sina ais outra pessoa que poço aprende. Escreve e le. Para que ele e ela poça ter, um fotubo melho. Esta e o meu soi que eu sempo soeis”

 

 

1.        “ela poça ter, um fotubo melho”. A aluna utiliza uma das representações do fonema s, substituindo a grafia padrão por “ç”. A aluna suprimiu o “r” quando grafou a palavra “melhor”, esse segmento tende a ser omitido na fala não-monitorada. Isso é comum, pois a pronúncia do r é uma regra variável.

2.        “Para que eu porsa paga uma...” – A aluna suprimiu o fonema r pós-vocálico final no verbo “pegar”. Tal fenômeno ocorre principalmente no infinitivo do verbo e em palavras de duas sílabas ou mais. A aluna escreveu de acordo com a pronúncia na fala não-monitorada.

3.        “(...) outra pessoa que eu poço aprende. Escreve e Le.” – Aqui ocorreu o fenômeno da supressão do r final, que geralmente ocorre no infinitivo dos verbos, como foi o caso aqui. Porém um aspecto importante a ressaltar é que normalmente nas palavras monossilábicas tendemos mais a pronunciar o r final, mas a Patrícia, não seguiu esse padrão. A supressão do r final está tão consolidada em seu repertório que ela, mesmo no monossílabo “ler”, escreveu “le”. Outro ponto é que, ao longo do texto, ela escreveu o verbo “aprender” de diversas maneiras: “aprende”, “apender” e “aprender”.

4.        No texto escrito por Patrícia, ela escreve: “quero se uma profesora – para que – eu poça – em sina ais outra pessoa que poço aprende”. Esse é um problema que a criança apresenta na escrita e não pode ser explicado pelos hábitos de pronúncia. Há certa confusão na representação escrita do dígrafo ss. Então, no caso da Patrícia, ela trocou o dígrafo ss pelo ç. Esses erros ocorrem devido às convenções das regras de ortografia, processo de padronização da língua, etc.

5.        “Poça”: grafia errada, a Patrícia ainda não se familiarizou com o dígrafo ss. “Em sina”: acredito que a Patrícia não tem conhecimento do verbo ensinar, deve ter associado a alguma palavra como: “em cima”, “em qual”, etc. “Ais”: colocou o i no artigo as. Faltou no trecho concordância numeral.

6.        “Para que ele poça ter”. Poça – possa: A troca do dígrafo “ss” por “ç” pode ser explicada por conseqüência das convenções da língua, pois trata-se de um fonema que possui um som e pode ser representado por diversas letras. A supressão do “m” na conjugação do verbo diz respeito à desnasalização que ocorre nas palavras em que a sílaba final é átona. 

7.        “A aprende eu quero seu uma promotora que quero” – Percebemos que Patrícia suprimiu a letra “r” no fim da palavra. As pesquisas nessa área mostram que suprimimos o “r” com freqüência nos infinitivos verbais e no futuro do subjuntivo, também em palavras que possuem mais de uma sílaba, sendo um fenômeno muito comum e freqüente tanto na fala como na escrita.

8.        “(...) para que eu poça” – Nesse caso não há [interferência] de hábitos de pronúncia, mas sim a forma de representação do fonema “s”, pois ele pode ser representado de várias formas, mas nesse caso a regra da ortografia diz que deve ser escrita com “ss” – possa.

9.         “quero se uma profesora...” – A menina suprimiu o r pós-vocálico do verbo ser. Em todas as regiões do Brasil o r pós-vocálico, independente da forma como é pronunciado, tende a ser suprimido especialmente nos infinitivos verbais.

10.    “... uma profesora – para que - eu poça – em sina...” – Nas palavras “profesora” e “poça” a representação do fonema s é convencionalmente feita pelo dígrafo “ss”. A aluna ainda não tem domínio das convenções que regem a grafia desse fonema.

11.     “Eu gosta ria” – Na fala, diferente da escrita, não há divisão de palavras. Na cadeia de fala acabamos unindo alguns morfemas, como no exemplo “homem de vida boa”, acabamos falando “ômidevidaboa”. Por isso se a pessoa não tem familiaridade com a forma escrita, transfere tudo da fala.

12.    “Eu poça” – Sapato, roça, assado, essas três palavras embora escritas de forma diferente pronunciam-se igualmente seus “sas”. Pessoas em início de escolarização encontram muita dificuldade ao escrevê-las, talvez devido à falta de familiarização com a forma escrita e as freqüentes interferências da fala na escrita.

 

Análises sobre texto de Lucas, 8 anos, 2ª série, nasceu e mora em CeilândiaDF

 

Nos fragmentos de análise do texto seguinte, observamos que os alunos estão alerta para a despalatalização da consoante nasal palatal, traço muito freqüente nas comunidades de fala do Centro-Oeste. Atentam também para o fenômeno da concordância nominal não-padrão e levantam hipótese de hipercorreção, além de perceber a monotongação do ditongo ou.

 

 “A Dengue

 Eu fui la em São Paulo e coeci um menino que tinha dengue e ele quase morreu e o nome dele e Junío e ele tem um irmao que tambem tem dengue e a mãe deles fico quase doida e o pai tambem e na casa deles os visinho não tampava a caixa dagua e os xaxis ela não trocava a agúa e não quidava e e quando as dona xego ela vi que os menino estavam com dengue e ela teve que coida deles e ae que o pai não deixou e o menino fico feles mas so que o pai e o irmao mas pequeno não quer e a mãe fico muito braba e o irmao tambem e o Junio foi embora para São Paulo”.

 

1.        “Eu fui lá em São Paulo e coeci”. Ocorreu a perda do fonema nasal palatal que é representado na escrita pelo dígrafo “nh”.

2.        (...) e na casa dele os visinho” – Nessa frase vemos a ocorrência de dois fenômenos. O primeiro é que a criança escreveu “vizinho” com “s” e não com “z”. Isso ocorre devido ao caráter arbitrário das convenções da nossa língua. O fonema s pode ser representado de inúmeras formas e a criança, por não conhecer muito bem ainda as convenções gramaticais da nossa língua, escreve “vizinho” com “s”. Mesmo fenômeno ocorre na palavra “poço”.

Outro fenômeno que ocorre nessa frase é a não-utilização do plural redundante. A criança marcou o plural somente nos elementos que ocorreram à esquerda do nome. No caso ele marcou o plural em “deles” e “os”, mas não em “visinho”.

3.        “vi que os menino”. Ocorreu a supressão do fonema “s” no final da palavra menino. Esse uso é muito freqüente quando estamos falando sem prestar muita atenção à forma de nossa fala (estilo não-monitorado).

4.        Coeci – O adequado de acordo com a gramática normativa é “conheci”, por isso pode-se analisar que tal aluno ainda não tem conhecimento pleno de dígrafo.

5.         “na casa deles os visinho”. Nessa situação houve a supressão do “s” final, pois tendemos a fazer a concordância nominal colocando a marca de plural nos elementos que ocorrem à esquerda do nome. Na mesma palavra também o aluno usou o “s” no lugar de “z”. Isso ocorre devido às várias convenções ortográficas no processo de padronização da língua.

6.        “e na casa deles os visinho”; Lucas, 8 anos. No trecho o aluno tende a flexionar somente os elementos à esquerda do nome, no exemplo, esse elemento é um artigo. A regra de concordância não-redundante ocorre com mais freqüência, nos estilos não-monitorados. Quando a forma de plural é apenas um acréscimo de um s, tendemos a não empregá-la.

É possível observar que nem todos os problemas que as crianças apresentam em sua escrita podem ser explicados pelos seus hábitos de pronúncia. No trecho o aluno escreveu “visinho” com s, sendo que, de acordo com a norma padrão, usa-se o “z”. Isso ocorreu porque um mesmo fonema pode ser representado de duas formas ou mais. A forma de representar o fonema s em cada palavra é convencionada pelas regras de ortografia, que o aluno ainda irá aprender ao longo do processo de alfabetização.

7.        “e a mãe fico quase doida”; Lucas, 8 anos. É comum os alunos reproduzirem na escrita o processo próprio de sua língua oral. No trecho, o aluno reduz o ditongo ou, que tende a ser pronunciado como uma vogal simples o. Isso é comum quando os alunos ainda não têm muita familiaridade com a língua escrita.

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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